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A fabulosa ceguinha - Fernando Braga


A fabulosa ceguinha
Fernando Braga

      Marlene nasceu com glaucoma congênito ( buftalmia), o que dava um aspecto bastante preocupante para aquela recém-nascida. Seus pais eram jovens, ele um chofer de caminhão da empresa Gonçalves Sé, e ela uma doméstica. Graças à intervenção de um deputado da região, a criança foi trazida para São Paulo e submetida a cirurgia oftalmológica. Foi feito um pertúito para diminuir a pressão ocular, melhorar o aspecto avançado dos globos oculares, mas sua visão, difícil de avaliar na ocasião.

     Aos oito aninhos a família conseguiu que viesse para o Instituto Padre Chico, onde ficou como interna. Não queria vir, queria continuar sendo criança com a mãe sempre cuidando dela, mas foi convencida por seu pai:       “Minha filhinha do coração, isto é para seu próprio bem! Você não enxerga, mas é inteligente e logo perceberá que suas mãos, seus ouvidos, substituirão seus olhinhos. Você vai ter que aprender a ler e se comportar como qualquer pessoa que enxerga”. Com lágrima nos olhos ela partiu. Foi a última vez que chorou.

     Este Instituto, criado em 1928, foi se aperfeiçoando rapidamente no tratamento daqueles com baixa visão e dos completamente cegos, o que era o caso de Marlene. Ela começou pela alfabetização em Braile, tendo se mostrado muito interessada e com bastante facilidade  na aprendizagem. Habituou-se rapidamente a ler com os dedos.  Os livros didáticos, que lhe eram fornecidos no instituto, a grande maioria, vindos da Fundação Dorina  Nowill, a qual possui, até hoje, a maior gráfica de livros em Braile da América do Sul. Dentre as matérias que estudava, interessou-se muito pela História do Brasil, em todos os seus aspectos, desde a época da colonização. Ao lado dos estudos recebia orientação para locomoção, utilizando muito os outros sentidos, estabelecendo sua posição em relação aos outros objetos significativos em seu ambiente. Começou a usar a bengala longa e com outras pessoas, começou a andar na rua, a tomar coletivos, brincar nos parques.

     Seu pai foi transferido para São Paulo, para continuar como caminhoneiro da mesma firma, que havia crescido muito e agora, já tinha uma série de supermercados em São Paulo.  Assim, Marlene aos 16 anos, voltou para casa, mas continuou frequentando o Pe Chico, onde tinha cativado seus professores e feito muitos amigos. Queria ser professora de Braile e de História.

     Marlene lia muito, cada vez mais. E foi assim, que com 20 anos participou da Olimpíada Nacional de História do Brasil, onde surpreendeu a todos por seus conhecimentos, ficando em segundo lugar.

     Nesta ocasião perdeu seu pai em um acidente, e a vida mudou. A situação econômica,  tornou-se precária, e os ganhos de sua mãe, que trabalhava como faxineira em um condomínio, mostravam-se insuficientes para o aluguel da casinha e a subsistência. Sua mãe queria voltar para o interior e morar com a irmã mais velha, mas Marlene não queria voltar.

     Nesta situação conflitante, Marlene, agora com 21 anos, decidiu casar-se com Pedro, também deficiente visual, seu colega e amigo do Pe Chico, que graças à sua habilidade com as mãos, havia conseguido trabalho como empacotador em um supermercado. Vieram morar juntos na casinha de sua mãe, que nunca concordara que ela se casasse com um cego. Dois cegos na mesma casa era demais! Mas, ficou mais complicado quando Marlene engravidou e ficou muito difícil conseguir um emprego.

     A criança, Douglas, era perfeitinho e desde pequeno só trazia alegrias. Mas, quando ele tinha três aninhos, sua avó decidiu-se ir embora, voltando para o interior. Marlene pedia:

“Mãe, não vá embora, o que eu vou fazer sem a senhora?”

- Você sempre se virou e vai continuar a se virar! - retrucava. E ela foi.

O aluguel ficou sob responsabilidade de Pedro. Apesar da dificuldade visual, Marlene e Pedro sempre foram muito confiantes em si mesmos, tinham grande disposição para vencer obstáculos e não esmoreciam, consequência direta do aprendizado com as psicólogas, professores e amigos do Pe Chico.

     Primeiro Marlene arrumou uma creche para o garoto e depois conseguiu trabalho em um hospital escola, na câmara escura do departamento de RX, onde ficou muito querida e também, admirada pelos conhecimentos em História.

Dadas às circunstâncias precárias, auxiliados por um político que se condoeu da situação, conseguiram da prefeitura um pequeno apartamento, desses, tipo BNH e para lá se mudaram, felizes por ficarem livres do aluguel. Comiam de marmita.

 O tempo passou, sua mãe ficou doente do coração, incapacitada. Nesta ocasião, os três foram visitá-la e ela chorou de alegria. Logo veio a falecer.

 Douglas sempre observou a dificuldade de seus pais para mantê-lo, proporcionar seus estudos. E assim, ele, dedicado e estudioso, empreendeu todos os esforços e conseguiu entrar em uma faculdade de direito, com bolsa de estudo. Ainda como estudante, arranjou tempo para iniciar-se como trainee, em um grande escritório de advocacia.

Douglas em sua formatura, conseguiu para seus pais, um lugar bem na frente do enorme auditório. Foi o orador da turma e em seu discurso guardou muitas palavras para agradecer a seus mestres, a convivência com seus colegas, e apontando para seus pais, cegos, agradeceu ao sacrifício gigantesco que haviam feito para cria-lo e serem os responsáveis diretos desta sua conquista, por ele ter conseguido ser o que sempre desejou.

 Faltava ainda algo.

Após cinco anos, Douglas, também com enorme sacrifício, conseguira pagar as prestações de um bom apartamento em construção, financiamento pela Caixa, em bom bairro residencial. Após o habite-se conseguiu montá-lo em seu essencial, incluindo uma bela cama king. Guardou silêncio.

Tudo pronto, convidou seus pais para um passeio em seu carro e levou-os direto ao prédio que iriam morar. Subiram até o decimo andar, abriu a porta e introduziu-os em seu interior. Eles não entendiam nada. Enfatizou:

- Vocês estão entrando em seu apartamento novo, quase todo montado. Aqui viveremos.

Chegando ao quarto empurrou seu pai e sua mãe sobre a cama, onde rolaram e se beijaram. Douglas ficou muito feliz ao ver a satisfação de ambos.

Logo ela disse:

- Eu sou cega, mas com meus apurados sentidos, sentia ultimamente você diferente, silencioso, como se estivesse preparando algo. Foi uma situação realmente misteriosa.  Agora entendi. Não esperávamos tanto. Obrigada meu filho!



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