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Janela Indiscreta 2 - José Vicente Jardim de Camargo



Janela Indiscreta 2
José Vicente Jardim de Camargo


Joel adora cinema, principalmente os filmes de suspense de Alfred Hitchcock, considerado pelos cinéfilos como o melhor diretor de filmes deste tipo da cinemateca mundial.

Ao lado da sétima arte, o passatempo predileto do Joel é o futebol de várzea. Difícil afastá-lo nas tardes de sábado e de feriados do campinho de terra batida da várzea do Carmo. Aguarda os dias de trabalho ansioso pela dupla recompensa que lhe trará o final de semana, compensando o trabalho fatigante de bancário em uma das mais movimentadas agencias de um banco comercial. Filas de clientes impacientes aguardando atendimento, chefia sugando cada minuto de trabalho disponível. Tudo e todos voltados para o cumprimento das metas pré-estabelecidas pela Diretoria visando a maximização do lucro.

É o que os acionistas esperam de todos os colaboradores” diz o jargão utilizado em todos os pronunciamentos da chefia, relegando as reivindicações dos funcionários a um segundo plano.

Na volta a casa, sempre insatisfeito e de saco cheio, Joel troca idéias consigo mesmo sobre a necessidade de procurar outra atividade, menos dependente do contato direto com o público. Talvez mudar para uma cidade do interior, onde do tempo ainda pode-se tirar algo mais para si.

Mas só a ideia de abandonar sua turma da pelada dos sábados e feriados, o faz logo mudar de pensamento e pensar nas recompensas do fim de semana:

“Neste sábado o Tico faz aniversário, com certeza vai levar a turma do Zé do Pagode. Preciso ligar pro Tato para ver quem encomenda os espetinhos da dona Alzira e lembrar o Tuca do chope”. Talvez a Mara apareça no pagode e pinte algo para a  noite, senão, vou assistir “Um Corpo que Cai”. Essa Kim Novak é demais, me deixa sempre excitado. Senão vejo no domingo, após o jogo do timão e que esse fdp do Silvinho não vá me errar mais pênaltis...

A clinica ortopédica São Salvador, por ter expediente 24 horas por dia, é utilizada com frequência pelo pessoal que joga futebol nas várzeas do bairro.

Joel, sentado em cadeira de rodas, perna estendida e engessada da ponta dos dedos até o joelho, não para de insultar o Luizão que lhe deu um carrinho quase na entrada da área e que lhe rendeu, segundo diagnóstico médico, duas rupturas na tíbia. Prazo de recuperação 90 dias mais outros tantos de fisioterapia.

Que saco - comenta com Tato - tanto tempo sem bola não vou aguentar. Pelo menos vou poder curtir meus DVDs de Hitchcock e meu binóculo que comprei usado do Alcides e que até agora não consegui usá-lo por falta de tempo.

Tato intrigado pergunta:

- E pra que você quer esse trem, vai ver o que, se não pode andar?

- Ah, já vi que você não é do meu time quando o negócio é Hitchcock! - Responde Joel sorrindo, já confortado com a ideia de que o Luizão até que lhe tinha prestado um favor.

- Certamente você não viu o filmão dele “Janela Indiscreta”,  uma obra prima!  - e completa - Hoje não tenho mais ânimo pra ir pra várzea nem mesmo com churrasquinho e pagode. Se ver  o campo, vou me lembrar da jogada desgraçada, pelo menos se tivesse sido pênalti...

-É, mas foi por esse lance que o Tuca marcou o gol da vitória, senão nesta hora nois tava era chorando e não comemorando - diz Tato atencioso com o guiar da cadeira de rodas.
Joel decide:

-Me leve pra casa, que eu já sei o que vou fazer, e, se você se apressar, ainda pega chope e carne...
O domingo amanhece ensolarado. Apesar da insistência de Tato, na noite anterior, em ficar com ele para auxiliá-lo nos primeiros movimentos na cadeira de rodas: preparativos do banho, café, necessidades outras, ele recusou:

-Me viro bem sozinho, tiro de letra. Se precisar te ligo!

Mas o que Joel mais queria mesmo, era curtir sozinho o seu desejo de há muito contido, de ter a sua “janela indiscreta”...

Durante a noite, o incomodo da perna engessada que lhe tirava o sono, era superado pela expectativa que lhe traria a vizinhança, já agora por ele tida como misteriosa.

Da gaveta da cômoda antiga, herdada da mãe, tira a caixa preta do binóculo Zeiss, alemão legítimo utilizado na 2ª Guerra Mundial, e  portanto fazendo jus ao preço alto mas, assim mesmo, de amigo pra amigo, segundo Alcides.

