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MANÉ BAIANO - Jeremias Moreira


MANÉ BAIANO
Jeremias Moreira

Minhas aulas do curso primário, no Segundo Grupo Escolar de Taquaritinga, eram no período da manhã. Voltava para casa na hora do almoço. Tinha como rotina tirar o uniforme, vestir uma roupa surrada, almoçar, fazer a tarefa da escola e depois ficava livre o resto da tarde.  Às vezes brincava na rua, jogava bola no campinho da rua de baixo ou ia nadar no ribeirão. Mas, a maior curtição era andar de carroça com o Mané Baiano. Eu ficava na porta do armazém do meu pai a espera dele e quando via a carroça apontar lá na esquina era certeza de uma tarde movimentada.

Meu pai tinha um armazém e comprava e vendia cereais. Diariamente havia pedidos que precisavam ser entregues. Naquela época não havia asfalto e as ruas eram de piso de terra. Usavam-se as carroças e as charretes como meio de transporte. Em geral cada comerciante tinha um esquema com um carroceiro. Quem atendia meu pai era o Mané Baiano, um tipo alegre, brincalhão e muito popular na cidade. O cavalo que puxava sua carroça era um baio, grande e pomposo, que se chamava Petibom. O bicho adorava macarrão e como existia essa marca, daí seu nome. Mas o que impressionava era o entendimento entre os dois. Mané conduzia o cavalo pelo comando de voz. Petibom entendia tudo o que ele pedia, mas só atendia ao comando dele.

O Mané era um trovador nato. Tinha uma grande facilidade de criar trovas. Do alto da sua carroça se dirigia às pessoas com quem cruzasse em trova.  Se passasse por uma moça poderia dizer:

O amor é estriquinina,
Que voeja sem ter asa,                                       
Quero ter você, menina,     
E levar pra minha casa.

Ou, então:

A lua é emissária,
Do meu canto de amor,
Você é a destinatária,
De todo meu ardor.

Às vezes alguém se ofendia, mas ele era cara de pau e tratava desfazer o mal entendido na base da trova. Um dia, na venda do Zé Portuga, se encontrava um caboclo que não gostou do que ouviu:

Não temo homem nenhum,
Nem do que possa fazer,
Se abelha faz zum, zum,  
Eu adentro para rebater.

No rodeio logo ao lado,
Que topei boi Soberano,
Estirpe de boi malvado,
Mas, sou rei veneziano.

O homem achou que era com ele, pediu respeito e encarou o Mané. Ele saiu de banda e emendou:

Nem tudo que sobe, desce,
Nem tudo que foi, voltou,
Nem tudo que planta cresce,
Nem está aqui quem falou.


Não tenha destempelho, 
Nem te mostre avexado, 
Siga um bom conselho,
De carroceiro afamado.

O pessoal presente desandou a rir e o homem se rendeu à irreverência do Mané. Certa vez, na porta do ginásio, disse a um grupo de estudantes:

Não é por andar com livros,
Que faz da gente engenheiro,
Eu já folheei muitos deles,
E sou apenas um carroceiro.

Com quem ele gostava de implicar era com a Florzina, uma solteirona enorme, que tinha o corpo peludo, e que trabalhava na padaria do Sinésio. Assim que avistou a mulher pôs-se a trovar:

Não temo assombração,
Nem a bruxa nariguda,
Assusta-me a escuridão,
E velha, gorda e peluda.

Dessa vez a Florzina estava preparada. Havia guardado um balde de pedregulho e pôs-se a atirar contra a carroça. Aflito, o Mané gritava para o Petibom acelerar o passo. Mas, assim que se viu fora do alcance das pedras, gritou de longe:  

Plantei pé de tremoços,
Nasceu um de ananás,
Moças, buscam os moços,
Mulher velha, o satanás.

Alegre e brincalhão, Mané Baiano não perdia oportunidade de fazer trova e bulir com as pessoas. Porém, a vida caminha, às vezes como um tsunami e somos engolidos pela sua força. Houve o êxodo rural por volta dos anos 1950/60. As cidades cresceram, se urbanizaram, o asfalto chegou a suas ruas. O país se industrializou, diversas montadoras instalaram-se por aqui e o carro assumiu importância na vida das pessoas. As carroças e as charretes ficaram anacrônicas, perderam espaço, foram escanteadas. Meu pai foi o último comerciante a dispensar a carroça. E, não por sua vontade, mas por um trágico acidente.

Certo dia, o Tonico Storti chegou do sitio no seu caminhão Ford F100 e estacionou na frente de sua casa, na Rua José Bonifácio, uma descida. Ele puxou o freio de mão do veículo, desceu, entrou em casa, mas não deixou as rodas dianteiras esterçadas para a calçada, como era o seu hábito. Enquanto isso, o Mané Baiano saiu do armazém do meu pai, colocou o último saco de arroz na carroça, fez uma brincadeira qualquer, subiu e deu o comando para o Petibom partir. Nesse mesmo instante, por alguma razão imponderável, o freio de mão se soltou e caminhão despencou rua abaixo. Encontrou com a carroça na esquina e atingiu o Petibom, em cheio.

Desgostoso com um mundo que não era mais o seu e abatido com a perda do seu estimado cavalo, Mane vendeu tudo o que lhe restava e voltou para a Bahia. Em meio a tudo isso eu também mudei. Deixei de ser menino, meus interesses passaram a ser outros e fui estudar fora. Não estava na cidade para consolar meu amigo quando ocorreu o acidente. O Mané e o Petibom fizeram parte de bons momentos que vivi na infância.


Hoje me dou conta que sequer sei o seu nome verdadeiro. Mas, acho que não importa. Para mim ele será sempre o Mané Baiano.

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