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RESIDENTES EM GREVE - Oswaldo U. Lopes


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RESIDENTES EM GREVE
Oswaldo U. Lopes


        Sei que foi a primeira, não sei se foi a única, não acompanho a residência médica no HC como uma instituição, desde o tempo que me formei. Reivindicávamos várias coisas, entre elas aumento no valor da bolsa (salário). Sejamos honestos, a maioria das greves se faz por aumento no salário. No segundo ou terceiro ano de residência, os compromissos aumentam, você está noivo, vai casar, não tem emprego ainda, mas já tem despesas.

        Hoje há regras, descanso obrigatório pós-plantão, folgas, no meu tempo não tinha nada disso, você chegava facilmente às 30 horas de trabalho contínuo. Levantava as seis, tomava banho se vestia e ia tomar café. Antes das sete já estava no Centro Cirúrgico. Saia de lá as três ou quatro da tarde, passava visita e engatava plantão a noite. Dia seguinte visita com o Professor, discussão de casos. Com sorte encostava o corpo às quatro da tarde.

        É bom lembrar que desde o famoso decreto do “Bom Será” que instituiu os cursos de cirurgia no Brasil (D. João VI, Rio de Janeiro 1813) o trabalho dos estudantes é considerado sem folgas.
        Lê-se lá no artigo XI:

Deste (refere-se ao Terceiro Ano – citado no Artigo X) até ao fim do quinto não há feriados nas enfermarias, mas somente nas aulas, se não houver operação de importância a que devam todos assistir.

        Em bom português hospitalar, se for feriado, não tem aula que é para os mestres descansarem, mas vocês alunos (leia-se hoje, internos e residentes) cuidam dos doentes e dos curativos 365 dias por ano e, se for bissexto, 366.

        Ninguém se queixava, não passava pela cabeça que aquilo era uma loucura.  Residência quer dizer residir, morar e era isso que fazíamos. Tínhamos um quarto a ser dividido com outro colega no 6º ou no 8º andar, quer dizer no coração do Hospital e era o que éramos o coração do HC.

        Residência não era emprego era aprendizado em serviço, logo quanto mais serviço, mais aprendizado. Uma das mais importantes séries da televisão americana Grey’s Anatomy retrata a vida de médicos internos num grande hospital. Os internos são o primeiro degrau da residência, ou seja, o mais baixo na escala dos médicos que atuam num nosocômio, último elo da cadeia alimentar cirúrgica, abaixo deles só o cachorro!

        Não me lembro de sermos tão competitivos como os médicos de Grey’s Anatomy, mas mesmo na série fictícia há uma ordem para que internos não ultrapassem 80 horas de trabalho por semana. Um número simples, você divide 80 por 7 e descobre que não pode trabalhar mais do que 11 horas e 42 min por dia, faça chuva, faça sol, seja que dia da semana for. Se o fizer, tem que parar e ir para casa.

        Não falo das enfermeiras que têm escada própria e vida própria. Já naquele tempo sabíamos que o estudo delas tinha objetivos claros:

  1. Aprender a fazer a escala dos subordinados: auxiliares de enfermagem e auxiliares de limpeza.
  2. Como guardar e esconder remédios sujeitos a controle: psicotrópicos, analgésicos poderosos (morfina e similares).
  3. O que fazer com as ordens dos médicos residentes e como enquadrá-los na disciplina da enfermaria.
        O que ninguém sabia ou imaginava era o quanto o HC precisava do nosso trabalho, da nossa presença para que tudo funcionasse.

        A greve durou só uma semana e voltamos ao trabalho com bolsa de valor maior e outras regalias secundárias.

        Numa Clínica do HC você tinha o Professor, chefe e senhor absoluto, seus assistentes que conduziam setores especializados e um monte de médicos assistentes que na sua maioria formavam também o cordão dos puxa-sacos.      

        No começo os assistentes resolveram topar a briga e desceram ao Pronto-socorro (PS) para provar que podiam nos substituir.

                Quando os assistentes, na nossa ausência, por causa da greve, passaram a dar plantão no Pronto-Socorro, os bajuladores faziam de tudo para agradá-los e assim eles operavam alguma coisa, viam um ou outro doente e iam para casa lá pelas onze da noite.

        Foi assim que um dos mais famosos cirurgiões da Clínica do Prof. Alípio, chamado por nós de Tigre do Guarujá porque quando chegava, na segunda-feira, vindo do fim de semana na praia, você tinha que ter um caso importante para ele operar, porque se não tivesse ele operava hérnia ou mesmo unha encravada.

        Foi assim que o Tigre do Guarujá operou, durante nossa greve, no PS, um caso de tiro no abdômen e suturou um ferimento à bala no intestino delgado, na parte que chamamos íleo, próximo da válvula que une esta parte ao colón ascendente (primeira porção do intestino dito grosso).

        Embora excelente cirurgião, desconfio que o Tigre nunca tivera experiência ou expertise em condutas de emergência.

        Um pouco para trazer experiência de PS para a clínica e muito para aliviar a sempre presente falta de leitos no PS, havia nas enfermarias do Hospital leitos chamados de leitos do PS para onde eram transferidos doentes que estavam internados no PS.

        Foi para um desses leitos que foi transferido o doente operado pelo Tigre. O Prof. Alípio, como era de seu feitio passava visita rigorosa em todos os leitos de sua Clínica.

        Quando chegou nesse leito do PS, lá estava internado o doente operado durante a greve. Meu colega, infelizmente já falecido, Alex Goldsmith de Vasconcellos Ribeiro, apresentou o caso e foi relatando:

        -“Ferimento a bala no abdômen, foi operado no PS, tendo sido realizada uma sutura longitudinal que por essa característica resultou em uma estenose e nós precisamos reoperar e fazer uma ressecção e nova sutura agora mais ampla”.

        - Quem operou, perguntou Alípio?

        - Dr. Tigre.

        - Não acredito.

        - Aqui está a peça, exibiu glorioso o Alex, mostrando num vidro um pedaço do intestino visivelmente estenosado e com a malfadada sutura longitudinal.

        - Chamem o Tigre vociferou o Alípio.

        É claro que um dos puxa-sacos já fora avisar o Tigre que não mais foi encontrado naquele dia. Como foi a conversa entre eles no dia seguinte, ninguém soube ou me contou.

        Alípio estivera na guerra, em matéria de cirurgia de urgência dava aula para qualquer um, deve ter dado mais uma.

        Nós naquela ocasião saíramos bem na foto. O Rudi (Dr. Rudolf Uri Hutzler) era nosso Residente-Chefe e tivéramos uma expressiva vitória. Já não éramos crianças, de modo que comemoramos quietos e não demonstramos o sabor da vitória, voltamos ao trabalho dando duro como sempre.

        Houve reuniões da alta cúpula e alguns de nós ficaram marcados, nada muito grave. Só de exemplo, anos mais tarde uma parenta de minha mulher, a Ione foi chamada para ser Coordenadora (Governanta) da Casa dos Residentes, prédio novo construído para alojar a categoria e ela resolveu conversar comigo e eu lhe expliquei quem éramos o que fazíamos e quais as nossas necessidades.

        Ela antes de assumir o cargo foi conversar com a chefa das enfermeiras, Clarice Ferrarini, falando das necessidades e dos problemas que eles tinham e como pensava atuar. Clarice a ouviu e puxou um papel com cinco nomes listados, um deles era o meu e perguntou:

        -  O cara com quem você conversou foi um desses, não foi?

        Foi, confesso que vivi, como diria Neruda, e o fiz intensamente.


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