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ARMAZENANDO VENTOS - Oswaldo U. Lopes



ARMAZENANDO VENTOS
Oswaldo U. Lopes

         Dia destes a presidente Dilma deitou falação sobre energia, supostamente sua área de conhecimento, foi um desastre. Justificou a famosa charge do Obama falando ao telefone com ar absolutamente desolado;

“Alo! É da CIA, cancela o grampo da Dilma, não entendo porra nenhuma do que ela fala.”

        Pois é, ela começou a falar da dificuldade de armazenar energia, mas da possibilidade de armazenar água (que para ela é grátis) e com ela gerar energia elétrica e seguiu a falar da necessidade, urgência e benefícios que viriam do armazenamento dos ventos de modo a gerar energia elétrica pelo movimento eólico quando necessário, não dependendo da  presença momentânea deles, nem sempre em horários convenientes, para produzir a tão necessária energia.

        O fazia com o mesmo ar circunspecto e sério com que saudou a Arca de Noé como extraordinário invento da ciência com alcance social.

        Tanto bastou para que um grupo de estudantes da POLI se lançasse ao trabalho de armazenar ventos. Pronto! A solução dos problemas brasileiros ao alcance da mão, guardava-se os ventos que seriam soprados, quando e como necessário.

        Trabalharam com afinco e estudo. Cálculos e mais cálculos, modelos e mais modelos, requisitaram até da EMBRAER um par de ventiladores de estudos aerodinâmicos para comprovar suas teorias.

        Já 2016 ia em curso quando concluíram seus trabalhos e para evitar serem misturados com o carnaval e suas estripulias, deixaram a apresentação magistral para fins de março e por fim anunciaram a data de 30 de março.

        Por motivos logísticos e diante de uma vultosa concentração de políticos, populares e da imprensa ansiosos pela solução do problema e salvação da pátria, pediram um adiamento de 24 horas para sua apresentação.

        Fez-se um terrível Oh! De frustação e ansiedade, mas voltaram novamente no 31 de março, agora preocupados com a coincidência da data com o aniversário da Redentora. Por isso, foi com alivio que ouviram novo pedido de adiamento de 24 horas que informaram os brilhantes engenheiros, seria o ultimo e derradeiro.

        A massa convergiu no dia seguinte, agora imensa e numerosa para o vão do MASP. Tudo parado, transito, pedestres, cachorros e gatos, estes nas sacadas. Não havia espaço sequer para moscas.

        O engenheirando então pigarreou e anunciou o famoso projeto de armazenar ventos.

- Nesta data de 1º de abril e honrando este dia ate a ultima consequência, anunciamos        que o projeto de armazenar ventos é uma grande mentira como também o é este governo que desde antes de começar mente e continua mentindo como se o tempo e o ano só tivessem dias primeiros de abril!


OS – Qualquer semelhança com o BOIMATE da revista veja de 1983 não é mera coincidência.

A GOVERNANTA - M. Luiza de Camargo Malina


A GOVERNANTA
M. Luiza de Camargo Malina

Lembro-me do dia em que ela chegou a minha casa.  Altiva na humildade e bela no encanto do misterioso silêncio que a envolvia. Uma meia idade confirmada apenas nos papéis. A jovialidade vibrava nas atitudes resolutas, remetia-me aos tempos colegiais.

Divertia-me. Na coragem esquecida, apanhei os álbuns desgastados na cor, não na lembrança, apenas no manuseio tentar encontrar com quem ela se parecia.
A cadeira de balanço, pelas manhãs após a primeira refeição lia os jornais, eu nada escutava, precisava em sua voz encontrá-la nos pequenos registros da memória. Terminadas as notícias e os horóscopos em que ela “inventava previsões” percebi que o anzol que jogava quase eu o agarrava. Quem sabe na próxima!

Assim se passavam dias seguidos de semanas e meses, com a última leitura às dezenove horas de algum pequeno conto.

A cadeira de balanço havia sido trocada por outra com ajustes automáticos, imensa, sentia-me um rei num trono sem rainha, ou melhor, com uma rainha destronada à espreita. Ficava na ponta leste da imensa sala de vinte metros de comprimento, aclareada pelo sol da manhã. Pouco caminhava. Os móveis continuavam no mesmo lugar. Já não sentia mais o cheiro da poeira.

Os finais de semana traziam os amigos, cada qual com notícias apimentadas às íntimas sobremesas.

O inesperado é sempre bem vindo quando se trata de interesse pessoal esperado. Assim foi. Belinha, uma prima da mesma idade, da mesma escola,
Qual não foi minha a surpresa! Eu estava ainda entre o cochilo da tarde e o acordar quando ouvi vozes familiares sendo recebidas pela Governanta, como assim gostava de ser tratada. Muitos risos e burburinhos de reencontros. Sons conhecidos.

Um turbilhão e a mente com óculos de grau altíssimo desvendou o mistério – Elizabeth – Elizabeth esteve o tempo todo ao meu lado, acabei de fisgar o anzol. 
 Anzol que estava enroscado na pedra das lembranças da mocidade. O leve facho de luz, diria, um pequeno milagre fez com que a tênue visão retornasse.

Foi o sorriso dela, foi a voz macia e rouca, foi o seu olhar sereno, que me devolveu a vida”.



