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Crime na Vila Zelina - Ises de Almeida Abrahamsohn


Crime na Vila Zelina
Ises de Almeida Abrahamsohn

Acordou com passos furtivos e vozes, mas não conseguia entender o que se dizia. Olhou o despertador: era uma e meia da manhã. Deviam ser as vozes do seu inquilino e talvez de um ou dois outros homens, que se falavam em monossílabos. Durou talvez cinco minutos. Antes de ouvir o rangido da porta dos fundos pensou ter ouvido de novo a ameaça: - “se não pagar, te passo na faca”. Estas visitas já haviam acontecido algumas vezes. A velha senhora demorou a adormecer de novo.

Ficava pensando se fizera certo ao aceitar o rapaz como inquilino. Ele se apresentara há seis meses como vindo do interior, era estudante de letras na universidade e contou que sobrevivia de traduções. Chama-se Rodney. Era muito magro, quase cadavérico e tinha sempre a barba por fazer; talvez a fizesse apenas nos fins de semana quando desaparecia para voltar na segunda à noite. Ia visitar parentes, dissera uma vez. Tinha poucos pertences e mantinha sempre trancada a porta do quarto. Isso a irritava porque não podia entrar para limpar. No início achara que ele apenas queria evitar intromissões. Mas depois ela sentira o cheiro da droga que escapava pelo vão da porta. Agora ela sabia mais coisas: que ele devia dinheiro, também pela droga, além dos aluguéis que sempre atrasava.

Enfim, o rapaz acabava pagando, após ela ter por algumas vezes o ameaçado com despejo. Da última vez, o sujeito até a chamara de velha avarenta. Se ele soubesse a sua história...  Avarenta não era, realmente precisava do dinheiro para sobreviver.

Ela se lembrou de quando ela e seu querido Vassilij, que Deus o tenha, chegaram ao Brasil em 1947. Tinham sobrevivido ao cerco de São Petersburgo durante a guerra. Ela queria esquecer aqueles tempos. Vieram num cargueiro e Vassilij a encorajava durante a viagem: - “Elena, você vai ver, é um novo mundo, ambos trabalharemos, lá não haverá mais fome e nunca faz frio, é um país rico, fértil e quente”.

Realmente não havia frio, mas o inicio foi difícil. Vasilij era professor de russo e falava também alemão e francês o que lhe garantia aulas e encomendas de traduções. Ela era especialista em literatura russa, profissão pouco requisitada em São Paulo naqueles anos pós-guerra. Mas com o salário dele e os extras da venda de pães e geleias, foram se mantendo e conseguiram comprar o sobradinho. Para manter a mente afiada continuava lendo os seus adorados autores russos. Mas Vasilij se fora havia 10 anos, e a magra aposentadoria e o sobradinho na Vila Zelina eram tudo o que ela agora possuía. Tinha setenta anos e outros dez ou talvez ainda vinte pela frente.

A mente já não era a mesma. Seu único divertimento era ler. Às vezes adormecia com o livro entre as mãos. Acordava assustada sonhando que vivia a trama já lida tantas e tantas vezes ou que conversava com o autor. Outras vezes queria lembrar os trechos importantes das novelas que amava, mas a memória fraquejava. Também o bairro onde morava mudara para pior. Antes pacatas, a sua rua e a vizinhança deterioraram e ela mesma soubera de vários assaltos. Vivia amedrontada. Mais ainda ao ter ouvido as ameaças noturnas do traficante.

O tom de voz de Rodney e os últimos insultos que recebera a tornaram ainda mais assustada. “Amanhã à noite ele deverá aparecer e pagar o aluguel; já estava de novo com duas semanas de atraso”, pensou ela. Imaginava a discussão que teria com o rapaz e estava decidida a expulsá-lo. Tinha medo de ser agredida, talvez devesse ter alguma arma à mão. Por precaução, levou consigo o cutelo da cozinha ao subir para dormir.

O rapaz não veio dormir em casa nessa noite. Elena acordou bem cedo, ainda estava escuro. Tinha lido até adormecer e sua cabeça estava tomada pelo romance que estava relendo pela enésima vez. Seria ela igual à vítima do romance? Já ia descer para fazer o seu chá, quando ouviu o ranger da porta dos fundos e passos na direção da cozinha. Eram sem dúvida os passos do desgraçado. Estava fuçando no seu armário de mantimentos. “Maldito!” pensou Elena. Devia ter espionado para saber que era lá, na lata marcada como café, onde guardava o dinheiro para pagar as contas.

Desceu pé ante pé as escadas e viu o vulto do ladrão, iluminado pela luz do quintal, ajoelhado na frente do armário. A posição era excelente. Não teve dúvida! Tomou impulso e acertou-lhe o cutelo no pescoço. O sangue da carótida atingida espirrou longe. O sujeito caiu de lado e a lata de café tombou deixando escapar algumas notas de dez reais. Elena ainda pensou se deveria dar um segundo golpe. Não era preciso. Ele já estava desacordado. Mais alguns minutos sangrando e acabaria de vez.

Catou as notas espalhadas e a lata de café. Tampou-a com cuidado e subiu as escadas. Teria que arranjar outro esconderijo para a lata. Só então se sentou e olhou espantada para o livro aberto ao lado do travesseiro.


Disse então em voz alta: Ora, meu querido Fiódor, antes ele do que eu!

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