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CONTO DE FÉRIAS - O Apocalipse e a Fênix - José Vicente J. de Camargo



O Apocalipse e a Fênix
José Vicente J. de Camargo

Frei Humberto já estava entrosado na rotina do convento. No início, ainda noviço, recém-saído do convívio familiar, foi difícil habituar-se às rígidas normas da clausura. Acordar as quatro horas da manhã para as primeiras orações, intercaladas com cânticos gregorianos, na capela do Santíssimo. Em cada verso sentia aumentar sua fé, elevando-a até o Senhor, para o qual pedia forças para enfrentar o dia, como também para reforçar os votos que fizera de serviço e amor ao próximo.

Terminado o período de noviço, ordenou-se frade na ordem dos Beneditinos, com o nome de frei Humberto da Santa Cruz. Já não se preocupava mais com o “tic-tac” do relógio para acordar pontualmente e não se atrasar nos rituais da capela, considerado falta grave, pois adquirira o hábito de despertar antes do piar dos pássaros. Para os demais compromissos, tampouco precisava dos ponteiros, dado que trazia os horários na alma, na ansiedade de falar com o Salvador. Atendendo o princípio de pobreza, doou seu relógio – com certa dor, por ser presente de seu pai − para um noviço recém-chegado. Também solicitara e recebera do frei Prior, uma cela mais rústica, sem janelas, no porão do convento.  Se qualquer dúvida arranhasse sua fé, dormiria no chão duro e jejuaria a pão e água. Não o fazia por castigo, mas para libertar-se, cada vez mais, dos vínculos com o mundo exterior e assim poder dedicar-se de corpo e alma às orações e, através delas, alcançar o sentido da vida que escolheu.

Com os demais irmãos frades só podia se comunicar o indispensável, ficando o convencional através da troca de olhares ou da mímica disfarçada durante as orações coletivas na capela, no claustro e no refeitório. De dia trabalhava na horta, no plantio de verduras e tubérculos e na cozinha, na feitura dos pães e das hóstias. Duas vezes ao ano, no Natal e no domingo de Páscoa, o bispo responsável pela diocese, rezava a santa missa, dava os sacramentos do batismo, da crisma, e, em casos excepcionais – quando se tratava de famílias tradicionais e bons contribuintes do dízimo – casamentos. Nesses dias, distribuíam-se aos fiéis, os famosos pães de centeio, assados nos fornos da cozinha. Eram as únicas oportunidades que os frades tinham de entrar em contato com a comunidade proveniente não só das redondezas, como também de bairros mais longínquos. Era um pessoal bastante heterogêneo, formado por pessoas de diferentes perfis e níveis sociais, desde chefes de família – alguns mais conservadores de terno e gravata e anel no dedo – outros mais “casual”, de tênis e jeans, com filhos pequenos a tira colo, estudantes −  alguns universitários, trabalhadores da indústria e da construção civil, comerciários, empregadas domesticas. Para a alegria dos frades − que viam nisso um futuro mais esperançoso para a igreja − a maioria era formada por pessoas jovens e de meia idade.

Frei Humberto aguardava esse dia com ansiedade, pois era a única ocasião que tinha de conversar com outras pessoas, principalmente as da sua idade. Gostava de interagir com elas, perguntando onde moram, afazeres, passatempos, planos futuros, procurando deixá-las à vontade sem abordar temas religiosos. Algumas eram convidadas a visitar a horta e a cozinha do mosteiro. Aproveitava esta ocasião para se atualizar sobre as notícias de fora, principalmente sobre os assuntos que apreciava como futebol, chegara a jogar como atacante no time da escola e um dos seus programas favoritos de domingo era ir ao estádio ver seu time ganhar, da música popular apreciava as sertanejas. A política e a economia não eram seu forte, mas tinha de estar atualizado e assim poder compreender melhor os problemas dos devotos, principalmente nesses dias quando dava a confissão.

Foi num desses encontros, que ficou a par da seria situação política do país, com partidos políticos radicais em lados opostos, brigando pela hegemonia política e também das notícias do exterior – vários atentados terroristas utilizando armamentos pesados, inclusive bombas, com alto número de mortos e feridos. Um dos informantes foi um japonês agricultor que elogiou bastante a horta do convento, informando inclusive que estava fazendo um estoque de legumes, para caso de estourar algum conflito armado no país. Outro relato veio de uma figura particular – o palhaço Piolho, artista do circo montado há dias nas redondezas do convento – que expôs sua preocupação com a queda de público, principalmente famílias, dado ao temor de brigas e tiroteios.

Nesta noite, na entrada do refeitório, frei Humberto acercou-se do Prior e balbuciou o que escutara dos visitantes. Este lhe lançou um olhar como a dizer, sim, já sei. Ao final do jantar levantou-se e, para surpresa de todos, pela quebra das regras, anunciou que tinha algo importante a comunicar:

“O Brasil e o mundo estão passando por uma fase conturbada nas áreas política, econômica e social, inclusive com previsão de conflitos armados. A nossa arma é a oração e o sacrifício. Portanto a partir de amanhã ficaremos reclusos em nossas celas por três dias jejuando a pão e água, pedindo a Deus que ilumine todos os envolvidos nesses conflitos para que busquem a paz e a harmonia em vez da guerra e da destruição.”