O Zodíaco e a Rosa Vermelha - José Vicente J. de Camargo



O Zodíaco e a Rosa Vermelha  
José Vicente J. de Camargo                          

A rosa vermelha destacava-se no vaso de boca fina em cima da cômoda da sala de visitas. Era um local nobre da casa e todos que entravam e saíam tinham seu olhar atraído pela sua cor viva de sangue que automaticamente instigava o olfato à procura do seu perfume adocicado.  

Ele sempre a trazia, decorada com raminhos verdes numa caixinha apropriada, em suas visitas diárias. Sabia da preferência dela por rosas e da cor vermelha. Nada a ver com a crença popular de que rosa vermelha é símbolo de amor ardente ou coisa que o valha. Era uma simples questão de gosto e estética. Além do mais, gestos exagerados de afeto iam contra sua natureza libriana.

Apesar de não acreditar em astrologia, tinha de concordar com algumas das características atribuídas aos do signo de libra:

 Procuram evitar os extremos!

Pois sua posição de conforto era ficar no meio ou, como dizem os críticos, “em cima do muro”.  Não demonstrar preferências, pelo menos aparente, para qualquer das partes em questão. Considerava-se também uma pessoa calma, ponderada, avessa a encrencas, um pouco retraída e que detestava incomodar os outros com pedidos de qualquer natureza.

Ela, no inicio do namoro, o recebia na sala com um sorriso faceiro, um selinho dengoso e corria a trocar a água do vaso para colocar a nova rosa ainda em botão. Depois o levava à copa para o lanche da noite, os comentários das novidades do dia e o acerto do programa do final de semana. Na despedida na sala, as trocas de juras de amor acompanhadas de confidências da vontade dos corpos nus unidos na paixão crescente.

A rosa vermelha inicia lentamente a desabrochar a primeira pétala!

Porém, com o passar do tempo, as carícias dela foram diminuindo. Os selinhos se tornaram leves roçar de lábios e as confidências se abreviaram.  O lanche já não tinha mais as novidades preparadas com esmero dado, segundo ela, o trabalho excessivo, a academia lotada, o transito cada vez mais complicado. E quando ele iniciava seu relato do dia, ela o interrompia querendo saber se resolveu os assuntos pendentes, se tomou providências, se fixou as datas, se já fez isso, quando fará aquilo, enfim uma ladainha de questionamentos que lhe tirava o prazer de estarem juntos. É típico do signo de Aires, pensou: mandona, apressada, impaciente ─ quer tudo para já.

Quando ele procurava desviar o assunto, ela voltava a comentar suas características librianas: muito calmo, indeciso, avesso a assumir riscos e responsabilidades. Nesse ritmo não chegaria a lugar algum...

Na despedida, o beijo ia se tornando cada vez mais frio. Até que um dia, a campainha não mais tocou. A rosa vermelha pendeu inerte e deixou cair as primeiras pétalas. A água do vaso escureceu, o perfume virou lembrança.

No firmamento, as constelações do Zodíaco brilham majestosas como sempre. Áries e Libra, que influenciam comportamentos nem sempre semelhantes, se entreolham cautelosas. Zeus, deus dos deuses e dos homens, zelando pela paz universal, envia seus raios a ambas pedindo reflexões. A Áries que a impaciência não leve a julgamentos precipitados e a Libra que use seus dons de mediação que será recompensada.

Conselhos estes acatados sem ressalvas e transmitidos aos súditos terráqueos.

Então, uma noite, a campainha volta a tocar.

A rosa vermelha retoma seu lugar de destaque na sala de visitas.

 As caricias se reencontram abraçadas no aroma penetrante do perfume floral.


E assim tem sido há muitos anos. Um não tendo a coragem de viver sem o outro...

A POEIRA DA ESTRADA - M.Luiza de Camargo Malina


A POEIRA DA ESTRADA
M.Luiza de Camargo Malina

“Ela caminhava solitária pela beira da estrada. Não carregava malas, nem acessórios.   A poeira encobria sua silhueta, mas seus passos determinados levavam-na adiante.” 

Adiante, sua meta. A noite estendia-se furiosa no vento noroeste. A coragem superou os toques inconvenientes do passageiro de viagem. Refletia sobre o ocorrido e a decisão acertada, temia que ele fizesse o mesmo. A bagagem, sem ninguém a reclamar, será encaminhada a um guarda volumes na rodoviária da pequena cidade, depois a retiraria. Faltavam muitos, mas muitos passos.

Os passos apressadamente cansados deram lugar aos mais largos. Os longos cabelos negros, na noite que tudo escurece, remetia a sua silhueta o parecer de uma freira.

Assim caminhou confiante na estrada vicinal que lhe empoeirava os pulmões. Os pensamentos ao contrário aclaravam os passos com o brilho dos vaga-lumes.

Distraída assustou-se com um relincho. Aos poucos a visão acostumada à escuridão, denotou a figura de um cavalo. Um vulto alto trajando uma longa capa a cumprimentou oferecendo ajuda. Sôfrega aceitou. Seguiram o caminho desconhecido em direção ao clarão no horizonte.

O silêncio, paralelo na poeiroza estrada, respeitavam-se um ao outro.


Tem sido assim há muitos anos. Não tenho coragem de viver sem ele.”