A expectativa era tanta que não o incomodou as dificuldades de levantar-se, sentar-se na cadeira de rodas nem o apoiar-se nas muletas para melhor equilibrar-se em uma só perna – “Bendito esse Tato que bem me lembrou em alugar junto com a cadeira de rodas, essas muletas, quebram um bom galho”...
Munido de café preto e torradas, arrasta para a janela a mezinha de centro do apartamento de quarto e sala que alugara, inicialmente como provisório, mas depois, com o término do noivado, por não querer cumprir o prazo de casamento imposto pela noiva, tornou-se definitivo. Acomoda-se prazerosamente e de binóculo em punho inicia a varredura tão esperada.

Em sua frente dois sobrados o distanciam da fachada lateral do próximo prédio, tão alto quanto o seu e, com alegria constata,  com maior número de janelas e terraços.

Suas iguarias na mezinha terminam e nada descobre de valia.  Cenas corriqueiras de famílias com filhos nos afazeres da casa, cozinhando, lavando, brincando com cachorros, pais ralhando com filhos, TVs ligadas, adolescentes ao telefone... Somente uma silhueta de mulher é que, de tempos em tempos, se aproxima da janela com gestos dançantes e desaparece. Mas, por estar atrás de uma cortina de voal, não é possível definir maiores detalhes.

Com a ansiedade diminuída, um tanto desapontado pelos resultados, resolve dar um break, pedir uma pizza, abrir uma cerveja e se preparar para o jogo do timão.

No jogo não consegue se concentrar. Seu pensamento vai da TV às janelas que lhe atraem mais que a bola na telinha. Também o jogo não ajuda. Jogadores sem animo apesar do dinheirão que ganham. Muito mais garra mostra o pessoal da várzea, que invés de dinheiro, reparte as contas de água, luz e a gorjeta do guarda pra evitar invasões dos sem casa e de casais de namorados.

No intervalo do jogo, faz nova varredura, demorando o binóculo mais na silhueta feminina agora já localizada na janela do 6º andar, depois do terraço da área de serviço.

Como das vezes anteriores ela se aproxima da janela e, com o cair da tarde, pode-se ver melhor sua silhueta que lhe parece ser, talvez pela desejo forçado da imaginação, bem sensual. Desta vez porém a luz do ambiente pisca duas vezes. Um arrepio de satisfação percorre o corpo esperançoso de Joel – Vamos Hitchcock, é agora, manda brasa!... Duas vezes mais a luz pisca e a silhueta desaparece.

Joel atento na cena, nem se dá conta de que o jogo já reiniciou. De muleta pulando, traz do quarto ao lado o abajur do criado mudo e, sem titubear, ascende e apaga três vezes, aguarda... Novamente duas vezes, aguarda...

Apaga a luz da sala, desliga a TV nem querendo saber resultado do timão. Repete a operação de apaga, acende, mas nenhum sinal do lado de lá. Pega mais uma cerveja, de gole em gole olha a janela do 6º andar, já marcada na memória. Repete a operação só que agora continuamente, como se estivesse integrado na trama do filme e a qualquer custo necessita de uma reação da, agora já definida como loira e mais sensual que a Kim Novak.

Tem um sobressalto com o toque repentino da campainha...

“Só pode ser ela, pedindo socorro do amante vingativo ou o próprio querendo tirar-lhe satisfações pela ousadia talvez até esteja armado”. Titubeante, equilibrando-se na muleta, mas encarnando o herói do filme, abre a porta e depara com um homem de barba espessa, corpanzil avantajado que sem delongas, ao ver na mesinha da janela o binóculo revelador, lhe defere um punch de direita que o arremessa de cabeça contra a parede oposta bem na quina da porta do quarto: “esse é pela minha filha do prédio em frente, seu bisbilhoteiro fdp, pedófilo! Não lhe dou mais em consideração a sua muleta, mas se continuar com a malandragem, lhe quebro os ossos da outra perna” diz, e pegando o binóculo, arremessa-o janela abaixo com toda a força da raiva contida.

Ao sair cruza com o zelador que nem ousa, dado o estado alterado do intruso e a diferença corpanzil, questionar-lhe as intenções.

Ao abrir os olhos, Joel vê Tato ao seu lado que lhe balbucia: “Você teve uma forte contusão na cabeça e foi necessário fazer uma cirurgia para extração do coágulo. Mas está tudo bem agora. Está na enfermaria do Hospital das Clinicas e deve ficar alguns dias em observação. Se tudo der certo, volta logo pra casa”.

Essa palavra aguça os olhos de Joel que, de perna, e agora de cabeça e pescoço enfaixados, procura, até onde seu olhar alcança, localizar as janelas do ambiente.
Sentindo-se seguro, cerra os olhos e responde a Tato esboçando  um sorriso de alivio:
–Puxa, ainda bem que não vi “Um Corpo que Cai”...



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