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BOSQUES DE PALERMO - Silvia Helena De Ávila Ballarati

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BOSQUES DE PALERMO
Silvia Helena De Ávila Ballarati


Aos domingos,  Federico Gallo gostava de passear em Palermo, mais exatamente  no Parque Tres de Febrero, conhecido como Bosques de Palermo.  Morava em Morón, cidade a cerca de 20 km de  Buenos Aires.  Levava uma vida rotineira, trabalhava no escritório da  Dp Electronica, era muito educado, bem relacionado mas bem reservado também. Tinha algumas eventuais companheiras, algumas do trabalho, outras de paixões ainda mais efêmeras, pois se conheciam nos parques e ali mesmo encerravam o relacionamento.  Tão logo se viu órfão aos vinte e três anos, primeiro do pai, e menos de um ano depois, da mãe, resolveu morar sozinho.  O único irmão que tinha levava uma vida de trabalho na capital argentina semelhante a de Federico , mas a semelhança parava por ai,  ele já era  casado e com um casal de filhos. Poucas vezes ao ano os irmãos se encontravam, só mesmo em ocasiões oficiais, Natal, Batizado, Primeira Comunhão. No mais, pouco se falavam. Federico gostava de família, mas algo o impedia de constituir a sua própria.

Os domingos em Palermo sim, eram seu grande deleite. Fazia longas caminhadas, passava horas no Jardim Japonês,  observava os visitantes,  sentia-se renovado com o sol penetrando-lhe na pele.  Em julho, chegava a tirar férias do escritório por duas semanas para acompanhar de perto, todos os dias, a Exposição Rural.  Neste ano de 1987, a 105ª (centésima quinta)  exposição tinha uma atração especial de cavalos crioulos.  Federico via as provas de equitação, acompanhava a ordenha das vacas, assistia a todas as premiações de gado, visitava as baias, adorava o cheiro de esterco recolhido e amontoado em cantos.  Tinha paixão especial pela prova de adestramento.  Nem ele mesmo entendia esse gosto pela natureza. Sonhava às vezes, atolado com o carro em estradas de terra era um sonho recorrente, andando a cavalo ele já não sabia se era sonho ou desejo.

Conhecia tão bem o parque que, certa vez,  sentado no banco de uma das praças para comer um sanduíche de miga com presunto e queijo, notou que uma das lixeiras estava transbordando de caixas de papelão de diferentes tamanhos, algumas meio rasgadas, mofadas, outras com selos, tarjas, como se fossem arquivos. Chamou sua atenção, pois o lixo normalmente era composto de copos e pratos plásticos, muito guardanapo e  latinhas.   Profundo conhecedor do parque, frequentador assíduo, sentiu-se na obrigação de  ver do que se tratava lixo tão inusitado.  Eram papéis antigos dentro das caixas e tinham, em sua maioria,    timbres dos  Bosques de Palermo,   do Wellington Polo Club,  da Exposição Rural de Palermo, entre outros, como se tivessem sido descartados em alguma limpeza de departamento. Mas em uma das caixas encontrou uma carteira de couro trabalhado em relevo, parecendo as inicias de alguma marca.  Embora bem surrada,  via-se que tinha sido uma carteira refinada.    Abriu-a e se deparou com a foto de uma moça muito elegante, em trajes de montaria, ao fundo montanhas com picos em neve que Federico pensou reconhecer.  Para sua surpresa uma carta dobrada constava junto dos documentos.  Era uma autorização para que Guillermina Cuesta Alcacer, a primeira mulher argentina  a se aventurar por searas eminentemente masculinas, pudesse frequentar as aulas de adestramento e participar das competições.  Datava de  1932, quando os clubes de equitação, polo e adestramento,  eram de domínio exclusivo de honrosos senhores.

Guillermina Cuesta Alcacer, criada na terra como gostava de dizer, desde menina ia com o pai todas as tardes para a fazenda a 12 km de Buenos Aires.  Quando lá chegavam seu pai pedia que pisasse no freio da camioneta rural enquanto ele abria os colchetes.  Ela se via trabalhando na fazenda, importantíssima.  De vez em quando levava amigas da escola para lá, com o compromisso de voltarem à tardinha.  Mas nessas ocasiões, sentia duas tristezas: ao levá-las teria que ficar nas brincadeiras femininas e o pior, voltar na hora do dia em que mais apreciava ficar.  Tinha fascínio pelo final de um dia de trabalho numa fazenda.  O gado, por ter passado horas preso no curral, se agitava, levantava muita poeira e quando saía para o pasto ia devagarzinho formando um fila naturalmente.  O contraste do gado amarelado da raça Angus com o céu azul meio laranja do finzinho do dia era lindo, imperdível!  Guillermina queria realmente trabalhar na fazenda, os afazeres domésticos tradicionais não a conquistavam.  Fazer bolo, por exemplo, todas as amigas já sabiam, menos ela.