ESTRANHA REVELAÇÃO: UMA GRANDE MENTIRA - Oswaldo U. Lopes


ESTRANHA REVELAÇÃO: UMA GRANDE MENTIRA
Oswaldo U. Lopes

         Luís Cláudio tinha 55 anos quando se casou com Ana Cláudia de 25. Ele respeitado cirurgião de tórax, ela jovem residente, um pouco deslumbrada. Ambos trabalhando num célebre hospital privado de grande renome.

        Parecia coisa de cinema americano, consultório no próprio hospital, cirurgião de TORAX, ou seja, cirurgião de tudo que estivesse dentro do tórax, não importando se coração, pulmão, gânglios, timo ou o que fosse. Numa época de especializações sua formação genérica era de altíssima qualidade.

        Já tivera mais do que dobro da idade dela. Há cinco anos, quando ainda não se conheciam, a proporção era de 50 para 20, com outros menos cinco chegava ao triplo, 45 a 15. Gostava de fazer estas contas até para perceber que essas proporções astronômicas não mais se repetiriam, embora a biologia viesse a aparecer no lugar da matemática simplista.

        Agora tinha 65 e ela 35. O resultado era perceptível, não tremia, tinha até a mão firme, mas já usava uma espécie de luneta para operar. Ela com 35 era mulher da melhor idade, não tinham filhos, haviam casado um com o outro e ambos com a medicina. A próxima conta era 70 a 40 e ele já não encarava a situação com bom humor.

        Ainda por cima aparecera não a Margarida, mas o João Paulo jovem cirurgião, inexperiente, mas bem apessoado. A cabeça começou a ensimesmar e pensar coisas que não devia.

        Lembrou-se até da história do caipira e do galo velho. O caipira tinha uma bela coleção de galinhas poedeiras e um único galo já avançado na idade. Matutando, matutando, o caipira resolveu pela aquisição de um galo novo e unindo o pensamento ao ato comprou o dito cujo e soltou-o no terreiro no meio das galinhas e do galo velho. Foi aquele auê! O mais novo começou a rodear o mais velho, riscando as esporas no cimentado e abrindo as asas ensaiou um voo de capoeira.

        O mais velho não se deu por achado e foi falando:

- Isto aqui é uma granja civilizada e de alto nível. Não vamos nos acabar numa disputa sanguinolenta. Vamos isto sim disputar uma corrida em torno do terreiro. Três voltas, quem vencer fica com o galinheiro inteiro para si e não tem mais discussão.

        O galo jovem olhou o oponente com desdém e topou na hora. Deram a partida com todas as galinhas olhando curiosamente. Como era de esperar o galo jovem saiu na frente e galo velho corria atrás como numa perseguição.

        Foram interrompidos por um tiro certeiro e uma exclamação desalentada:

- É o terceiro galo bicha que eu mato neste mês.

        Deu risada consigo mesmo, mas percebeu que o tempo agia contra ele, teve vontade de se afastar e olhar de longe, como no filme italiano esposa-amante.
        Ligado há muito tempo aos médicos sem fronteiras propôs sua ida para o Afeganistão. Apesar da idade tinha certeza de que seria aceito de imediato, o que mais precisavam no hospital era de um bom cirurgião de tórax e ele não era bom, era ótimo!

Ponderou a ela que a clinica estava com movimento baixo, a crise, a sua utilidade além-fronteiras e o tempo relativamente curto que estava oferecendo aos Médicos sem Fronteiras: três meses. Foi aceito com urgência e alivio imediato por ambas as partes: ela e eles.

Estava lá quando o Hospital foi bombardeado. Não se machucou, ficou apenas coberto de muita poeira, mas aproveitou a situação e lançou seu crachá nos escombros. Foi dado como morto sem mais delongas. Era sua chance voltou ao Brasil com documentos falsos, mas estranhamente regulares.

Passou a vigiá-los de longe e de soslaio, não era difícil, para todos os efeitos estava morto e bem morto. Pode ver com tristeza a aproximação do agora jovem casal, nada de indigno nem aviltante, ela era uma respeitável viúva que talvez não chorasse e se descabelasse o bastante, mas que diabos era muito jovem.


Não achou necessário se matar, bastava sair de cena como um velho ator canastrão. Não deixou por menos foi ser professor de cirurgia na Faculdade de Medicina da Bolívia em Santa Cruz de La Sierra. Não perguntem o que o caipira achou do desfecho.

Imigrantes. - Ises A. Abrahamsohn


Imigrantes.
Ises A. Abrahamsohn

Aisha  abraçou Yasmine   enquanto  o avião  chacoalhava ao passar pelas nuvens baixas carregadas de chuva. A menina chorava baixinho na completa escuridão.  Relâmpagos que pareciam mísseis  estouravam próximo   à  fuselagem. Aisha  respirava aliviada ao ouvir o trovão. Desta vez não era um míssil! O avião era um velho monomotor Antonov  de 1981 de seis lugares que voava  a  cerca de  1000 pés.  Tinha as luzes apagadas ou seria  alvo fácil para qualquer atirador  que  estivesse alerta. Ao lado de  Aisha estava  seu marido, Farid,  segurando  Samir o filho mais novo. Este, exausto de tanto chorar, adormecera.

