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VELHO, MEU QUERIDO VELHO... - Carlos Cedano


VELHO, MEU QUERIDO VELHO...
Carlos Cedano

Você já está com dilatação suficiente, daqui a pouco virá a enfermeira para leva-la à sala de parto - disse a Dra. Marlene para Angélica. Sua paciente tinha feito uma gravidez sem complicações, e pela sua experiência seria um parto tranquilo e sem demora.
 
Chegou a enfermeira e com cuidado acomodou a  futura mãe na maca. Antes de saírem do quarto Bernardo, seu esposo, se aproximou dela e carinhosamente a beijou dizendo:

        Te amo muito minha esposa adorada. Vai com fé que tudo sairá bem.

        Paixão, você já ligou pra seu pai? - Quis saber Angélica - você sabe como ele está ansioso pra ver a cara de nosso pequeno Rafael.

        Agora mesmo vou ligar pra ele, não se preocupe minha querida - respondeu Bernardo.

Subitamente Bernardo foi invadido por uma sensação que nunca antes tinha experimentado, e que lentamente foi transformando-se numa deliciosa e intensa tranquilidade, mas sem entender bem o que estava acontecendo-lhe. Ligou logo pra seu pai:

        Pai? ...

        Nasceu? - Perguntou ansioso o futuro avô.

        Ainda não, talvez em uma hora. Mas, queria pedir-lhe que viesse antes, estou sentindo necessidade muito forte de sua companhia e de seu carinho.

        Estou indo aí! - Respondeu seu Norberto.

Ok meu pai, te espero. Estamos no quarto 212. Até já então.

No momento que a enfermeira chegou ao quarto conduzindo Angélica também chegava o seu sogro. Após acomodar a nova mãe em seu leito a enfermeira com sorriso brincalhão disse, dirigindo-se aos dois pais:

O menino já nasceu, está tomando banho, após o que fará sua primeira visita familiar.

Meio hora depois trouxeram o pequeno Rafael. Foi recebido com contida euforia, mas com muita felicidade. Angélica o pegou em seus braços e chorando viveu toda a emoção de contemplar seu primeiro filho. Após alguns minutos o entregou para Bernardo que o recebeu com cuidado e enorme sorriso no rosto. A emoção que mostrava o pai era particularmente grande e intensa, e dirigindo-se a seu Norberto disse:

        Meu pai, o carinho que estou sentindo por este pequeno ser extrapola todos meus afetos conhecidos, é uma sensação de plenitude.

        O amor dos pais pelos filhos - respondeu seu Norberto - é considerado o amor perfeito por ser incondicional, é preciso ser pai para saber quanto nossos pais nos amaram. E hoje você está vivendo essa experiência que nos humaniza.

Entregando o pequeno Rafael para Angélica disse para seu pai:

        Pois é meu pai, hoje senti a intensidade do amor que você me deu  a vida toda. Obrigado meu velho. Meu querido velho...

No mesmo momento se abraçaram intensa e demoradamente enquanto feliz e, também chorando, Angélica aos poucos foi adormecendo com um rosto sereno e luminoso. Silenciosamente avô e pai saíram do quarto enquanto a enfermeira cuidadosamente levava Rafael ao berçário para sua primeira noite nesta vida.


SILÊNCIO - Mario Augusto Machado Pinto.



SILÊNCIO
Mario Augusto Machado Pinto.

A cidade aparentava marasmo. As janelas fechadas, as portas cerradas isolavam a todos. As ruas desertas há muito esquecidas, suspiravam. Mas, o que mais aturdia era o avassalador silencio que dominava tudo.

Esse silêncio me dói nos ouvidos e como sou órfão de pai e mãe em otimismo,  tudo me leva a imaginar que podem acontecer coisas desagradáveis. Bota desagradável nisso!
Qual o determinante desse estado de coisas? Por quê?

