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DIA DOS PAIS – MEMÓRIA - Oswaldo U. Lopes

 



DIA DOS PAIS – MEMÓRIA

Oswaldo U. Lopes

 


       João Pedro chegou cedo ao cemitério. Era domingo e dia dos pais, talvez por isso já tivesse gente por lá. Ainda não era muita gente, como seria mais tarde. Cada um ou cada uma tinha seus motivos para essa visita quase ao raiar do dia.

       João Pedro, que, pelo nome, se via ser nascido na segunda quinzena de junho de um ano que ainda começava com um e nove, tentava não misturar as coisas. Em sua própria casa, mais tarde, haveria almoço especial e gente, muita gente iria aparecer, afinal, ele era o pai vivo mais antigo do conjunto.

       Começou a procurar pelo túmulo, vinha pouco, mas se viesse todo dia continuaria a procurar sem achar o local em que estavam enterrados, seu pai, sua mãe e irmãos mais velhos. Sempre achava que as referências eram vastas e delas ele lembrava bem. Aquela sepultura com o Cristo glorioso em cima, aquela com a mulher chorando, a do anjo a tocar trombeta e assim ia.

A motivação era própria dele. As pessoas que ali estavam não iriam a lugar algum, lá estavam e lá ficariam à disposição dos visitantes, dia (no horário de funcionamento do cemitério) e noite (se você tivesse coragem e o muro fosse baixo).

João Pedro queria homenagear e orar em memória de seu pai, mas queria evitar que isso contaminasse a festa do dia para os que estavam vivos. Afinal, ia ter crianças, adolescentes e até recém-nascidos. Se você envelhece, é certo de que terá muitos parentes, e ele começou a sorrir com perspectiva. Gostava muito de conversar, sobretudo com os de meia-idade que estavam lutando para abrir caminho, fortuna e posição.

Naquele conjunto, tinha mais advogados do que médicos como ele. Cirurgião nenhum. Mas, o que esperar, a cirurgia que ele praticara nem mais existia. Ana Luiza, a mais velha na profissão, era consideradíssima no manejo do robô Da Vinci e fazia milagres sem sequer tocar nos pacientes. Num mundo em que a ética ganhara outros tons, até operara a distância através de robôs mais simples e médicos mais jovens.

Podia-se falar da medicina, como no samba do Chico Buarque:

Quem te viu, quem te vê.

Quem não a conhece não pode mais ver para crer.

Quem jamais esquece não pode reconhecer.

Com os advogados, a conversa era mais rebuscada. Afinal, o direito era uma das pedras fundamentais das civilizações. Vinha um pouco antes do “pega para capar’. Embora acumulando erros e decisões mal fundamentadas, era não só necessário como imperativo. Que o diga o filho que já era desembargador.

       E assim vagavam seus pensamentos enquanto depositava o ramo de flores, que trazia nas mãos, no túmulo de seu pai, onde se lia.

Antônio Correia Pires de Almeida.

Curou alguns.

Aliviou outros.

Consolou a todos que o procuraram.

Os bons pais - Ises de Almeida Abrahamsohn

 


Os bons pais

Ises de Almeida Abrahamsohn 


Quais os atributos de um bom pai?

Um bom pai deve se comunicar com seu filho ou filha. Deve conversar, procurar entender os seus problemas e questionamentos, aconselhar e estabelecer limites. Ser um guia e apoiar o filho ou filha ao longo da vida, não importa a circunstância. Estimulá-los a alcançar objetivos e estar presente para consolá-los nas desilusões ou fracassos. Bons pais entendem que a sociedade e o mundo mudaram entre sua geração e a de seu filho, porém transmitem e reforçam as atitudes morais de respeito e convívio.

E como se criam bons pais? Bons pais e bons maridos são criados pelo exemplo e ações tanto dos pais como das mães. Casais que se respeitam, que têm convivência harmoniosa, que dividem as tarefas e que compartilham a educação dos filhos criarão bons pais e bons maridos.

Foi-se o tempo dos pais inacessíveis, alheios aos cuidados com os filhos. Cuidados que eram considerados tarefas da mãe, cabendo ao pai a tarefa de provedor material e eventual ministrador de reprimendas ou castigos.

A esperança é que as atuais gerações de pais atuem como bons pais para que nas gerações seguintes tenhamos pais mais amorosos e mais próximos dos seus filhos.

MEU PAI ANGELO - Antonia Marchesin Gonçalves

 

 

Errol Flynn


MEU PAI ANGELO

Antonia Marchesin Gonçalves

 

             Quando nasci, fazia seis meses que meu pai tinha perdido a mãe aos quarenta e seis anos. Ele era um homem que aprendeu a respeitar os pais e por isso sofria pela mãe, que era afetada por crises de asma, o que lhe provocava muita tosse e falta de ar, fragilizada. Calado, assistia ao seu pai, um homem do campo grosseiro e frio, enquanto sua mãe refinada e educada, ele totalmente indiferente ao sofrimento da esposa, minha avó Antonia.

             Por respeito ao pai, não se rebelava e nada falava, mas sofria calado. Após a morte dela, e minha mãe grávida e por ter já meu irmão de cinco anos, torcia para ser menina. Assim sendo, eu, ao nascer, já me registrou com o nome da mãe, Antonia. Demonstrou assim a sua homenagem à sua mãe. Nos anos de 1946, quando nasci, foi uma época de pós-Segunda Guerra Mundial. Pouco tempo após o término, resolveu, em 1049, sair da Itália e vir visitar o Brasil como turista. Tinha amigos que já moravam em São Paulo que o incentivaram a se instalar aqui, assim foi.