 Laila, grávida  de cinco meses  ocupava  o banco traseiro. Laila era mulher de Naim, o piloto. Laila  tentava enxotar  do cérebro  as lembranças  das últimas semanas em Aleppo.  Chegar até a Turquia era a única chance de escaparem.  Há um mês ainda tinham esperança que o seu bairro seria poupado.  Mas  os bombardeios foram chegando cada vez mais perto. Há duas semanas, além da destruição, o reservatório de água  fora atingido. A cada dia, achar água potável tornara-se  um  esforço insano  e arriscado ao caminharem pelas ruas cheias de entulho.  Há uma semana as outras casas do mesmo quarteirão viraram escombros restando apenas a sua e a vizinha  onde moravam Aisha e a família.  Há um mês, seu marido, Naim,  havia sido contatado  por um dos grupos resistentes aliado dos curdos .  Laila entreteve a  ideia  de poder escapar para  a Turquia. Mas os combatentes  foram irredutíveis, apenas  Naim poderia  acompanhá-los. 

Laila sabia que Naim  tinha um plano alternativo de fuga. Na parte mais afastada  do aeroporto parcialmente destruído, Naim encontrara num hangar meio destroçado , um  velho monomotor  abandonado , provavelmente  de algum russo  que não lhe vira mais serventia, nem para sucata.  Esses velhos urubus eram bastante fortes  e Naim  sabia que se conseguisse restaurar o motor, o Antonov poderia voar os  200 km até Osmaniye. Mas Naim era piloto  e  a mecânica que sabia não era suficiente.  Lembrou-se de Farid , seu vizinho cristão.  Este tampouco entendia  de aviões mas era excelente mecânico.

E assim  Naim, devoto muçulmano e Farid, trabalharam durante três semanas no velho avião.  O motor estava em péssimo estado;  encontrar peças  era o maior problema.  Farid era de fato um bom mecânico  e conseguiu adaptar peças de carros e mais algumas que achou  nos escombros dos hangares vizinhos. Finalmente  conseguiu  fazer o motor funcionar e a hélice girar. Tinham que trabalhar  com cuidado para não chamar atenção  e mesmo andar pelas ruas era perigoso.  A dificuldade seguinte foi arrumar combustível. 

A única forma era o câmbio negro ou roubar.  Conseguiram alguns galões a peso de ouro. Testes para verificar se o Antonov voaria, não houve.  E mais, teriam que voar à noite com as luzes apagadas.

Ficaram à espera da sexta-feira, talvez houvesse menos ataques;  a estação de rádio turca anunciava tempo instável, ruim para voar mas melhor para escapar .  Traziam consigo o mínimo: documentos, dinheiro, alguma comida e  água. Tudo o mais  ficou para trás. Com roupas de lã e casacos grossos as crianças pareciam  pequenas trouxas.

Laila  olhou pela janela  suja. Via algumas luzes esparsas embaixo.  A viagem, pelos cálculos, duraria cerca de 2 horas. O velho motor  não dava mais que  100 km/hora. Já voavam há cerca de hora e meia.  Daqui a pouco cruzariam a fronteira.  O cuidado agora era não serem abatidos pelos turcos. Laila ouviu o marido falando ao rádio com a torre.  Portanto já estavam sobrevoando solo turco. Laila  rezava nas contas de seu terço enquanto Aisha murmurava suas preces, ambas para o mesmo Deus. Ambas sabiam dos perigos da aterrissagem.  Finalmente Naim escutou as ordens da torre. Acendeu as luzes e  após mais quinze minutos  viu as luzes da pista e recebeu  a permissão de pouso.  O velho urubu  aterrissou  tal  qual  elegante e destemida águia. 

Ao saírem do avião, Laila  e  Aisha beijaram o chão.  Tinham conseguido escapar.  O filho de Laila nasceria num país sem guerra. Yasmine e Samir  cresceriam  num país  livre.  

As duas famílias tinham alguns parentes no Brasil.

  Como seria esse país ?  Alguma coisa tinham visto pela internet.

Mulheres quase peladas nas praias ...

Será que todas andavam assim?

Nenhuma delas coberta com burka ou abaya, sequer com lenço na cabeça!

Futebol também tinham visto, os maridos gostavam, tinha um tal Pelé, este já devia estar velho e outro Neymar, com cabelo espetado, ganhava montes de dinheiro na Espanha!  

Também viram  cidades enormes, São Paulo, com gente de todas as cores andando apressadas e trânsito atravancado!  

Não tinham muito dinheiro:

Como iremos  sobreviver?  Mas o Brasil era um novo mundo e os outros tinham conseguido.


Eles também conseguiriam prosperar nessa terra de imigrantes.  

IMIGRANTES - Oswaldo U. Lopes

MIGRANTES
Oswaldo U. Lopes

            No sentido mais amplo somos todos os humanos, imigrantes. Desde os primórdios da evolução na Ásia Central em que o homem e a mulher caminharam para o que hoje conhecemos como Europa, ou pelo extremo norte através do estreito de Bering para a América, a humanidade esteve sempre caminhando.

            Motivos? Os mais diversos: fome, condições ruins de vida, doenças, escravidão, busca da fortuna, perseguições politicas ou religiosas etc. Entre nós o uso da palavra adquiriu a conotação restritiva para os imigrantes europeus ou asiáticos que chegaram ao fim do século XIX, inicio do século XX.

