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Calor dos trópicos versus frio alemão - José Vicente Jardim de Camargo


Calor dos trópicos versus frio alemão            
José Vicente Jardim de Camargo          



A história a seguir é verídica e se passou comigo quando fiz um doutoramento na Alemanha entre as décadas de 1970 e 80.

Naquele tempo não existia internet nem celulares, o que tornava os acontecimentos mais interessantes, mais pessoais com a troca de informações entre pessoas e países quase que exclusivamente por via postal.

Era uma tarde de domingo, final de outono, friozinho gostoso, enrolado numa manta de lã, jazia eu sonolento no sofá a mirar televisão, quando toca a campainha de meu apartamento de quarto e cozinha situado em pleno centro universitário, repleto de repúblicas de estudantes e barzinhos típicos aonde as noitadas iam  até altas horas regadas a cerveja e tira-gostos.

Solteiro, em pena forma, torci para que não fosse nenhuma amiga ou amigo querendo me arrastar para mais uma ronda noturna.

Qual minha surpresa quando deparo na soleira da porta um senhor beirando os sessenta anos me cumprimentando e perguntando se eu era o “Herr Camargo”.

Mediante minha resposta afirmativa, pede desculpas pelo  incomodo mas, como fora informado da minha nacionalidade brasileira, pede minha ajuda para a tradução de uma carta muito importante para ele, que recebera há poucos dias do Brasil.

O fiz entrar, apresentou-se como Hans, e me explica que morou  por sete meses no Recife trabalhando como técnico de uma empresa alemã na instalação de uma fábrica de cimento. Lá passara, como definiu, os melhores dias de sua vida. Conhecera uma mulata muito bonita e dengosa moradora em uma favela e quanto mais a descrevia, mais eu visualizava a mulata  cheia de trejeitos e sensualidade que ascende o mais morto dos corações, confirmando o que já havia escutado de outros alemães que estiveram no Brasil como turistas ou a trabalho.

Ao iniciar a tradução da carta, paro surpreso, engulo em seco:
No cabeçalho, em grafia retorcida do primeiro grau, a frase inicial:

              “Meu Docinho de Coco!”

Essa expressão me causa grande impacto – tão simples, mas ao mesmo tempo tão cheia de sentimento, de calor humano como se de repente todo o Brasil, na saudade acumulada dos anos distantes, me abraçasse com carinho e senti que realmente esse tropicalismo amoroso faz falta à frieza alemã.

Mas penso comigo: -“Como traduzir essa expressão para um alemão de meia idade, formal e introvertido? Além do mais, os alemães não estão acostumados a docinhos açucarados e poucos já viram um coco na vida.
Mas, mediante a expectativa crescente do Hans pelo conteúdo da carta, traduzo a expressão ao pé da letra.
Ele sorri e dá um suspiro profundo como se tirasse da alma a saudade retida.
Em seguida a remetente, que ele disse chamar-se Dorinha, lhe escreve da falta que dele tem, dos cafunés na rede ao cair da tarde, dos banhos de mar nas praias quentes, das comidas preparadas com carinho a seu gosto, da malvada pinga que ele tanto apreciou, das noitadas abraçadas...

Hans, a esta altura já está totalmente entregue, despido de toda disciplina e pragmatismo germânicos, levado pelas ondas da paixão às longínquas paisagens nordestinas.
Me mira, pede mais, eu continuo:

— “Quero lhe preparar um cantinho mais acolhedor, assim não precisa ficar em hotel da próxima vez que vier. Para tanto preciso comprar uma geladeira, um fogão, uma televisão, pintar o quartinho, consertar o telhado...Creio que uns dez mil cruzeiros sejam suficientes...
— Que doçura, não me esqueceu! Diz-me ele e, com afoito juvenil, me pede no termino da tradução, de responder, de retribuir os beijos, os abraços e as saudades e que mande os dados da conta bancaria para que ele lhe envie o dinheiro.

E, como procurasse uma desculpa pelos seus deslizes cometidos nos melhores dias de sua vida, continua sua narrativa:
— Não vivi minha juventude, não conheci os prazeres da mesma. Ainda adolescente entrei para o partido nazista, onde a disciplina era muito rígida, o contato entre os sexos era raro, assim como as festas e horas de lazer.

Com dezenove anos fui como soldado enviado para o norte da África sob o comando do general von Rommel. Ao voltar a Alemanha no final da guerra, tudo estava destruído. Por falta de opções, casei-me com a primeira moça que conheci, com a qual sou casado até hoje com dois filhos adultos.

Mirando-me, como já me conhecesse de longa data, talvez por ver em mim vestígios pátrios de sua querida Dorinha, me indaga em tom de confissão:
— Estou com uma grande dúvida! Não sei se a trago para a Alemanha ou se largo tudo aqui e vou viver com ela no Brasil. Mas, será que ela se adaptaria por aqui, com os costumes, o frio, o idioma? Continuaria a sentir o mesmo afago, o mesmo carinho por mim?
Se eu voltar, perderei meu emprego e minha aposentadoria que terei direito daqui a cinco anos. Se esperar esse tempo para voltar, ela com certeza já estará com outro, pois é muito dada, tem muitos amigos.

-O que você acha, já que conhece ambos países?

Neste momento senti o peso do opinar, de dar um palpite que poderia influenciar o destino de dois seres humanos, principalmente o de Hans, que visivelmente titubeava com a mais importante decisão de sua vida. Conhecia casos parecidos, de brasileiras de origem humilde, de cor, casadas com alemães que não se ambientaram, e após algum tempo se separaram e retornaram. Em algumas era evidente o interesse financeiro, em outras as dificuldades e principalmente a saudades foram decisivas.

Mas preferi não mencionar esses fatos para não lhe influenciar e depois cada caso é um caso. Disse-lhe que a decisão era muito pessoal, um duelo entre o amor e a razão e, neste caso, só ele tinha condições de decidir já que se tratava do seu próprio destino.

Ele compreendeu meu posicionamento, me convidou para almoçar em sua casa, o que fiz, quando tive então a oportunidade de conhecer sua família, muito simpática e de sentir ainda mais, o drama de Hans na sua escolha decisiva.

Ao nos despedirmos confidenciou-me que enviara o dinheiro a Dorinha e que me procuraria em caso de uma resposta.

Concordei e desejei-lhe boa sorte.

Dois meses depois terminei meu doutorado e mudei de cidade, sem receber mais noticias de Hans. Também, por uma questão de conforto e talvez medo de ser confrontado uma vez mais com a vital  decisão, não o procurei.

Mas, desde então, toda vez que me lambuzo com um docinho de coco, me vem à lembrança o dilema de Hans:

— Será que estará saboreando seu docinho todo dia, embalado numa rede de cafunés ou guarda no paladar o sabor doce e distante de uma paixão inesquecível?
Seja qual for o destino que escolheu, o importante é que ele não passou pela vida em brancas nuvens, sentiu a fundo o fogo da paixão...



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