Na verdade não sei não. Mas que vai, vai!
Vai o quê?
Acontecer coisa ruim. Veja só: como é que vamos...
Para por aí. Sou um, só um. Apaga o vamos e procura resolver: como é que vou chegar ao terminal rodoviário? A pé não dá.
È longe pra xuxú.
Não é longe pra burro?
Prefiro pra xuxú!
Nunca sei se xuxú se escreve com xis ou com ch. Problema importante!
É que estou com fome. A mente a está desordenada; ainda não tomei o café da manhã. Faz falta.
Há o café da tarde, da noite também?
Pode haver o chá das cinco ou aquele antes de dormir.
Ora, deixa de ficar pensando essas bobagens, anda mais depressa, vira à esquerda na esquina que tem ponto de taxi.
Um, um. Dois, dois. Três, três. Quatro, quatro.
Para com isso!!!
É pra saber quanto mede a distância até o ponto.
Ponto de taxi.
É, mas é um ponto.
O ponto faz terminar a busca do taxi.
Um, dois, feijão com arroiz.
Arroz!
Tá bom, arroz.
Três, quatro, feijão no prato. Cinco, seis, no fim do meis.
Mez, com esse ou com zê?!
Não enche!
Sete, oito, comer biscoito. Nove, deiz, comê pastéis! Não sei se continua. Viu?
Não tem taxi.
E agora?
Tem outro ponto na praça.
Eu conheci uma espanhola natural da Catalunha, queria qu´eu tocasse castanholas e pegasse um touro à unha... Caramba, caracoles, não me amoles.
Não vai pra lugar nenhum!
Como não?
E pra praça que tem taxi? Vamos, sim.
Não tem jeito mesmo! Caraca, como você enche!!!

Olha, olha aquele pitéuzinho. Cabelo vermelho, tal e coisa e bundinha bonita. Diz o cumprimento, cara! Anda!
Bom dia! Tamos, quer dizer, tô procurando taxi.  A mocinha está esperando? Digo, taxi? Parece que todo mundo ainda tá dormindo nesta redondeza. Nas outras também?
Então vai demorar.
Como vai sê?
Queremos, digo (falo digo por que acho sofisticado), quero ir até o terminal rodoviário da Barra Funda, mas a pé e na incerteza fica longe demais. Concorda?
Craro. Moço, eu só quero comodidade, mas se não tiver, tudo bem; não vou me atrapalhar. Vou de esqueite. Tenho dois daqueles grandes na mochila, prá campeonato.
É mesmo. Taí uma solução...
Como assim?
Ué, vamos os dois juntos num só. Me seguro na sua cintura e você guia.
Eta moda maluca! Mas, topo; vamo logo.

Agora posso cantar...
Não sei...
Sabe sim... Segura nela e canta “O que que a baiana tem”. Não esquece e meche com as cadera pra lá e pra cá...
E lá fomos nós dois na ladeira abaixo na Avenida Angélica.
O que houve que o caminho está livre? Não interessa. Depois aquele moço da TV explica.


-Eta trem bom, gostoso de andá...

A CIDADE FORA DO TEMPO - Carlos Cedano


A CIDADE FORA DO TEMPO
Carlos Cedano

A cidade apresentava marasmo. As janelas fechadas, as portas cerradas isolavam a todos. As ruas desertas há muito esquecidas, suspiravam. Mas, o que mais aturdia era o avassalador silencio que dominava tudo e cada habitante. Do medo passou-se ao pânico e os rumores se espalhavam com persistência despertando velhos mitos sobre almas penadas e sugerindo próximo, o fim dos tempos.

Onde foi que pecamos e ofendemos a Deus? Perguntavam as matronas ao pé do ouvido dos parentes cada vez mais juntos e amedrontados. Nenhum contato com o mundo, sem luz, sem noticias e sem esperanças. Acentuava-se o medo fazendo surgir o desespero quando as persistentes nuvens negras apagavam a diferença entre o dia e a noite.

Devemos aplacar a ira de Deus - sussurrou o Padre Alberto para Erasmo, seu sacristão.

Que fazer? - Perguntou ele.

Precisamos de um ato de penitência com a participação de todo o povo. Vamos tocar os sinos para ver se conseguimos juntar algumas pessoas - respondeu o padre.

Após algumas horas e depois de insistentes chamados, algumas poucas e temerosas pessoas entraram furtivamente na pequena igreja. O padre lhes disse:

        Estamos passando por uma provação por que de alguma forma temos ofendido ao Todo-Poderoso. Seu perdão exigirá de nós fortes sacrifícios para que Ele nos tire desta escuridão que pressagia para todo nosso povo uma condenação eterna.

        Que podemos fazer? - Perguntou um respeitável ancião.

         Uma procissão de penitência! Disse o sacerdote, convoquem o povo para amanhã de manhã, bem cedo, antes do nascer do sol. Devemos nos arrepender sinceramente de nossos pecados e retomar nossa fé perdida.

No dia seguinte, quando o galo ainda não tinha cantado, num silencio contrito e devagar, foram se reunindo na praça pessoas de todas as idades, mulheres de preto, homens de paletó também preto e muitas crianças.