Já em sua cela, frei Humberto dispensou o catre, preferindo dormir no chão duro, acrescentando algo a mais de si no sacrifício pela paz.

No terceiro dia de retiro, ignorando se dia ou noite, dado a falta de janelas, frei Humberto ouve um estrondo seguido por um forte tremor no piso e nas paredes, não distinguindo ao certo se é real ou imaginário, dado estar meio tonto pelo jejum abraçado com tanta devoção. Um segundo tremor, mais forte ainda, se faz sentir. A escuridão é total. Ascende a vela que ficava ao alcance da mão, abre a porta com dificuldade, por estar emperrada, e uma nuvem de poeira o toma de sobressalto dificultando a respiração. Tenta pôr as ideias em ordem sobre o que pode estar acontecendo pois, sempre ouviu dizer que o mosteiro, apesar dos seus quase duzentos anos, tem uma construção bem solida. No corredor que dá para a escada que sobe ao térreo, esbarra com frei Antonio que trêmulo e sagrando no rosto lhe agarra com força balbuciando: “É o Apocalipse! É o Apocalipse! Enfim chegou! ”

Frei Humberto, apesar da fraqueza, o arrasta escada acima, abrindo espaço entre blocos de pedras, tijolos, ferros retorcidos, pedaços de estuques pintados que reconhece serem das paredes e do teto da nave principal da igreja, estilhaços de vidros multicoloridos esparramados por todos os lados. Ao longe ouve sirenas tocando que lembram sua infância assistindo a filmes de guerra.

Ao chegar ao térreo, depara com uma visão devastadora. Parte do teto, da cúpula central, das paredes da fachada – incluindo uma das torres - estavam destruídas. Uma neblina esbranquiçada e poeirenta o envolve dando-lhe um nó na garganta. Só então percebe, pelos raios de luz furando aquele véu funesto, que a manhã já dera seus primeiros passos. Frei Antonio, ainda dependurado a ele, levanta o braço trêmulo apontando o sacrário onde a luz vermelha, anunciando a presença do Pastor, mantém seu brilho como um farol num mar de destruição, oferecendo salvação aos náufragos perdidos, balbucia novamente:

É o Apocalipse! É o Apocalipse! Enfim chegou! ”

Frei Humberto estranha a frase que mais lhe parece uma heresia, mas no momento sua preocupação é com os demais frades do convento. Acomoda Frei Antonio num resto de banco ainda intacto e sai, contornando os escombros, a procura dos irmãos. Mais adiante vislumbra vultos igualmente saltitantes, contornando os escombros. Se benze em agradecimento pela vida, quando aproximando, vê que não são frades, mas sim um grupo de pessoas, entre elas o agricultor japonês que apreciou a horta bem cuidada, e outros apavorados, com crianças chorando, rogando a proteção divina.

O japonês, que se apresenta como Nakajima, conta engasgando, que ouviu de terceiros tratar-se de uma bomba de alta potência, cujo epicentro deveria estar a uns duzentos a trezentos quilômetros dali. Sugeriu a todos que permanecessem no local, pois tudo lá fora estava devastado, alguns sobreviventes saqueavam o que pela frente encontravam. O ar, ácido e malcheiroso, mal se podia respirar. Não havia transportes, dado a falta de combustível e eletricidade pela explosão dos postos de abastecimento, dutos e redes elétricas. Diz que vai tentar chegar na horta para colher o que estiver bom e preparar um sopão de verduras e legumes para acalmar os nervos e ficar no Zen.

Frei Humberto pede a todos que se acomodem como puderem e rezem ao Pai pedindo forças para sobreviverem. Ele vai tentar localizar os irmãos na esperança de achá-los com vida.

- “Não é preciso! ” Diz uma voz vindo do lado oposto ao grupo, justamente onde se encontra o claustro, o refeitório e os dormitórios do convento.

- “Está tudo em ruínas! Reconheci os corpos sem vida dos frades. Infelizmente não sobrou ninguém vivo deste lado.”

 Frei Humberto reconhece a figura do palhaço Piolho. Mas então, quer dizer, que só ele e frei Benedito se salvaram por estarem em retiro nas celas do porão, pensou:

“Destino ou mão de Deus? ”

E lembrou-se da frase de frei Benedito:

“É o Apocalipse! Enfim chegou! ”  
Seria uma heresia ou uma revelação Divina do juízo final, para um mundo cada vez mais afastado dos princípios da moral cristã?

Deste rodamoinho de dúvidas e contradições que sua mente revolve, lhe salva o grito do palhaço que ecoa por entre os escombros do que era há pouco era um santuário de fé e esperança:

Oh Nakajima! Ascenda o fogo que vou procurar o estoque de aguardente que os frades destilavam para você por no sopão. Só assim nós podemos sobreviver”.

Os visitantes, trêmulos e indefesos diante da catástrofe, acenam positivamente, de olhos arregalados pela visão esperançosa da fênix surgindo das cinzas... 


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