            É possível chamar a vinda para a América de escravos negros como imigração? No sentido amplo da palavra, sim. Claro que isto parecerá uma afronta e uma indignidade, mas é uma abordagem possível. Tomada em sentido geral, amplo a escravidão é uma chaga. No pormenor, lá onde o Diabo mora, os capítulos são escritos de outra maneira. Zumbi o grande líder dos Palmares tinha escravos. Parece que a lei em Palmares era de que o negro que chegava fugindo do cativeiro ficava livre e o negro que era apanhado, nas incursões dos guerreiros de Zumbi, em plantações e engenhos dos brancos continuava escravo.

            Mesmo o Senegal, onde o Lula chorou de cinismo ou ignorância, era um entreposto, lugar em que negros entregavam negros aos homens brancos, sem lutas nem caçadas, como muito bem lembrou João Ubaldo Ribeiro em artigo no Estadão. Nas lutas tribais o costume mesmo era matar os inimigos derrotados em combate. Com o aparecimento do homem branco iniciou-se o comércio em que a entrega de negros, para serem escravos, se fazia a partir dos próprios negros que haviam derrotado seus inimigos. A partir dai estabeleceram-se lutas com o objetivo de caçar inimigos tribais para depois entrega-los ao comprador português em troca de objetos de interesse para os locais.

            No âmbito da sociologia cínica tem gente que escreve e fala que a imigração forçada dos negros americanos resultou em melhoria da qualidade de vida deles. Mesmo com o massacre de quatro ou cinco gerações, os sobreviventes alcançaram um padrão econômico e social que, se seus ancestrais tivessem permanecido na África, não teriam alcançado. E o argumento trágico é: vejam as condições de vida e o padrão econômico dos países africanos nos dias de hoje.

            Mas, quem são afinal nossos imigrantes?   Nossos índios são os primeiros. Acho encantador a maneira como os canadenses se referem aos indígenas locais: “Canada First Nation”. Acho ainda mais encantador o respeito com que eles são tratados e, sobretudo como os próprios se sentem muito bem acolhidos pela, hoje, maioria branca. Vindos da Ásia Central os ameríndios são imigrantes de primeira mão. Os portugueses são também imigrantes mesmo quando desterrados. Os holandeses também o são, embora considerados invasores, alguns por aqui ficaram e sua miscigenação e visível no nordeste brasileiro. No período colonial houve também franceses, a cidade de São Luís tem esse nome não porque houvesse reis portugueses com esse nome, mas sim porque Luís XIII (o dos três mosqueteiros) era rei de França. Embora expulsos muitos por lá ficaram e inclusive ajudaram os portugueses na colonização do Maranhão.

            No  sentido restrito consideramos e chamamos de imigrantes os europeus e asiáticos que emigraram nos séculos XIX e XX por iniciativa do Estado brasileiro. Oriundos de diferentes etnias, regiões e países e com instrução e habilidades as mais diversas para cá vieram italianos, alemães, poloneses, finlandeses, noruegueses, letões, japoneses e muitos outros. No principio o incentivo era para trabalhadores agrícolas. O desenvolvimento da lavoura cafeeira no Estado de São Paulo é exemplo gritante dessa ideia, como também o é a cultura vinífera no Rio Grande do Sul ou a de maçã em Santa Catarina.

            Em Santa Catarina os nomes das cidades, por si mesmo, contam essa história ou nos remetem a ela. Blumenau, Brusque, Pomerode (de Pomerânia), Schroeder, Witmarsun, Joinville, Nova Veneza, Nova Trento (imigração austríaca). No Rio Grande do Sul, Nova Milano distrito de Farroupilha, conta a mesma história. De colonização mais antiga não são muitas as cidades desse estado cujos nomes, por si só, contariam histórias de imigração que, no entanto, é estridente na serra gaúcha. Nova Friburgo fala da imigração suíça-alemã, assim como Teresópolis e cidades do Espirito Santo, onde também aparecemos italianos e trentinos.

            Em suma um conjunto tão dispare e que se tornou tão harmonioso. Em contraste com os dias de hoje em que seus descendentes buscam avidamente o passaporte europeu, os imigrantes fizeram das tripas coração para se integrar a nova terra e falar a nova língua. Inúmeras pequenas histórias ilustram essa verdadeira epopeia. Em 1961 tive oportunidade de viajar pela BR111 e visitar cidades do estado de Santa Catarina. Recordo-me particularmente de Brusque e de sua imponente catedral, recém-inaugurada, em granito rosa que alias tinha baixa frequência. A maioria da população era protestante (luteranos, não crentes – há diferenças). Inqueridos os locais informavam que era uma homenagem a religião do país que os hospedara.

            Na família de minha mulher, na linha materna, que são Centolas oriundos de Bernalda, pequeno paese encravado nas montanhas da Basilicata, conta-se que lá havia, por volta de 1880, a profissão de aguadeiro que vendia e entregava água a domicilio. Com a chegada do progresso a prefeitura local, ouvidos os comunales, decidiu pela construção de uma fonte, de localização central que em nome do progresso acabaria, é claro com a profissão de aguadeiro. Após a unificação italiana além das dificuldades econômicas se multiplicaram também os jovens anarquistas e socialistas. Estes promoveram uma manifestação na cidade para destruir a fonte e assim preservar os empregos. Pois é, é antiga a ideia de obstaculizar o progresso em nome dos postos de trabalho.