O padre Alberto com paramentos da Semana Santa portando uma bíblia grande nos braços, entre  cânticos e lamurias, puxava o cortejo avançava a passos lentos. E a medida que o tempo passava, as pessoas foram entrando em estado de descontrole, chorando histericamente e arrancando os cabelos literalmente. Estava tudo virando uma loucura generalizada e o padre impotente, não conseguia conter o descalabro emocional de seu rebanho.

Subitamente alguém gritou forte e firme:

        Vamos parar já com essa loucura infame e irracional! Está parecendo um manicômio, parem e pensem no que estão fazendo, estamos no limiar do século vinte e um e vocês se comportam como se estivessem na idade média!

Viraram-se todos para ver quem era o atrevido, era um jovem que havia chegado o dia anterior.

        Como ousa interromper nossas súplicas,  forasteiro! Gritou um homem de media idade.

        Vai ver que é um descrente e pagão! Gritou uma jovem senhora que tinha em suas mãos um enorme terço.

O Padre Alberto, no êxtase de sua fé, subiu no banco da praça e disse quase gritando:

        Desgraçado, cala a boca e não interrompas nossa penitência! Estamos falando com Deus e pedindo seu perdão, você deve ser um pecador ou, ainda pior, deve ser um ateu que deseja arruinar nossa fé no divino! Alias, acho que você é o diabo disfarçado de pessoa humana, sim, ele é o diabo! Assinalando o jovem com o dedo em riste.

Nesse momento a multidão começou a gritar: é o diabo, é o diabo e um grupo de homens armados de paus e pedras foi atrás do homem que saiu em disparada   perseguido pelos enlouquecidos habitantes.

Nesse momento brotou um sol esplendoroso como há muitas semanas não aparecia.  Nem uma nuvem, e as luzes das casas que não tinham sido desligadas na véspera se acenderam.

Todo o povo começou a gritar: Milagre, milagre, expulsamos o demônio! Deus nos perdoou!
Sim, disse o Padre Alberto, agora faremos uma missa de ação de graças, cantaremos e louvaremos Nosso Senhor.

Duas semanas após o ocorrido chegou à cidade o jornal da capital com a seguinte manchete:

“ENCONTRADO CORPO DE ENGENHEIRO DA COMPANHIA DE FORÇA E LUZ DO ESTADO”
     POLICIA INVESTIGA AUTORIA DO BÁRBARO ASSASSINATO DE PROFISSIONAL À SERVIÇO NA REGIÃO DE ARMIM



A Lua - Oswaldo Romano


A Lua

Oswaldo Romano                                                              



Ela sempre inspirou o romantismo da moçada de todas as raças. Marcava a lembrança das  noites felizes e amorosas quando os namorados trocavam palavras doces, juras de amor e, juntos a miravam com olhos enternecidos. Fitada com pureza, devoção, ternura e muita admiração por olhares afetados de todos os recantos da terra, distribuía seus reluzentes e fluentes raios que provocavam a mais bela inspiração.

Impaciente, o homem com seus brinquedos esquisitos desfizeram diabolicamente estes sentimentos encantadores. Relataram ao mundo a composição da sua superfície, cheia de profundas e negras crateras, saliências pontudas e enorme lençol de pó! Acabou com o romantismo e as faladas virtudes do São Jorge, o santo defensor, que desde nossa infância, era respeitado, temido.

Por que vocês desmancharam os sonhos de tantas gerações?
E agora?- Senhores americanos, sob pena de assistirem ao desmonte destes jovens, vítimas da descrença, desesperados e perdidos amantes, prometam que usando todos seus sábios poderes, construirão lá no chamado Mar da Tranquilidade, um jardim encantado. Tenha um poder mágico, digno como o eternamente sonhado, uma justa compensação à frustração por que estes amantes passaram quiçá uma nova e emocionante atração às futuras viagens nupciais!

Num piscar de olhos desfizeram o tempo em que o poeta dizia: Vendo a lua agigantar-se no céu azul esmaecido, ressaltada pelo brilho de tantas estrelas.

Um riso alto e contagiante pôde ser ouvido da residência de numero 117 da Rua Chile. Parecia que finalmente, a fantástica história daqueles simpáticos moradores, estava tomando um rumo harmonioso. Queriam ignorar a tecnologia  e viver o presente. Pela varanda podiam ser vistas sombras que se formavam com o clarão da lua, sombras que caminhavam disformes. Brincavam, de tão felizes!


