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Meios que justificam o fim - José Vicente J. de Camargo


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Meios que justificam o fim
José Vicente J. de Camargo

O cenário era de apreensão e expectativa no Congresso. Deputados formavam rodinhas nervosas querendo saber das últimas novidades sobre o interrogatório a que o colega de partido estava sendo submetido naquele exato momento perante o juiz da Vara de Crimes contra a Constituição, mais conhecido como de colarinho branco:                                   
- Ele delatou alguém? Deu algum indício? Precisamos reunir a bancada urgente para definirmos a posição do partido contra qualquer acusação que recebermos. A união de todos é a melhor arma que temos, principalmente neste ano eleitoral.

A agitação do Congresso fervia por outros setores da sociedade, principalmente na mídia escrita e falada ávidas por notícias de primeira mão. Na redação do jornal “ O País”, o celular de André toca insistentemente sobre a mesa abarrotada de anotações rabiscadas com letras irreconhecíveis, xícara de café pela metade, vários livros abertos e o laptop ligado chamando a atenção dos passantes com sua luz indagadora. Ele sai às pressas da reunião com o redator onde está dando a última revisão em mais uma de suas reportagens de primeira página para a edição do dia seguinte:

_ ”Alô! Atente. Desembucha logo que estou com o Rui numa reunião de vida ou morte... O que? Ele deu com a língua nos dentes? Mencionou o Ramos? Ótimo! Isso vai dar pano para muita manga. Não fale mais nada pelo celular, pode estar bloqueado. Te encontro daqui a uma hora no boteco do Mané. Devo-lhe uma branquinha com torresmo...”

Voltou à reunião com os olhos esbugalhados soltando lampejos de emoções:

- Rui, novidades! O deputado ligou o ventilador pra cima do Ramos. Preciso que você segure a pauta por mais umas duas horas. Sei que vai ficar apertado, mas vai ser um furo e tanto. Vou encontrar minha musa e lhe ligo quando tiver redigido a bomba. Vou mostrar pro Ramos com quantos paus se faz uma canoa... Que não me venha com ameaças que repondo com cadeia. Estou a um passo de ganhar o premio “furo do ano”!

Desde que se formara jornalista na melhor faculdade da cidade, Andre sonhava em ganhar o prêmio de melhor repórter investigativo do ano. Espelhava-se em seu professor favorito, que além de jornalista de um dos mais renomados jornais, era também advogado - sócio de um reconhecido escritório de advocacia civil e criminal. Fez vários estágios em diversas redações de jornais e revistas, em diferentes áreas onde havia disponibilidade de vagas – a maioria gratuitamente. Depois de formado, continuou com cursos de especialização focando a área de seu interesse, a   investigativa, principalmente a proveniente de abuso de autoridade, desvio de dinheiro público, mal governança, golpes financeiros. Grande parte do seu interesse por essa área, vem do seu pai, que sempre ensinou a ele e seus irmãos, que a ética e o respeito ao próximo vem em primeiro lugar. Nos jantares em família, comentava o descaso dos ricos e poderosos pelos menos afortunados, a lentidão da justiça e as brechas da lei na punição dos culpados. Quando soube que ele queria ser jornalista, o apoiou em todos os sentidos, inclusive financeiramente. Foi também através dos contatos de seu pai – dono de uma pequena construtora de casas populares – que ele conseguiu uma entrevista com o diretor comercial do jornal “O País”, que por sua vez, o indicou com boas referências ao redator chefe. Este gostou dele a primeira vista, pois viu nele as características essenciais que fazia questão que os candidatos  à uma vaga em sua seção deveriam ter, isto é, os famosos “3 is”: Iniciativa, impulso e ideias... E era justamente isso que não faltava a Andre. Assim iniciou como segundo auxiliar do repórter sênior encarregado dos crimes de corrupção passiva e ativa da vara criminal do fórum da comarca da capital. De início se encarregava de investigar pequenos delitos, mas dado ao seu bom desempenho, foi crescendo na importância dos crimes, envolvendo pessoas de renome na mídia nacional.