            Fazendo um parêntesis, lembro-me bem de em 1974, estando em um Pub na cidade de Cambridge, em pleno verão ter ouvido do honorável e respeitado cientista Sidney Hilton, então Secretário da imponente Physiological Society que: “We (the British) are very proud of our inefficiency, because it means jobs”. Sidney Hilton tinha sido socialista quando jovem, tiveram que esperar por Margareth Thatcher para descobrir que esta frase não era de boa qualidade. Pena que ela tivesse usado métodos um pouco drásticos para provar sua tese.

            Lá onde estávamos, em Bernalda, o jovem Centola pensava da mesma maneira que Sidney Hilton, embora pela cronologia devêssemos dizer o contrário. Resultou numa refrega com os carabineri que por sua vez resultou num ferimento a tiro em sua perna. Jovem e mancando seria alvo fácil da policia que não usava, como não usa, métodos suaves. O jeito foi escondê-lo em casas amigas e, de noite, ir transferindo-o de paese em paese até que fosse possível embarca-lo para viver in Brasile.


            Dele se originou uma corrente migratória que partindo de um anarco-socialista deu, com o casamento com os Rossetti, oriundos de Montemurro, numa próspera Casa Bancária em Mococa. Um final feliz quando se diz que: se você não é socialista aos 18, não tem coração, se ainda é socialista aos 50, não tem cérebro. A frase é atribuída a Winston Churchill com toda razão. Alias Montemurro era uma prospera comuna da Basilicata semidestruída por um terrível terremoto em 1857 que resultou numa fortíssima imigração dos sobreviventes para a América do Sul e do Norte. Outro motivo que levou a imigração e suas pequenas e grandes coincidências e contrastes.

FOI NO CARIBE! - Carlos Cedano

 

FOI NO CARIBE!
Carlos Cedano

Propus pra Denise irmos a passar o fim de semana no litoral. Precisávamos conversar sobre nossas vidas. Após de dezoito anos de casados senti que algo não ia bem, estávamos distantes e frios na nossa intimidade, nossos diálogos pareciam de surdos, ninguém escutava o outro e quando um parecia estar escutando o entendia de modo diferente. O desentendimento se acentuou e a gente já não se achava nem nas próprias palavras, a conversas viraram um enredo kafkiano e as brigas de pior em pior.

A proposta de irmos para a praia foi um esforço pra salvar nossa relação. Achava que a proximidade dos amigos e familiares que, sob o pretexto de ajudar a salvar nosso casamento interferiam nas nossas conturbadas vidas. Ela aceitou de bom grado.

Descer até o litoral foi como uma trégua de algumas horas. Denise estava gentil e atenciosa, isso me criou a ilusão de um possível entendimento, torcia pra mim mesmo! Chegamos ao hotel e cada um foi pra seu quarto, mas antes perguntei pra ela a que horas gostaria de jantar. Ela respondeu que estava sem fome e que o melhor seria ir a um bar onde pudéssemos conversar sem interferências nem restrições e concordei.

Às dez horas da noite nos encontramos no bar do hotel, como estávamos em baixa estação o bar apresentava-se como lugar ideal, tinha muitos lugares para uma conversa privada e sem interrupções. Sem salgadinhos, nem tira-gostos, só vinho e agua mineral.

Denise foi direta, até o momento ela nunca tinha tocado no assunto que agora me contava, me disse que estava apaixonada por um cara que conheceu no último cruzeiro que fez sozinha para o Caribe. Foram amantes já durante a viagem e estava decidida a morar com ele, era um engenheiro italiano que trabalhava numa grande empresa de construção ferroviária em Milão. Queria partir o mais rápido possível e pediu minha compreensão pra facilitar a separação.

Quando perguntei quanto tempo se o conheciam me disse que dois anos, justo o tempo em que percebi que ela estava mudando! Pela firmeza de suas palavras me dei conta de que não adiantaria lhe pedir pra reconsiderar ou ficar. Ela estava bem decidida e meu amor próprio já tinha chegado ao limite.

Inesperadamente me disse que queria aproveitar que a noite estava quente e a lua em seu esplendor, subiria até seu quarto para botar um biquíni e ficar na areia frente do nosso hotel. Não falei nada e ela foi embora a trocar de roupa.


Pouco tempo depois fui até a praia e ela já estava lá. As ondas chegavam mansas e frias aos pés de Denise. O corpo teso erguia-se como esfinge morena tendo a lua a sua frente. Seus pensamentos estavam do outro lado do oceano naquele instante...

O ACIDENTE - Jeremias Moreira


O ACIDENTE
Jeremias Moreira

Posso dizer que na juventude fui uma espécie de metamorfose ambulante. Era um tal de entra e sai na Febem que até perdi a conta.

Quando meu pai se mandou ficou um buraco em minha vida. Não que ele fosse um pai fabuloso, mas viver com minha mãe não era bolinho e ele ajudava a segurar as pontas. Já minha mãe, se sentiu alguma coisa, foi alívio. Eles brigavam muito.

Eu estava com dez anos e a Ciça, minha mãe, começou a levar os namorados para casa. Cada tipo pior que o outro. E, duravam pouco. A Ciça era parada dura.