Para surpresa do pai, foi ganhando pequenas batalhas; tornava-se de fato útil. Sabia, como poucos,  levar os bois ao tronco com tranquilidade, apartava as vacas dos bezerrinhos,  uma atividade considerada perigosa, contava o gado de cima da porteira  de madeira,  melhor que os peões, sem confundir o resultado.  Era plena a sua satisfação.  Na adolescência começou a chamar a atenção pela destreza e elegância ao montar.  Segurava a rédea com apenas uma das mãos, abolia o uso do chicote embora tivesse um lindo de couro em tricê apenas para compor o traje de montaria.  Destacava-se também pela beleza e simpatia, sempre sorridente, dizia que o contato com terra e animais tornava as pessoas benevolentes.  Sobressaía em competições amadoras entre vizinhos, ora em sua fazenda, ora na de amigos.  Certa vez, na Exposição Rural de Palermo, participou da prova de adestramento juvenil, desbancando o favorito, um primo de terceiro grau.  Primo e pretendente,  sabia que ela, aos 19 anos, jamais poderia frequentar o clube equestre;  em 1925  mulheres não praticavam as mesmas atividades que os homens.  Mas fez de tudo para que ela obtivesse uma autorização, assim, ficariam todo o tempo juntos.

Guillermina cedeu aos encantos do primo, passavam horas nas cocheiras cuidando dos cavalos e esse interesse em comum, acabou por aproximá-los ainda mais, culminando em namoro.  Foram tempos muito felizes nos Bosques de Palermo, ela nunca soube bem ao certo se gostava dele ou da vida que compartilhavam.  Ele competindo de fato, ela treinando nos piquetes atrás da arena. Mesmo assim,  atraía a atenção de pessoas que ficavam fascinadas com seu cavalgar. A esta altura,   tendo viajado bastante com o primo e seu pai, era bem conhecida por toda a comunidade rural e já alcançava certa notoriedade. Uma vez, teve a oportunidade de se apresentar para resgatar um bezerro na prova do laço e foi reconhecida por alguns.  Muito charmosa, segurava a rédea com a mão direita e com a esquerda balançava o chapéu para a multidão. Foi ovacionada.  Mas para ela, não bastava. Embora tivesse chegado longe na categoria do adestramento, como mulher, queria o reconhecimento formal da federação.

Certa vez, um  grupo de brasileiros foi a Palermo para a exposição e ela conheceu um rapaz por quem se apaixonou verdadeiramente.  Não demorou muito e estavam casados, morando no Brasil, levando uma vida bem parecida com a que sempre tivera.  Ocupada que estava com uma gravidez seguida da outra, tiveram quatro filhos, soube que a autorização da Federação Equestre da Argentina  finalmente havia saído. Impedida de viajar  pelas circunstâncias em que vivia,  durante muito tempo recebeu  a visita regular dos pais e  irmãos e só depois de onze anos voltou à sua terra natal.  Lá chegando, a primeira coisa que fez foi procurar  pelo documento mas ninguém se lembrava dele, alguns nem sabiam da existência de tal autorização.   Passou então a viajar anualmente a  Buenos Aires em julho, assim, aproveitaria para rever a fazenda,  matar a saudade de seus tempos de amazona e mostrar aos filhos  os Bosques de Palermo onde  montara durante a juventude.  Chegou a ser, mais de uma vez, reconhecida por antigos fãs, que tinham muita curiosidade pela vida daquela que tinha sido a  corajosa moça  a ganhar  dos homens nas competições de cavalo, fosse de adestramento ou outra modalidade qualquer.  Sentia orgulho e ao mesmo tempo uma tristeza profunda  dentro de si, nunca soube se realmente havia sido aprovada.


Pontualmente às 17:30hs Federico Gallo chegou.  Ela pedira que a conversa se desse no período do dia que mais apreciava.  Ao ver a senhora à sua frente, no alpendre fresquinho da fazenda, sentada na cadeira de balanço, vasos de hortênsias azuis ao lado, a bandeja de prata já gasta de tanto ser areada, bules de café e leite, xícaras azuis de porcelana inglesa (Crown Clarence?), quis voltar no tempo.  Mal podia esperar para saber os detalhes daquela história que finalmente começaria a ser desvendada.  Foi recebido com um sorriso suave nos lábios.  Para Federico a cansativa viagem de avião até Campo Grande mais o longo trecho de quase quatro horas dentro de um pequeno carro alugado, no calor sufocante do centro-oeste brasileiro, estradas a sacolejar o tarimbado motorista cuiabano, nada disso representava um problema. Nem a incerteza de como seria recebido, nem onde se hospedaria no pequeno vilarejo de Naviraí, ofuscava a  felicidade de ver que a senhora gozava de boa saúde.  Para Guilhermina o encontro seria o resgate de sua história mas, principalmente, o coroamento dela.  Poderia, enfim, acreditar que um dia fora aprovada para as aulas e competições da Federação Equestre da Argentina.

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