Num “happy hour” entre os colegas da redação, ouviu pela primeira vez o nome de Adalgiso Vieira Ramos, poderosa personalidade  do meio comercial, industrial e financeiro. Havia suspeita (para alguns comprovada) de que estaria metido com negócios espúrios, falcatruas, enriquecimento ilícito e até assassinatos. Sem saber bem o porque, Andre se sentiu atraído em aprofundar essas suspeitas, para quem sabe – como é usual dizer no meio jornalístico - fisgar um tubarão até agora considerado lambari. Na mesma noite pôs-se então a investigar na internet tudo o que era possível saber sobre ele:

Que nascera numa pequena cidade no interior de Minas Gerais, de uma família de classe média baixa, filho de sitiante e de uma costureira, vários irmãos, estudou só até o segundo grau (embora algumas pesquisas indiquem que tem diploma universitário comprado), começou a trabalhar cedo na roça do pai e depois, para  ajudar no sustento da família, seguiu seu instinto para o comercio e, após muita persistência, conseguiu um emprego de ajudante numa loja de tecidos, passando depois, dado à sua boa lábia, a balconista e mais tarde a gerente. Todas as fontes de sua biografia mencionam sua capacidade de organização, seu dom de convencimento e, sobretudo seu instinto de liderança e força de vontade de atingir objetivos. Em poucos anos, devido aos seus modos austeros de vida, conseguiu economizar o suficiente para comprar – ajudado pela morte subida do dono e pela falta de herdeiros, a loja onde trabalhava e assim iniciar sua carreira meteórica de empresário competente, mas também temido pelo seu gênio agressivo não só nos negócios, mas também no meio social. As informações revelavam seu caráter bipolar, ora sociável, ora intransigente e bruto, podendo passar de um extremo ao outro em poucas horas. Dotado dessas características, expandiu seu império com ramificações em vários segmentos de negócios. Crônicas, artigos e entrevistas jornalísticas, ressaltam essa dupla personalidade do Ramos, com elogios pela sua astúcia empresarial, mas também de ódio pela sua falta de consideração ao próximo, sua ganancia e sua vingança para aqueles que ousarem impedir seus intentos.


Quanto mais se informava, mais ânimo adquiria Andre em fazer público os malfeitos do Ramos. Suas reportagens eram cada vez mais inflamadas e inquisitórias. Seu redator chefe – dado ao aumento das vendas do jornal soltava-lhe as rédeas quanto as autorizações para as publicações das suas reportagens e nos espaços das chamadas de primeira página.

Andre, no seu envolvimento cada vez mais intenso com as transações obscuras do Ramos, passou a se interessar também por sua vida pessoal: seus hobbies, hábitos caseiros, gostos pessoais por roupas, lugares prediletos, férias, comidas, familiares. Foi assim que descobriu que uma filha dele, considerada hippie e de ideias independentes, por discordar de suas maneiras opressivas de educação, morava fora de casa. Através de informações de outros jornalistas, descobriu que ela tinha um twitter nas redes sociais e passou a acompanha-la. Descobriu que ela frequentava um clube de jazz acompanhando uma banda todas as quartas-feiras e que tinha uma queda pelas músicas de Ben Goodman. Passou então a frequentar o tal clube nesses dias – não antes de se informar sobre os melhores jazzistas do passado e da atualidade, os diferentes tipos de jazz assim como a diferença entre jazz e blues. Numa quarta-feira, quando a banda abriu sua apresentação para pedidos do público, ele solicitou, olhando para ela, uma do Ben Goodman. Ela sorriu abrindo-lhe a oportunidade de – após o termino do show, se achegar a ela e sussurrar-lhe o convite para um drinque. A conversa entre eles se restringiu às preferencias de cada um pelos ícones do jazz e era constantemente interrompida por amigos dela querendo abraça-la pela ótima performance. Ele só temia que algum conhecido o reconhecesse e mencionasse sua profissão de jornalista, coisa que ela, pelo twitter já mencionara ter total desconfiança pelos constantes ataques a seu pai. Do pai, Andre nada conseguiu saber nem nesta, nem nas noites subsequentes de quartas-feiras, pois ela, que se apresentara como Inês, desconversava quando o assunto era família. Por seu lado, Andre sabia que estaria pisando em ovos, se tentasse mencionar o tema, pondo a perder o espaço que conquistara com ela a duras penas e do qual já sentia falta fora das noites de jazz. Com os cuidados ocultos de ambos os lados, seguiram tomando seus drinques até que numa quarta, o terminaram num motel da periferia sem muita convicção como se estivessem seguindo um ritual preestabelecido.

Portanto qual não foi surpresa de Andre, quando, na semana seguinte, ela lhe apresentou o namorado Igor que estava de excursão por varias capitais do país como pianista de uma banda de jazz. Ele disfarçou seu desapontamento, ela fingiu que não percebeu, evitando olhar-lhe nos olhos. A partir dessa noite seu relacionamento com Inês esfriou sem conseguir seu intento de somar informações sobre seu pai, mesmo porque, esse objetivo já deixara de ser o motivo de seus encontros com ela.

As reportagens investigativas sobre suspeitas de falcatruas entre os poderes público e privado têm sequência. Serviram de base para posteriores denúncias dos procuradores do Ministério Público, buscas e apreensões de materiais suspeitos, oitivas de testemunhas e intimações de eventuais réus, entre eles Ramos.