Um deles, o Pequeno, era do tráfico e me usou diversas vezes para entrega de encomendas. Ganhei alguma grana nessa parada. Aliás, nunca entendi esse apelido, pois o cara media um metro e noventa e cinco e pesava mais de cem quilos.

Ele também não aguentou a Ciça e deu no pé, mas ficamos ligados comercialmente. Vez ou outra fazia alguma entrega para ele.

Eu estava com quinze quando o namorado da vez foi o Fininho, um cara violento. Uma noite, ao chegar a casa, ouvi os gritos de minha mãe. Era o  Fininho enchendo minha mãe de porrada.  Não deu outra, passei a mão numa garrafa e estourei a cabeça dele.

Deu Febem no ato. Até a Ciçá ficou contra mim. Talvez eu fosse um estorvo que ela quisesse se ver livre.

O fato de ter trabalhado para o Pequeno me deu moral lá dentro e sempre era incluído nas fugas. Aqui fora, na rua, ou a gente roubava ou fazia entrega pro Pequeno. Mas, passava um tempo e sempre éramos recapturados. Esse dentro ou fora durou até eu completar dezoito anos, quando não podia mais ficar por lá.

Aí o Pequeno deu a escrita:

- Toma jeito que a partir de agora a bronca é maior. Acabou Febem, agora é cana das brabas.

E me nomeou tenente do tráfico. Fiscalizava o pessoal do varejo. Mas, como diz o ditado: passarinho que anda com morcego dorme de cabeça pra baixo. Um tempo nessa vida e aprendi a fazer uns negócios por conta própria.

Certo dia me caiu no colo meio quilo de bagulho. Temeroso, entendi que podia ter a minha independência e a chance de mudar de vida. Meu olho cresceu e fugi com a mercadoria para Praia Grande onde pretendia fazer dinheiro e investir em algum negócio legal.

Certa noite, já com a grana na mão, conheci a Lilica, um avião de mulher. Dez anos mais velha que eu, porém com tudo em cima.

Um foguete nos negócios, ela tinha um restaurante por quilo em Maresias. Apliquei meu dinheiro e ficamos sócios.

Tudo corria bem até a noite que apareceu um enviado do Pequeno. Um guarda roupa albino. O homem dava dois de mim, falava manso, mas firme. Disse que lamentava, mas precisava me levar ao Pequeno.

A contra gosto entrei no carro e sentei ao seu lado. O sujeito deu a partida e na minha cabeça começou a passar o filme do que iria acontecer. Não era nada agradável.

O Pequeno sempre fora legal comigo e eu dei mancada. Se tem uma coisa que esse pessoal não perdoa é a trairagem. E, eu cometi o erro de cuspir na mão que me alimentou.

A noite estava um breu, o céu carregado e trovão pipocando a torto e a direito. Mal se enxergava a estrada. Logo à frente começamos a descer a serra de São Sebastião e percebi certa dificuldade do albino com o carro. No meio da curva o freio travou. O carro derrapou para a esquerda e capotou. Olhei para meu algoz desmaiado ao meu lado. Tratei de livrar-me do cinto e escapar. Finalmente me veria livre do inferno!

MEU DIA DE GOLEIRO - Jeremias Moreira

MEU DIA DE GOLEIRO
Jeremias Moreira

Um dia uma onda de insegurança tomou conta de mim, e de repente duvidava de minha competência, e das verdades de minha vida.

Aconteceu numa noite de fevereiro de 1963, dia que o Jaboticabal Atlético foi a Ribeirão Preto,  jogar contra o Botafogo como pagamento do passe do zagueiro Antonio Julião.

Nos meus dezessete anos, era o goleiro do time juvenil. O Bonelli, o titular do time principal, contundiu-se e eu fui relacionado para ser o reserva.

Entramos em campo e, surpreso, fui contemplado com um abraço do Tirí, ídolo do Botafogo, assim como fora no Jaboticabal há cinco anos, época que iniciei na posição. Ser reconhecido e estimulado por ele, a quem também idolatrava, foi um grande incentivo.

Apesar de amistoso o jogo foi disputado com muita garra por ambos os times.

A partida caminhava para o final, o placar marcava um gol a zero para o Botafogo, quando o Manzato, o nosso goleiro titular nesse dia, se machucou.

O professor Gonçalves, nosso técnico, olhou para mim e ordenou que me aquecesse.

Tremendo igual vara verde, comecei a rezar para que o médico sinalizasse  que estava tudo bem com o Manzato. Mas, o sinal foi de substituição!

Apavorado, com as pernas travadas, quase não consegui chegar ao gol. Mas, aí aconteceu o inesperado: o Tirí correu ao meu encontro e me deu a maior força.

Não sei se o gesto dele foi uma indicação aos seus companheiros, mas o fato é que, nos minutos restantes, o Botafogo não chutou nenhuma bola perigosa.
Foram apenas chutes colocados, do tipo que dá moral para o goleiro.

E, o jogo terminou um a zero.

