FÉRIAS
NA VILA
Mario Augusto Machado Pinto
A nossa vida, sem mais nem menos, está
sujeita a acontecimentos inesperados que podem mudar nosso comportamento e
ambições.
A súbita viagem do pessoal do 117 foi um
deles. Pelo menos para mim. Só ficou o pai que pouco via.
Desde o inicio disse ao Fredão que sentia um
clima de tragédia naquela família. Isso, mais a sua natural curiosidade
forçaram seu encontro solo com o pai das meninas. Eu estava mais interessado no
cursinho para medicina.
Um dia me historiou a saga da família do
117 conforme contada pelo próprio Dr. Ignácio, pai das meninas. Houvera um
acidente com o carro deles quando iam de férias a Búzios. Foram abalroados por
um caminhão. O carro saiu da pista capotando várias vezes e pegou fogo. O Dr.
Ignácio, lançado para fora por milagre não se feriu, e com esforço retirou as
duas filhas do banco traseiro. Mas, quando foi retirar a mulher das ferragens, o
tanque de gasolina explodiu. Não conseguiu salvá-la, ela morreu verdadeiramente torrada. As meninas
- são gêmeas – tiveram queimaduras em parte do rosto e da cabeça protegidas que
foram por suas mãos, por isso usam luvas até hoje. Foram meses de hospitais e
cirurgias plásticas; dai ficarem sempre dentro de casa. Elas esperaram o corpo
atingir pleno desenvolvimento e agora estão na Suíça se preparando para a
cirurgia facial, a mais delicada de todas, farão transplantes. Os médicos
garantem total recuperação; voltarão em alguns anos.
— Anos?
— É. Vão
aproveitar para estudar finanças, atividade do pai.
Prosseguimos a nossa vida, tínhamos notícias
delas através do Doutor Ignácio.
Passamos no vestibular para medicina:
Fredão na USP, eu em Ribeirão. Mantínhamos contato pelo Skype e nos encontros em
muitos fins de semana em Campinas. Ao terminamos o curso e a residência, cada
um foi para seu lado. Ele, neurocirurgia em São Paulo, e eu Cirurgia Pediátrica, nos Médicos Sem
Fronteira, na África. Ambos tivemos sucesso.
Minha
equipe era de alemães e indianos. Interessante, por
mais dor que estivessem sentindo e chorassem, as crianças ficavam quietinhas e
até sorriam quando as examinava ou vinham para meu colo.
Francamente,
tinha sucesso e era querido. Sabe Fredão, na pobreza e na miséria há mais
crianças do que adultos. Elas enfermam e sofrem muito mais. A elas me dediquei
de corpo e alma, vinte e quatro horas por dia, todos os dias sem restrição de
qualquer natureza. As mães me escolhiam sempre, e as crianças me chamavam de Dodô
e estavam sempre ao meu redor. Despertei ciúmes na equipe que passei a chefiar,
principalmente dos pediatras mais antigos que consideravam as crianças seus
pacientes desde sempre.
Disse
ao médico chefe da Missão, que não tinha mais clima e ambiente para trabalhar, demiti-me.
Ao aceitar minha demissão disse-me que sentiriam minha falta como médico e como
pessoa. Deu-me várias indicações na Europa.
Fui primeiro
a Paris. Durante três anos entreguei-me às pesquisas sobre os efeitos das doenças
tropicais junto às crianças. Por lindas mulheres apaixonei-me perdidamente
várias vezes. Da última, quase fico por lá. Voltei e aqui estou na Vila
Coentrão. Que saudades... Agora conta: o que Você fez de sua vida?
— Depois.
Tenho coisa mais importante para fazer: preparar o nosso jantar para o Dr.
Ignácio.
— Você?
— É,
sou meio cozinheiro. Faço uns miolos à milanesa pra ninguém botar defeito.
Manjou?
Fui para casa e passei horas vendo fotos
antigas: Ainda crianças com nossos pais, já no Jardim da Infância, no colégio
com uniforme, jogando futebol, chorando de dor por causa do dedão do pé
machucado, erguendo a Taça de alguma competição, cantando nos aniversários, os
tios, os avós, fotos de excursões, na praia, com as namoradinhas, fantasiados
no carnaval, pescando, tantas outras, alguns bilhetes, flores secas e mais um
montão de coisas.
Toquei a campainha do 117 um pouco após as
nove. Era a primeira vez que ia lá. Fui
recebido com um grande abraço pelo Dr. Ignácio. Fomos à sala de visitas,
conversamos um pouco tomando uns aperitivos, quando o Fredão avisou que o
jantar estava sendo servido (me parecia muito intimo da família). O menu – perna de
carneiro cozida com acompanhamentos – risoto de champanhe, vinho branco, tudo
ótimo e repetido.
— A
sobremesa -
disse o Dr. Ignácio - está no sótão
esperando por vocês.
Subimos. Para minha surpresa o sótão estava
decorado como uma saleta intima, almofadões espalhados pelo chão, duas pequenas
mesas de centro, um aparador, um minibar, aparelhagem de som e uma divisória
feita com um biombo chinês.
Fiquei muito surpreso, andei examinando as
coisas e perguntei várias vezes ao Fredão se ele sabia disso tudo. Ele não
dizia nem sim nem não, pedia para eu me sentar.
Sentei-me. Sentou-se ao meu lado e disse:
— Como nos
versos da música, prepare o seu coração para as coisas que eu vou apresentar. Levantou-se, pegou
uma capa preta com forro vermelho, girou-a sobre o biombo e invocou: Alim! Alim,
Saladim! Bim, Bim! Jás!!! E apareceram duas estátuas cobertas com um manto de seda
de costas para nós. Repetindo a invocação, as estátuas ficaram de frente e aí
aconteceu meu quase desmaio quando apareceram as gêmeas. Corremos uns para os
outros, demos mil abraços e beijos, rimos e falamos não me lembro do quê, e caímos abraçados nos almofadões. Aí Fredão
chamou:
— Venha,
venha, não se acanhe, venha!!!
E apareceu minha namorada de Paris, paixão
da minha vida! Abraços, beijos daqueles de filme, risos, lágrimas, tudo que
poderia suceder aconteceu.
Refeito das surpresas fiquei sabendo que as
meninas se conheciam há anos, desde Paris, eram amigas intimas tanto que quando
eu disse à minha namorada que voltaria ao Brasil falaram com o Fredão. Vieram
antes e, com ele, armaram tudo. Meu amor era nascida iraniana, o farsi era
minha segunda língua, aprendi com ela, falamos um pouco aqui para nós,
abraçados e aos beijos.
— E agora, seu moço? Como vai ser?
— Não sei Fredão. Quero gozar este momento em
muitos mais dias e dias. Depois resolvo.
Bebemos ao nosso reencontro, falamos como
gralhas na Feira da Ladra e vimos através das telhas de vidro que a Lua
agigantava-se no céu esmaecido, ressaltada pelo brilho de tantas estrelas. Foi
quando um riso alto e contagiante vindo da residência do número 117 da Rua
Chile pode ser ouvido. Parecia que finalmente a fantástica história daqueles
simpáticos moradores estava tomando um rumo harmonioso. Pela varanda podiam se
vistas sombras que se formavam com o clarão da Lua, sombras que caminhavam
disformes. Brincavam de tão felizes.
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