Isto gerou um movimento crescente de manifestações populares contra os crimes de colarinho branco, ao pagamento de propinas a servidores públicos e políticos, a falta de ética das empresas e dos corruptores envolvidos. Neste contesto, Andre recebe ameaças de rapto e morte, algumas das quais, ele atribui aos capangas de Ramos já que no seu currículo de desafetos, constam ameaças iguais e mesmo a de responsabilidade de mando de morte da sua mulher, cujo tiro que a vitimou nunca chegou a ser devidamente esclarecido.

Chegando a redação do jornal, Andre recebe o recado que o redator chefe o procura com urgência:

- Que foi? Não está aguentando a pressão de cima? Pergunta

- Essa tal pressão tende a explodir a qualquer momento, reponde o chefe. Acabo de receber a informação da delegacia de sequestros e desaparecidos que o Ramos acaba de fazer um BO que sua filha Inês está desaparecida há três dias, sem pistas e com suspeita de ter sido assassinada pelo namorado, um tal de Igor, que já tem mandato de prisão expedido e está sendo procurado. Eles estavam morando juntos e, apesar de terem um relacionamento conflitoso, pretendiam se casar em breve. Ele foi o último a estar com ela e vizinhos confirmam terem ouvido discussões do casal no dia do desaparecimento. Nessa situação é melhor termos todo o cuidado ao divulgarmos notícias sobre o Ramos. Checar bem a veracidade das fontes de informação.

Andre sentiu um nó na cabeça. Sem dar satisfações, saiu em disparada à sua mesa e procurou a agenda – tratando-se de assuntos pessoais não usava a agenda eletrônica, mas sim uma pessoal, camuflada na bagunça da sua mesa de trabalho. Ali encontrou os telefones dos figurantes da banda de jazz de Inês e procurou aquele que era o mais amigo dela. Ligou para ele e sem mencionar o motivo marcou um encontro no clube para dali a pouco:

- Isso parece mais história para boi dormir! Diz o amigo ao ouvir o relato nervoso de Andre. O relacionamento de Inês e Igor não era tão problemático assim. Desavenças havia, mas eram discussões de ciúmes dado as noitadas que os dois faziam as cantadas que recebiam dos fãs – inclusive a sua, não se lembra? Inês estava isso sim preocupada com o pai que não aprovava seu relacionamento com Igor que considerava um João Ninguém, tentando dar o golpe do baú, principalmente depois que foi noticiado que ele a nomeou sua herdeira em vários negócios espúrios. Tentaram manter o casamento em sigilo, mas alguém aqui do clube dedou a um dos capangas do pai em troca de um bom dinheiro. Dias depois apareceram no clube dois desses capangas e provocaram propositadamente uma briga entre eles, sacaram as armas e dispararam ao leu tentando atingir Igor e, por incrível que pareça a própria Inês. Foi o suficiente para que o casal arrumasse a trouxa às pressas e desaparecesse. Mas o pai, por trás dos panos, mandou capangas atrás e semeou na polícia e na imprensa essa história de sequestro e assassinato da filha por Igor.

Andre, enquanto ouvia, já tramava na mente a reportagem que faria. Usaria o fato real da briga simulada dos capangas no clube e dos tiros disparados por eles. Teria nos demais frequentadores do clube daquela noite, testemunhas da veracidade do acontecido - assim estaria obedecendo seu chefe redator quanto a fidelidade das fontes. Completaria o texto com sua versão própria – que poderia lhe custar o tão sonhado prêmio de melhor repórter investigativo do ano, mas era para a salvação de Inês, que ainda lhe cutucava o coração. Não mencionaria que os tiros foram dados ao leu, mas sim dirigidos a Igor, provocando a fuga apressada do casal. Só mais tarde, passado o susto, percebeu-se que um dos tiros acertou Igor com certa gravidade. Inês, no esconderijo improvisado por amigos e em represália ao pai, convocaria o repórter em questão para relatar o que sabe das falcatruas paternas, principalmente dos negócios que têm participação majoritária sem nunca ter sido informada ou entender coisa alguma. E de outros que têm conhecimento, envolvendo políticos influentes de dentro e de fora do Governo, podendo fornecer a polícia federal pistas consistentes para a intimação dos envolvidos. As reportagens de Andre poriam lenha na fogueira, aumentando a pressão da opinião pública para delações premiadas dos réus mais vulneráveis, forçados também por seus familiares.


E assim se passou, fechando o ciclo jornalístico daquela manhã nervosa no Congresso Nacional. Resta pedir a Inês e Igor, através do amigo jazzista, que se quedem onde estão, pois doravante será ele, quem dará as cartas dentro do princípio que os meios justificam o fim, e neste caso, um fim venturoso para todos os milhões de cidadãos ansiosos para um despertar glorioso do gigante adormecido...

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