Felizes mostravam-se os da 117, mas inconformados com São Jorge que, com sua lança não soube defender a ilusão de tantos apaixonados.



Pai é Pai! - José Vicente Jardim de Camargo





Pai é Pai!
José Vicente Jardim de Camargo


— Deus Pai se fez homem para salvar seus filhos do mal e foi por eles crucificado. Perdoou-os e os recebe em seu reino celestial para o descanso eterno,

— Pai rico abandonado e despojado pelo filho pródigo, o recebe de volta de braços abertos com um banquete de boas vindas,

— Pai pobre faz das tripas coração, mas não deixa faltar ao filho o pão doce de cada dia,

— Pai bravo esbraveja da boca pra fora, mas prende no peito o desejo latente do filho beijar,

— Pai chato, insistente, preocupado disfarça com as atitudes o temor dos perigos constantes que sua prole ameaça,

— Pai triste procura na lágrima oculta, o consolo da ausência do filho que antes dele partiu,

— Pai alegre reflete no sorriso aberto, a presença dos filhos em volta da mesa,

— Pai intelectual, ignorante, artista, cientista, sambista, esportista, mendigo, são adjetivos que emolduram e classificam um grupo de pessoas com algo comum e apaixonante dentro de si:

                               — O Amor de Pai!

E todos com um forte desejo de um dia ouvirem, daqueles à quem tantos esforços foram dados:


                           - Meu Pai Companheiro!

FÉRIAS NA VILA - Mario Augusto Machado Pinto





FÉRIAS NA VILA
Mario Augusto Machado Pinto

A nossa vida, sem mais nem menos, está sujeita a acontecimentos inesperados que podem mudar nosso comportamento e ambições.

A súbita viagem do pessoal do 117 foi um deles. Pelo menos para mim. Só ficou o pai que pouco via.

Desde o inicio disse ao Fredão que sentia um clima de tragédia naquela família. Isso, mais a sua natural curiosidade forçaram seu encontro solo com o pai das meninas. Eu estava mais interessado no cursinho para medicina.

Um dia me historiou a saga da família do 117 conforme contada pelo próprio Dr. Ignácio, pai das meninas. Houvera um acidente com o carro deles quando iam de férias a Búzios. Foram abalroados por um caminhão. O carro saiu da pista capotando várias vezes e pegou fogo. O Dr. Ignácio, lançado para fora por milagre não se feriu, e com esforço retirou as duas filhas do banco traseiro. Mas, quando foi retirar a mulher das ferragens, o tanque de gasolina explodiu. Não conseguiu salvá-la,  ela morreu verdadeiramente torrada. As meninas - são gêmeas – tiveram queimaduras em parte do rosto e da cabeça protegidas que foram por suas mãos, por isso usam luvas até hoje. Foram meses de hospitais e cirurgias plásticas; dai ficarem sempre dentro de casa. Elas esperaram o corpo atingir pleno desenvolvimento e agora estão na Suíça se preparando para a cirurgia facial, a mais delicada de todas, farão transplantes. Os médicos garantem total recuperação; voltarão em alguns anos.

Anos?

É. Vão aproveitar para estudar finanças, atividade do pai.

Prosseguimos a nossa vida, tínhamos notícias delas através do Doutor Ignácio.

Passamos no vestibular para medicina: Fredão na USP, eu em Ribeirão. Mantínhamos contato pelo Skype e nos encontros em muitos fins de semana em Campinas. Ao terminamos o curso e a residência, cada um foi para seu lado. Ele, neurocirurgia em São Paulo, e eu  Cirurgia Pediátrica, nos Médicos Sem Fronteira, na África. Ambos tivemos sucesso.

Minha equipe era de alemães e indianos. Interessante, por mais dor que estivessem sentindo e chorassem, as crianças ficavam quietinhas e até sorriam quando as examinava ou vinham para meu colo.

Francamente, tinha sucesso e era querido. Sabe Fredão, na pobreza e na miséria há mais crianças do que adultos. Elas enfermam e sofrem muito mais. A elas me dediquei de corpo e alma, vinte e quatro horas por dia, todos os dias sem restrição de qualquer natureza. As mães me escolhiam sempre, e as crianças me chamavam de Dodô e estavam sempre ao meu redor. Despertei ciúmes na equipe que passei a chefiar, principalmente dos pediatras mais antigos que consideravam as crianças seus pacientes desde sempre.