Casamento desfeito - Mario Tibiriçá


Casamento  desfeito
Mario Tibiriçá

Laura estava casada há mais de cinco anos com Fred e as coisas superáveis realmente  não  corriam  bem,  o diálogo  já se deteriorava por amplas  razões. No apartamento,   sentia  o frio solitário da ausência do marido,  já estava farta das intermináveis desculpas apresentadas pelo parceiro, seja  pelo trabalho, ou pela chuva, ou ainda por decisivas  reuniões inacabadas.    Os sons da rua, aos poucos  foram se apagando e o silêncio frio  do lar resfriava sua alma, olha-se no espelho e não se vê, minha alma  está cansada desta vida e decide-se:  vou fingir que vou embora e dar um susto em Fred, pois tenho  sérias desconfianças.                                                                                                                          Faz sua mala e na secretária eletrônica deixa pesado  recado :” Farta de seus atrasos e do abandono que  fertiliza  minha solidão,  vou  embora, vou  tocar a minha  vida, serei feliz”, ele ficará enlouquecido e acreditará. 
                                                
Após deixar  o recado,  pegou sua  mala e escondeu-se embaixo da cama,  visando  ouvir e  sentir a reação do marido, além de pregar-lhe uma surpresa e um susto. Este  chegando pouco depois  e não encontrando a esposa, foi verificar   algum recado, surpreso  concluiu que a mulher o abandonara.   Quase feliz, Fred telefona para a namorada e  informa baixinho: Laura finalmente  foi embora! Falaremos mais tarde. Em seguida arruma suas malas e vai a secretária eletrônica onde deixa um   recado  para  Laura, antes de sair para não mais voltar.  Notando que o marido saíra, Laura  correu a secretária eletrônica e ouviu : 
               

 “ Ví seus  pés  embaixo da cama e não  suporto golpes mesquinhos “                                                                              ADEUS......                                                                                                              

JOSÉ E LEONOR - Carlos Cedano

 


JOSÉ E LEONOR
Carlos Cedano

José era o escravo do Fazendeiro João de Deus, como seu pai, nasceu escravo e começou a trabalhar desde os doze anos de idade colhendo cana. Quando  completou  21 ele já era alto, muito alto comparado aos outros, e muito forte. Era um trabalhador incansável e o que mais produzia!

Havia uma parte de sua vida que mantinha o mais discreta possível: seu namoro com Leonor, a negra esguia, de andar requebrado, de sorriso permanente e nariz arrebitado! Conheciam-se desde crianças e o destino os uniu desde então!

Leonor atraia a atenção e cobiça de muitos brancos, mas sua única paixão, seu mundo todo, sua adoração era seu homem! Era Deus no céu e José na terra! Era esse amor sem condições e o paraíso que era suas vidas o que os fazia suportar  a situação de escravos.

Um dia a tragédia bateu  à porta! João estava na roça e Leonor sozinha. Marcos, filho do dono, sempre à espreita, irrompeu no único cômodo da casa e surpreendeu Leonor, agarrou-a a força, ela reagiu como uma fera encurralada, arranhou, mordeu e usou tudo seu valor para defender-se do ataque covarde.  Foi tanta a vontade de lutar que viu o desalmado no rosto de Leonor, que apelou à peixeira que levava no cinto e a tragédia se consumou!

Quando José chegou e entrou no casebre o inferno bateu no seu rosto, a cena era dantesca e paralisante. Viu sua mulher que ainda respirava e a abraçou-a com cuidado, ela abriu seus olhos e nos estertores da morte sussurrou apenas: foi o Marcos! Depois, com tristeza José percebeu que Leonor já não era mais deste mundo! Esperou a noite fechar mais, logo pegou seu fação e iniciou sua marcha até a casa-grande.

Cinco quilômetros o separavam de seu destino e nos primeiros passos escutou o piar triste da coruja anunciando a presença da morte, continuou andando e foi relembrando a vida deles desde que se conheceram. As cenas passavam frente a seus olhos porem, seu pesar insistia em cutucar sua dor provocando uma gangorra de emoções entre a tristeza e o bálsamo de suas lembranças. 

A primeira recordação foi quando, ela com seis anos e ele com dez, a pequena neguinha se escondia atrás da mãe agarrada à saia, apenas assomava o rosto, José a viu e sorriu pra ela que correu envergonhada temendo ter traído seus sentimentos! Aos poucos ficaram amigos e inseparáveis desde esse então!

No avançar dos anos José ensinou-lhe a colher o mel das abelhas nativas, subir em árvores e cortar a cana. Com ele perdeu o medo de nadar no rio. Já adolescente e ele com dezoito anos se beijaram pela primeira, José “roubou” dela esse beijo com ternura e ficaram abraçados por alguns minutos entre sorrisos e lágrimas de felicidade. Era a descoberta do amor na sua forma mais pura!

Pouco tempo depois tiveram sua primeira noite e Leonor se sentiu a mulher mais afortunada do mundo e assim foram todos os dias nos seguintes seis anos até acontecer a tragédia!

José atingiu o topo da pequena e única colina do canavial, desde esse lugar comtemplou as luzes da casa-grande. Respirou fundo, sentiu agora a força de sua raiva que aumentou sua decisão de fazer justiça com as próprias mãos!

Quando chegou ao seu destino encontrou o filho do dono mostrando no corpo os sinais de sua infâmia e José logo lhe disse que devia pagar pela sua covardia!  Na sua arrogância o criminoso respondeu: aqui quando um branco mata uma preta ganha premio!  O assassino não teve tempo de reagir quando o escravo com um certeiro golpe de seu afiado fação acabou com a vida dele!


José sabia que sua própria vida tinha acabado nesse momento, mas sem Leonor isso já não tinha importância!