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Metamorfose Urbana - José Vicente Jardim de Camargo



Metamorfose Urbana
 José Vicente Jardim de Camargo



Não dava mais para encarar aquele trânsito caótico; manifestações de toda ordem; falta de consideração ao próximo; sustos atemorizantes causados pelos incessantes ziguezagues das motos desafiando as leis da física; olhos e narinas cada vez mais irritados pelo ar poluído; sinais de depressão e insônia crescentes; atrasos e desculpas esfarrapadas pelos horários não cumpridos; tempo de lazer cada vez mais curto; Enfim um rol de inconvenientes forçando mais e mais aquela ideia de tomar coragem, iniciativa e dar um basta nesta agonia sufocante.
Largar tudo e mudar-se para um lugar com mais qualidade de vida, encontrar motivos que deem um sentido maior a própria existência.

Mas esta ideia, sempre lhe era cortada pelo conformismo do padrão social adquirido; a estabilidade no emprego; os amigos formados; a cultura acessível;
E depois lhe vinham as dúvidas: – “Ir para onde”? Mudança radical ou paulatina? Litoral, montanha ou campo? Abrir comercio, serviços, tentar a agroindústria?
No fundo até que não via nestas questões grandes problemas, pois, até onde se conhecia, sabia poder se adaptar, com certa facilidade, a estas mudanças. Gostava da natureza em geral, do silêncio, se considerava um observador, de pouco falar e não era muito chegado aos falantes, atuantes de espelho, como definia os mais exibicionistas.  

Para ele, valia a frase:

“Quem mais sabe é o mais modesto!” O importante era ganhar coragem e ir-se para longe das urbes, das metrópoles confusas, caóticas. Para algum lugar onde o carro era só para emergências e todos os demais afazeres poder fazer a pé, de bicicleta, até de ônibus era aceitável, sentado, olhando, observando o vai e vem das ruas e casas, das pessoas, dos passageiros tentando descobrir seus problemas, angustias, sonhos, desejos... Usar barco? Porque não? O mar lhe fazia bem, trazia quietude e inspiração.

Num final de dia, necessitando comprar um presente para um amigo aniversariante e sabendo do seu gosto por livros antigos, entra num sebo e começa a vasculhar, remexer nas pilhas de livros empoeirados, enfileirados, a procura de algo inusitado, diferente, pensando na surpresa agradável do amigo ao receber e a satisfação do agradecimento: -“Puxa, acertou em cheio! Era esse que há tempos vinha procurando” E a surpresa dos demais convivas ao constatarem a preferência do presente.

No aperto do ambiente literato, lhe cai ao chão um livro amarelado, manchado, de bordas encurvadas pelo folhear constante. Um exemplar do Pequeno Príncipe de Saint Exupéry.

 –“Figurinha marcada para quem se considera leitor” pensa.

Mais um movimento brusco e outro livro lhe cai ao chão. Desta vez os poemas de Gibran Kahlil Gibran.

-“Outra figurinha carimbada!”.

Na sequência se depara com os livros de arte, grandes, vistosos e os de cima retratam as Maravilhas do Egito, os Mistérios da Esfinge, a Cultura dos Países Árabe...

Não encontrando nada interessante, sai a procura de outro sebo, na esperança de ainda encontrar o presente desejado.

Mas, ao sair, de repente, um lampejo do passado lhe desperta a mente. Vem-lhe a lembrança da juventude quando se maravilhou ao ler o Pequeno Príncipe, esse clássico da literatura universal. As peripécias do menino piloto que passou a reinar pelos céus, visitando os planetas, as estrelas, fazendo amigos, ora sentado nas dunas de areia do deserto escaldante, ora estendido no frio polar a contemplar as noites de estrelas cadentes, sempre a procura dos verdadeiros valores que o ser humano deve buscar na sua jornada de vida, mergulhando no próprio inconsciente e tudo envolto numa filosofia simples e franca de encarar a realidade do dia a dia. Belíssima trama de cenários e textos repletos de poesia e emoção.

E, do fundo da memória, lhe saltam a tona versos do pequeno grande príncipe com os quais tanto se identificara no passado:

-“Se já construístes castelos de areia no ar, não te envergonhes deles, constrói agora os alicerces”;

- “Os homens cultivam cinco mil rosas num mesmo jardim e não encontram o que procuram. E, no entanto, o que eles buscam poderia ser achado numa só rosa”;

-“Feliz aquele que descobre que a beleza de um deserto é que ele esconde um poço”;

E, assim, como o prazer de um copo de água matando a sede, sentiu que tudo lhe parecia mais claro, mais preciso. Uma onda de otimismo lhe tomou o espírito, lhe renovou os ânimos, lhe subiu o astral.

Convicto com a rápida decisão decidiu que tudo deixaria e até sorriu, quando o local do destino lhe veio à mente.

Sim, lá! Onde desde as leituras dos clássicos árabes, sonhava em estar, de conhecer:

- As misteriosas cidades marroquinas... Iniciaria por Marakeshi, depois Fez, e aos poucos iria se infiltrando no deserto, na vida dos nômades, a perambular pelas dunas, sorvendo aos poucos a magia dos oásis, o sabor exótico das comidas, o sono revigorante das tendas...

Aprender, sempre aprender! Observar, agregar valores, conhecimentos. Sufocar, quando chegasse, as saudades da origem pátria. Andar, parar é covardia...

E, desta vez lhe baixou Kahlil Gibran, seu poeta favorito de tantas horas despertas:

- “És livre na luz do sol e livre ante a estrela da noite. E és livre quando não há sol, nem lua ou estrelas. Inclusive és livre quando fecha os olhos a tudo que existe”;
-”Só uma vez fiquei mudo”. Foi quando me perguntaram:

-“Quem és tu?”.

Sim! Depois da peregrinação e de saciar-se com a sabedoria dos astros profetas, ele poderá voltar às urbes e reverter a metamorfose do meio oriundo. Só que desta vez estará preparado, imune:


-“A neve e as tempestades matam as flores, mas nada podem contra as sementes...”.

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