Disse ao médico chefe da Missão, que não tinha mais clima e ambiente para trabalhar, demiti-me. Ao aceitar minha demissão disse-me que sentiriam minha falta como médico e como pessoa. Deu-me várias indicações na Europa.

Fui primeiro a Paris. Durante três anos entreguei-me às pesquisas sobre os efeitos das doenças tropicais junto às crianças. Por lindas mulheres apaixonei-me perdidamente várias vezes. Da última, quase fico por lá. Voltei e aqui estou na Vila Coentrão. Que saudades... Agora conta: o que Você fez de sua vida?

Depois. Tenho coisa mais importante para fazer: preparar o nosso jantar para o Dr. Ignácio.

Você?

É, sou meio cozinheiro. Faço uns miolos à milanesa pra ninguém botar defeito. Manjou?

Fui para casa e passei horas vendo fotos antigas: Ainda crianças com nossos pais, já no Jardim da Infância, no colégio com uniforme, jogando futebol, chorando de dor por causa do dedão do pé machucado, erguendo a Taça de alguma competição, cantando nos aniversários, os tios, os avós, fotos de excursões, na praia, com as namoradinhas, fantasiados no carnaval, pescando, tantas outras, alguns bilhetes, flores secas e mais um montão de coisas.

Toquei a campainha do 117 um pouco após as nove.  Era a primeira vez que ia lá. Fui recebido com um grande abraço pelo Dr. Ignácio. Fomos à sala de visitas, conversamos um pouco tomando uns aperitivos, quando o Fredão avisou que o jantar estava sendo servido (me parecia  muito intimo da família). O menu – perna de carneiro cozida com acompanhamentos – risoto de champanhe, vinho branco, tudo ótimo e repetido.
A sobremesa - disse o Dr. Ignácio - está no sótão esperando por vocês.

Subimos. Para minha surpresa o sótão estava decorado como uma saleta intima, almofadões espalhados pelo chão, duas pequenas mesas de centro, um aparador, um minibar, aparelhagem de som e uma divisória feita com um biombo chinês.

Fiquei muito surpreso, andei examinando as coisas e perguntei várias vezes ao Fredão se ele sabia disso tudo. Ele não dizia nem sim nem não, pedia para eu me sentar.

Sentei-me. Sentou-se ao meu lado e disse:

Como nos versos da música, prepare o seu coração para as coisas que eu vou apresentar. Levantou-se, pegou uma capa preta com forro vermelho, girou-a sobre o biombo e invocou: Alim! Alim, Saladim! Bim, Bim! Jás!!! E apareceram duas estátuas cobertas com um manto de seda de costas para nós. Repetindo a invocação, as estátuas ficaram de frente e aí aconteceu meu quase desmaio quando apareceram as gêmeas. Corremos uns para os outros, demos mil abraços e beijos, rimos e falamos não me lembro do quê,  e caímos abraçados nos almofadões. Aí Fredão chamou:

Venha, venha, não se acanhe, venha!!!

E apareceu minha namorada de Paris, paixão da minha vida! Abraços, beijos daqueles de filme, risos, lágrimas, tudo que poderia suceder aconteceu.

Refeito das surpresas fiquei sabendo que as meninas se conheciam há anos, desde Paris, eram amigas intimas tanto que quando eu disse à minha namorada que voltaria ao Brasil falaram com o Fredão. Vieram antes e, com ele, armaram tudo. Meu amor era nascida iraniana, o farsi era minha segunda língua, aprendi com ela, falamos um pouco aqui para nós, abraçados e aos beijos.

E agora, seu moço? Como vai ser?

Não sei Fredão. Quero gozar este momento em muitos mais dias e dias. Depois resolvo.


Bebemos ao nosso reencontro, falamos como gralhas na Feira da Ladra e vimos através das telhas de vidro que a Lua agigantava-se no céu esmaecido, ressaltada pelo brilho de tantas estrelas. Foi quando um riso alto e contagiante vindo da residência do número 117 da Rua Chile pode ser ouvido. Parecia que finalmente a fantástica história daqueles simpáticos moradores estava tomando um rumo harmonioso. Pela varanda podiam se vistas sombras que se formavam com o clarão da Lua, sombras que caminhavam disformes. Brincavam de tão felizes.  



