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Recomeços - Ises de Almeida Abrahamsohn


Recomeços
Ises de Almeida Abrahamsohn  

Alípio entrou em casa  sem fazer barulho. Derreou-se numa cadeira da cozinha. Eram três da manhã. Não foi para a cama. Mesmo que quisesse não conseguiria dormir.

Estava ainda empolgado com a festa que lhe fizeram os camaradas do partido. O uísque gerara um zumbido leve na cabeça não de todo desagradável.

Uísque bom o da festa - pensou . O do cavalinho branco, legítimo! Não aquela zurrapa falsificada no Paraguai e vendida no comércio local.”

Quedou-se ali em frente a um copo d’água  e  deixou a inocente bebida  acalmar-lhe o estômago enquanto analisava  a  vitória. Tinha lutado muito para chegar àquele dia. Vencera facilmente a eleição para prefeito, ali em Juara, no extremo oeste de Mato Grosso. Habilmente  angariara o apoio de  dois possíveis  oponentes com  algumas promessas e muita lábia. Conhecia bem as fragilidades humanas,  inclusive as próprias.  Queria genuinamente ajudar o povo da cidade. Os fins justificam os meios? Não mais acreditava nisso, mas em política havia que se fazerem algumas concessões.

Alípio afrouxou o cós da calça e chutou os sapatos. Finalmente podia relaxar. Congratulou-se intimamente pelo sucesso e lembrou o quanto devia à Sonia, sua mulher.

Na verdade, apenas para a mulher contara o seu passado. Passado de quando era  outro, aquele jovem de vinte e poucos anos , Nelson Marques, codinome Nelsão Urbano para os companheiros da luta armada.

Não gostava de relembrar as angústias  daqueles tempos.  Tinha se livrado dos pesadelos noturnos, mas  a bebida  despertava-lhe o passado.

Estranho isso, para a maioria o álcool embota o raciocínio e oblitera a memória mas, para mim,  funciona como um  re-Wind acelerado até trazer aqueles terríveis dias de volta.

A tensão constante, os mosquitos ferozes, eu e os outros, caminhando furtivos pela floresta densa, nos acercando dos caboclos e ribeirinhos, sempre com medo até confirmar que  não eram  hostis. Dias e dias a comer o peixe do Araguaia, cozido ou socado com farinha d’ água. Às vezes alguma caça trocada com os caboclos. De povoado em povoado, os caboclos conquistados com alguns remédios e com o talento do companheiro Chico Boticão ao lhes aliviar  as dores de dentes. O cerco da polícia se fechando. Chegando ao ultimo povoado,  a notícia que meganhas já tinham ali passado e estavam no encalço. Entramos na selva para acampar e dormir. Madrugada alta veio o Jurandir, pescador e mateiro avisar que os do exército tinham voltado à aldeia.  

Eu não aguentava mais.  Enquanto os outros se arrumavam para se embrenharem mais fundo na floresta, comprei do Jurandir uma canoa  e apenas com um remo e umas bananas deixei-me levar rio abaixo.  À noite encostava a canoa e dormia no fundo. Perdi a noção do tempo.  Arrastei-me pelo barranco do tosco cais de um povoado e desmaiei. Foi a índia Luzia que me recolheu  e tratou por cinco dias. 

Lembro bem da Luzia,  magra,  vestido desbotado direto sobre o corpo nu  e  pés descalços de sola grossa  trazia sempre o  rosto  impassível. Nunca sorria e falava o mínimo,  mas  trazia água, fubá cozido e banana amassada. Ajudou-me  a levantar e, não sei de onde,  me trouxe calção e camiseta  puídos e desbotados e umas sandálias de dedo. Vestira-me como um daqueles mesmos do povoado. Ainda me cortou toscamente o cabelo e aparou a barba.  Olhei-me no  pequeno espelho e não me reconheci. Tinha emagrecido dez quilos  no meu corpo de um e setenta,  o cabelo castanho  escurecera e  o rosto  tinha rugas antes inexistentes. Ainda bem, mais fácil de escapar. Não tinha o que dar à Luzia. Deixei-lhe a canoa.

Nelson andou  até a estradinha e pegou carona em um caminhão carregado de banana e mandioca.  Trabalhou de carregador, feirante, cortador de lenha, o que desse, até chegar a  Juara após peregrinar durante dez meses.  Arrumou emprego no posto de gasolina, o único da cidade. O problema eram os documentos.  Não tinha nada. Tinha jogado tudo no fundo do Araguaia.

Mas o dono do posto estava interessado:  o rapaz sabia escrever, contar, guiar e principalmente fazer  consertos simples  nos motores.  Contara ter aprendido  na oficina do pai, quando  morava em Diadema. Dona  Sonia , mulher do dono, era funcionária da  prefeitura e  ajudaria. De fato,  renasceu  como Alípio  de Melo  no  registro de Juara.   Trabalhou no posto cinco anos e se tornou o braço direito do dono.  Até que um infarto  fulminante deixou  Dona Sonia viúva. Alípio, funcionário fiel e indispensável  continuou a  tocar o  lucrativo negócio.

Alípio já tinha percebido que Sonia e ele eram praticamente da mesma idade, aí por volta de uns  trinta e cinco anos.  E Sonia também começou a se interessar pelo  rapaz  moreno e diligente  que  encontrava pelo menos três vezes por semana.  Intuía, pois que não era boba, que  Alípio tinha um passado que  a todos escondia . Desconversava quando a conversa  girava sobre família,  estudos , infância etc. 


Sonia  hesitou mas  mesmo lá naquele fim de mundo ela  tinha lido e ouvido sobre os  jovens guerrilheiros que foram caçados  pelo exército. Contanto que Alípio não fosse um  assassino ....  Sentia-se cada vez mais atraída por ele.  Teria que dar o primeiro passo.  E assim ela decidiu.  Namoraram, o tempo  ditado pelas convenções da viuvez  e Alípio  só lhe revelou  o passado  quando  decidiram casar-se.  Também lhe contou que, de todo o  grupo  do Araguaia, apenas ele sobrevivera.

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