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O lojista misterioso - Ises de Almeida Abrahamsohn


O lojista misterioso
Ises de Almeida Abrahamsohn

Jurandir não inspirava muitas simpatias na pequena cidade.  Apresentara-se há cerca de dois anos como representante de uma firma de café. Hospedou-se no hotelzinho durante uns dois meses e pegou alguns pedidos de comerciantes locais que nunca receberam a mercadoria. Parecia ter dinheiro suficiente para se estabelecer e assim o fez.  Montou um comércio de artigos domésticos e variedades. Dois rapazes locais atendiam os fregueses.  Ele mesmo, raras vezes aparecia na frente da loja e passava a maior parte do tempo no escritório dos fundos. Pagava os salários em dia  mas conversava apenas o essencial com os dois empregados. Para residência alugou casa modesta de dois dormitórios próxima à loja.

         Ao fim do expediente ia às vezes tomar algum aperitivo  no bar do Luís na praça principal.  Não encorajava conversas pessoais, nem dava pistas de seu passado e tinha predileção por discutir futebol ou  outros esportes. Tinha opiniões definidas sobre técnicos e jogadores  mas  nunca  ao ponto de se deixar envolver em discussão mais acalorada.  Muitas vezes permanecia ali, taciturno,  apenas ouvindo a conversa dos outros.

         Os frequentadores do bar tentavam em vão descobrir mais sobre  o forasteiro. Tudo nele era elusivo.  O  palavreado era vagamente nordestino e a idade difícil de definir,  beirando  os quarenta ou talvez mais. Era magro, de estatura mediana e tinha  feições caboclas: pele morena, cabelos  pretos e lisos e  o rosto escanhoado.  Marcantes e  desconfortáveis  eram os olhos de pálpebras repuxadas e oblíquos que jamais retornavam o  olhar do interlocutor. Nunca o viram armado, mas sabia-se que tinha  uma arma em casa e outra no escritório.

Dona Ernestina, discreta senhora de meia idade, fora contratada para  cozinhar  e  demais  serviços na casa alugada. As vizinhas  a martelavam com perguntas: o que o patrão fazia de noite, se tinha fotos de família em casa, se lia  e o que lia. As respostas eram  invariavelmente banais e negativas. O homem parecia não ter afetos, e do passado não  exibia   indícios.

Com o tempo, o pessoal da cidade acabou se acostumando com o misterioso Jurandir.  Já frequentavam a loja e respeitosamente o cumprimentavam  na rua. Algumas solteironas até começaram a se interessar.... Afinal tinha seu próprio negócio, nunca o haviam visto  bêbado ou perto da zona  e, embora caladão, poderia ser um bom partido.

Entretanto avizinhava-se a época das eleições. A cidade receberia um comício do candidato a governador apoiado pelo prefeito. Na comitiva estavam Paulo  e  Marcos, jovens engajados na política que haviam participado dos movimentos universitários de resistência à ditadura. Tinham sido presos e submetidos a interrogatórios no  tristemente famoso DOPS- delegacia de ordem política e social -  durante um mês.  Foram finalmente  liberados quando  o delegado se convenceu  de que  não tinham ligações com os grupos ativos ou armados.

À noite Paulo e Marcos foram ao bar do Luís encontrar o pessoal do diretório  local do partido. Súbito, viram entrar  um sujeito que se instalou ao balcão e pediu uma cerveja. Paulo e Marcos se entreolharam. Primeiro haviam reconhecido a voz. Em seguida se aproximaram para olhar-lhe  o rosto mais de perto. Não havia dúvida, era mesmo ele, que conheceram  pelo codinome  Juvenal, o índio, aquele que girava a maquininha de choques na sala de torturas.  Voltando à mesa  Marcos perguntou quem era o cara lá no balcão.  Os locais se apressaram em contar  os mistérios que cercavam o dito Jurandir . Aparentemente o algoz não reconhecera  os   dois rapazes entre as muitas vítimas que  torturara.

Paulo e Marcos gritaram: Juvenal! Tá lembrado do DOPS?  Já contou  o que você fazia por lá ?  As conversas emudeceram. O Jurandir / Juvenal virou-se, encarou os dois  e, sem retrucar,  rapidamente saiu do recinto.


No dia seguinte, perceberam o seu desaparecimento.  Sumira da cidade  levando o dinheiro em caixa da loja e uma mala de roupas. 

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