OS BELGAS NA COPA FIFA 2014 - Carlos Cedano



OS BELGAS NA COPA FIFA 2014
Carlos Cedano


Aquela manhã Manoel acordou cedo.  Precisaria chegar ao Aeroporto de São Paulo rápido para buscar seus amigos belgas que estavam chegando ao Brasil para assistir aos jogos da Copa da FIFA – 2014. Manoel já tinha providenciado tudo: ingressos, programas de noitadas e visitas a cidades turísticas do Brasil.

Estacionou e correu até o portão de desembarque, não esperou muito e logo viu aparecer três sorridentes pessoas, e abraçaram-se com muita alegria. Mark, seu grande amigo da época de seu pós-grado em Bruxelas, Chantal esposa de Mark e Jean Luc seu cunhado, que chamava a atenção por ser um rapagão muito alto e com rosto que insinuava ingenuidade, tinha apenas dezenove anos.

Chegaram à casa dos pais de Manoel, onde saborearam um almoço tipicamente caipira. Os visitantes ficaram admirados com a recepção calorosa dos pais e sentiram-se em família. Mais tarde, após um merecido descanso, sentaram-se para ajustar o programa da noite e o do dia seguinte dia da abertura da Copa. Chantal lembrou então:

        — No avião me disseram para não deixar de conhecer a Vila Madalena que é um lugar de muitos bares, restaurantes e com muito “agito”.

        — Querida amiga, estamos a menos de trezentos metros da Vila Madalena, esta noite iremos conhecê-la, e vocês vão gostar! - Disse o anfitrião com entusiasmo.

Eufóricos viram chegar a noite, e lá foram para a Vila Madalena:

        — Essa tal de “caipirinha” está famosa no mundo, gostaria de “conhece-la pessoalmente” - disse Mark. 

        — Eu também, disseram ao mesmo tempo Chantal e Jean Luc.

        — Muito bem! - disse Manoel chamando o garçom,  já pedindo as caipirinhas de limão, e porções tipicamente brasileiras. Alegres,  aproveitaram a noite para botar a conversa em dia, rir muito, falar sobre São Paulo, lembrar-se das aventuras em Bruxelas. E junto com a conversa, outras “Caipirinhas” vieram.

Até que Manoel propôs:

        — Vamos pra casa, amanhã será um dia intenso e convêm chegarmos cedo ao local da abertura da Copa.
       
Acordaram cedo e partiram rumo ao estádio onde curtiram intensamente o jogo entre a Croácia e Brasil,  embora ninguém do grupo concordasse com o pênalti a favor da equipe brasileira.

Na volta pra casa Mark perguntou a Manoel se eles poderiam ir outra vez para o “agito” da Vila Madalena, tinham gostado muito do lugar.  Bien sur! Respondeu Manoel. Porem, desta vez a Vila parecia uma Babel. As ruas bem cheias, pessoas de diferentes nacionalidades numa bela mistura de cores, fantasias, músicas além dos diversos idiomas.  

Enquanto procuravam lugar em um bar,  um grupo de pessoas percebeu sua situação e deram um “jeitinho” para que coubessem os quatro “novos” amigos na mesa que ocupavam, os belgas ficaram gratamente surpresos com a gentileza.  

Foi nessas circunstancias que Jean Luc conheceu uma bonita morena chamada Amanda, houve sedução por parte dela e Jean Luc ficou logo fascinado pela menina, eles conversaram durante todo o tempo e ficaram de se encontrar na sua volta da viagem que faria com o grupo para acompanhar os jogos da Bélgica.

A menina era linda mais tinha duas características: era muito baixinha apesar dos saltos que usava,  e tinha uma voz estridente que chamava fortemente a atenção das pessoas próximas,  e das não tão próximas. Tinha como se diz, uma voz de gralha. De repente viram Chantal voltando do toalete apressada e nervosa:

— Que foi? - Quis saber Mark preocupado.

— Nada grave,  respondeu Chantal, e continuou - quando voltava pra a mesa um mexicano me abordou e me propôs insistentemente casamento enquanto outro tocava violão e cantava romanticamente. Pareceu-me assedio.
                                           
Todos riram e aliviaram seu susto brindando ao sucesso de sua beleza e continuaram conversando e bebendo enquanto Chantal se recompunha do inesperado incidente.

No dia seguinte os quatro partiram numa Van. Iriam primeiro para Belo Horizonte, depois para o Rio e finalmente retornariam a São Paulo. Amanda não iria, mas esperaria a volta de Jean Luc contando os dias, os dois estavam tristes com a separação momentânea, mas resistiriam à “saudade”.

A viagem foi maravilhosa. A Bélgica ganhou seus dois jogos, conheceram lugares fascinantes cheios de história além de adorar as artes populares mineiras. No Rio foi a magia do mar, a beleza e cadência dos corpos dourados nas praias, a visita aos ícones turísticos cariocas porem, o que mais os fascinou foram as apresentações das Escolas de Samba. Jean Luc caiu nas redes de uma jovem passista que fazia charminho pra ele, os três acompanhantes seguraram seu ímpeto firmemente.

Em São Paulo o time da Bélgica continuava sua marcha vitoriosa, venceu a Coreia do Sul e disputaria as Oitavas de Final em Salvador contra os EUA, também ganharam dos Americanos passando para as quartas de final, a Bélgica nunca tinha ido tão longe numa Copa do Mundo, estavam exultantes.

O jogo das quartas de final foi em Brasília contra a poderosa Argentina, apesar da bela campanha des diables rouges, não deu. Perderam. Ficaram tristes, mas a derrota não chegou a ser uma tragédia.

Voltaram para São Paulo, e à noite fomos para a Vila Madalena encontrar Amanda. A quantidade de pessoas era enorme pela chegada massiva de argentinos, o que dificultou encontra-la. Ela estava quase afogada pela multidão num canto da entrada do bar, o jovem belga escutou sua inconfundível voz, foi ao seu encontro, e resgatou-a “heroicamente”, trazendo-a no colo para onde estávamos.

Após um tempo de conversa e como era a última noite dos visitantes acertaram com  Amanda para encontrá-la no aeroporto no dia seguinte a meio dia.

Durante a manhã os viajantes arrumaram suas malas e as lembranças compradas nas viagens, eram poucas, mas de bom gosto, os três estavam orgulhosos e felizes com os presentes que levavam, o pessoal da Bélgica iria adorar.

Chegando ao aeroporto, despacharam as bagagens e foram tomar um café. Pouco despois chegava Amanda.  Jean Luc levantou-se para ir a seu encontro, o espaço aberto acentuou o contraste de altura entre os apaixonados chamando a atenção de quem passava por perto, muitos sorrisos irônicos ou de surpresa, mas os pombinhos não estavam nem aí.

Passou o tempo e fizeram a  chamada para o embarque, o grupo esperou alguns minutos; no seguinte chamado, o jovem casal teve que ser apressado por Chantal.

— Estamos indo - disse Jean Luc que já tinha os olhos marejados de tristeza de deixar Amanda. Ela também bastante emocionada chorava sem parar.

À medida que os amigos se aproximavam do embarque,  Mark disse:

        — É... O amor e cego!

        — E surdo também! Concluiu Chantal


Os três riram, e desapareceram ao transpor o portão de embarque.


Turmalina - Mario Augusto Machado Pinto


Turmalina
Mario Augusto Machado Pinto


Era setembro. O tempo urgia, mas os rostos aparentavam cansaço e desânimo. Muitos partiram, desistindo do sonho dourado. As mãos calejadas pelo insistente ofício de escavar eram as mesmas que diziam adeus naquela primavera.

Sentado na cadeira do seu barbeiro cortando os cabelos e as unhas, Emiliano lembrou-se dessa cena constante – escavar - e de quando lá chegou com sua mãe para buscar fortuna e que ela foi logo dizendo que ganharia dinheiro, pouco, mas jamais poria as mãos naquele barro nojento.

— Só quero ver! - sorri falando para mim mesmo e vi, na nossa cabana da Rua A em Pedra Azul ela montar o que chamou de Casa da Nena e dizia para todos que a procuravam:

— Esta é a sua casa! - Quase acabou com nosso dinheiro.

Imediatamente visitou todas as famílias, ofereceu o que sabia fazer – cozinhar – e administrava impecavelmente o negócio:

Os clientes entregavam para ela o pedido do que desejavam comer. Ela preparava o prato, cobrindo-o sempre com um molho especial (era sempre o mesmo para tudo, só mudava a cor). Cobrava preço igual de todos. Desse jeito as mulheres dos casados podiam ajudar os maridos na escavação, e eles ganhavam mais pelo dia trabalhado. Pagavam em dinheiro ou em turmalinas. Funcionou às mil maravilhas, sempre. Mamãe era muito boa no que fazia.

O objetivo era permanecer ali alguns anos até juntar o quanto dinheiro necessário para comprar ou alugar um terreno grande na cidade, nele plantar, dele colher e vender as verduras, os legumes, criar galinhas, vender os ovos e no Natal, coelhos, cabritos e perus.   

Esse era o sonho da mamãe, não era o meu. Eu queria ficar rico na cidade, ter negócio próprio, casa grande, bonita e hospitaleira, comer e beber do bom e do melhor, ser respeitado e, incógnito, dentro do possível, ajudar umas famílias que fossem muito pobres. Para poder fazer isso sabia que precisava juntar todas as turmalinas que encontrasse enquanto revolvia a terra do meu lote considerado azarado: diziam que dele só brotavam poucas pedras. Eu é que sabia quantos brotos tinha guardado.

Anos depois deixamos o local em março, rumo à cidade grande, para ter tudo arranjado em setembro e começar a aceitar encomendas para o fim do ano. Gastamos quase todo dinheiro que tínhamos.

Deu certo. Daí em diante a vida correu simples, sem problemas. Nosso local de vendas, Casa da Nena, era conhecido, seus produtos disputados e festejados pela qualidade; éramos benquistos e aceitos pelos vizinhos.

Um dia achei que estava na hora de vender parte das turmalinas e fazer um bom dinheiro para comprar a terra que alugávamos e onde trabalhávamos e de onde tirávamos o nosso sustento. Eram vontades fixas: ser dono, ter. Não dever.

Iniciei a busca da realização dos meus sonhos.  . Trabalhava a terra, plantava, regava, colhia, vendia nas ruas de casa em casa, e nas feiras. Fui perguntando, aprendendo e me enfronhando em como conquistar essa bruta cidade.  Assim, de perguntar a um e a outro, com minha melhor roupa e um pacotinho com minhas pedras cheguei ao balcão de uma joalheria que me informaram ser famosa e gozar de muito bom conceito.

Recebido pelo comprador expliquei o que queria e ofereci umas tantas das minhas turmalinas. Foram vistas e analisadas no balcão e levadas ao laboratório.  Alguns funcionários olhavam-me e sorriam.  Um senhor pediu que o acompanhasse ao seu escritório. Deu bode! - pensei. Mas, ali, após muitos rodeios, cautelosas perguntas e curtas repostas, informou que minhas turmalinas não eram turmalinas. Foi um choque! Temendo ser enganado perguntei: Então o que são?

Rodeando, com muito cuidado com as palavras, e meio sem jeito, o velho homem respondeu: São aguas marinhas. Para mim era a mesma coisa, e perguntei: O Senhor quer compra-las? Quanto vale? Quanto me paga?  Disse que precisava avaliar melhor o lote. Queria a minha presença no laboratório para acompanhar o trabalho. Bem, valiam tanto que ele me obrigou a abrir conta num Banco onde depositou um valor enorme. Ofereci mais e quando ia dizer quantas ainda possuía, aquele experiente profissional disse: Nunca diga para ninguém, ninguém, nem pra mim se tiver mais. Nunca contei que tinha quatro caixas de sapatos cheias delas... Se ele soubesse... Mas, ele alertou-me pra eu não falar... É meu amigo até hoje.

Delas, e de muito esforço, nasceram cinco barbearias, cinco academias, cinco restaurantes boutique e cinco spas femininos, todos com o nome Turmalina, e numeradas de 1 a 5. Também a ajuda dada a cinco famílias pobres. As escolas técnicas estão no acabamento.

O importante é que apesar de demoradas as conquistas se sucederam e estão demonstrando resultados: pais que se tornaram responsáveis e cumpridores de suas obrigações, crianças e adolescentes frequentando a escola, garotos aprendendo uma profissão – há dois estudando enfermagem e outro, paisagismo.

Considero que essa parte do projeto sob o controle dos beneficiados e, claro, meu olho vivo, está muito boa, dando bons resultados. Os outros projetos são comandados pelo meu pessoal responsável e de ótima qualidade profissional.

Já servimos de modelo para outras iniciativas iguais – já estivemos em programas de rádio e TV e a Mãe Nena já teve foto publicada na revista do bairro. Posso dizer que vencemos e continuamos vencendo. Somos procurados e solicitados a contar nosso “segredo para o sucesso”.

E a resposta é sempre a mesma: Trabalhamos duro e constantemente. Só temos feriados no Natal e no Ano Novo. Aos sábados faço um churrasco com alguns amigos e bebemos cerveja.

Ah! Só para lembrar, não vamos parar: faremos mais em outros bairros. Claro, com o que ainda tenho em três caixas de sapatos cheias e guardadas... Num cofre, naturalmente.