             Eu, com três aninhos, ao se despedir de nós, com a promessa de logo mandar passagens, não me lembro da despedida, lembro sim do dia em que chegamos dois anos depois, com cinco anos. Ao vê-lo alto, bem penteado com seu bigode, a Errol Flynn, ator americano famoso, com terno, naquela época os homens só andavam de terno. A sua emoção ao rever a família me marcou. Passamos a conviver e aprendi que não era de muito falar, a não ser quando tomava o seu vinho, aí sim a língua ficava solta, principalmente sobre política, totalmente contra o comunismo.

             Nunca batia nas nossas travessuras, quando nossa mãe se queixava era com o olhar que dizia muito, bastava um olhar e nos afundávamos na cadeira, quietinhos. Entre as várias turbulências da vida, foi um pai presente, muito trabalhador e a família era o seu orgulho. Sempre acolhia os amigos italianos que ia fazendo com os anos em nossa casa, principalmente aos domingos, com almoços longos terminando em cantoria.

             Morreu cedo, aos sessenta e quatro anos, feliz com os filhos formados e casados, chegando a conhecer os seis netos, que o adoravam e todos guardam boas lembranças de carinho e amor com seu jeito de pouco falar, todos sabiam que eram muito amados por ele.  Foi feliz também que teve a alegria de voltar várias vezes para Itália e, após aposentado, quando ia, ele e minha mãe ficavam dois meses só curtindo a sua cidade natal, Jesolo província de Venezia.

             Esse era o meu papa Angelo.

 

Assassinato no navio de cruzeiros - Ises de Almeida Abrahamsohn

 



Assassinato no navio de cruzeiros

Ises de Almeida Abrahamsohn

A partir de escrita coletiva dos participantes do “Escreviver” : Suzana Lima, Oswaldo Lopes, Yara Mourão, Ledice Pereira e Ises  A.A.


O navio de cruzeiros Ocean King levantou âncora pela manhã do porto de Santos e agora seus passageiros se debruçavam nas amuradas para contemplar o Pão de Açúcar e o esplêndido pôr do sol na baía de Guanabara. As primeiras tímidas conversas aconteciam entre os viajantes.

Logo mais, à hora do jantar, os viajantes se acomodaram, sorridentes, nos lugares previamente marcados, prontos a apreciar as especialidades do chef francês. Entretanto, em uma das mesas causou alguma estranheza um lugar que permaneceu vago à mesa. Talvez algum passageiro que cancelou à última hora ou indisposto. Logo a conversa à mesa tomou outro rumo e o fato foi esquecido.

O jantar foi acompanhado pela música suave de fundo executada num piano de cauda. Ao término do jantar, o pianista se apresentou no amplo bar contíguo e tocou algumas peças do repertório erudito demonstrando seu talento. Edgar falava português perfeitamente com um leve sotaque, talvez da região dos Balcãs. Era natural da Sérvia, porém se naturalizara brasileiro.

 Edgar Todorovic atendeu a alguns pedidos dos presentes. Após sua performance, parou por uns minutos junto ao balcão do bar e tomou uma dose de vodka, trocando algumas palavras com o barman. Em seguida, visivelmente cansado, o pianista se retirou do salão.

Cerca de uma hora mais tarde os passageiros, que agora tinham se espalhado pelos outros bares e salões do navio, notaram uma agitação inusitada dos garçons e demais empregados com conversas entrecortadas por exclamações de espanto e preocupação.  

Logo fez se ouvir um comunicado do comandante:

 

Nosso pianista Edgard faleceu de causas desconhecidas ao retornar à sua cabine após a apresentação do seu show”.  Solicita-se aos passageiros que se recolham às suas respectivas acomodações. Estão encerradas as atividades previstas para a noite”.

 

O teor da mensagem sugeria que a morte não acontecera por circunstâncias naturais.

De fato, o pianista foi encontrado morto por um colega que estranhou não haver resposta ao bater na porta da cabine que não estava trancada. Ao primeiro exame a profunda marca no pescoço indicava que tinha sido asfixiado por um fino cordão de nylon. O assassino provavelmente o esperara já na cabine atacando de surpresa. Não havia sinais de luta visíveis. Os documentos da vítima indicavam que Edgar era de fato sérvio tendo se naturalizado brasileiro há 15 anos. Tinha atualmente 57 anos.

O navio já havia saído da baía da Guanabara, porém o capitão decidiu voltar quando acionada a Interpol devido à identidade sérvia do pianista.  Ele vivera na Sérvia até 1995 durante a cruenta Guerra da Bósnia entre 1992/95. Também foi apurado que era militar nessa época e tinha participado como oficial. Ao final da guerra, teria 27 ou 28 anos e tinha saído da Sérvia. A entrada no Brasil foi há 16 anos e ele declarou-se apátrida, requerendo depois a nacionalidade brasileira. No período entre 1995 e a entrada no Brasil em 2008, seus paradeiros eram um mistério. Parecia ter se evaporado. Porém, não havia mandados de busca contra ele ou acusações por eventuais crimes de guerra.

No porto carioca, na manhã seguinte, o corpo foi retirado para perícia no Instituto Médico-legal e o pessoal da perícia ligado à Interpol subiu a bordo para exame da cabine e interrogar os demais empregados do navio. Pouco conseguiram.

Um dos camareiros, Sven, um sueco morador em Natal, conhecia o pianista Edgar de outras viagens em navios de cruzeiro, mas pouco sabia de sua vida. Aliás, foi a pessoa que o encontrou morto na cabine. Jogavam xadrez para se distrair e tomavam alguns goles juntos, mas o camareiro não sabia nada da vida pregressa do pianista. Apenas que era muito reservado e falava várias línguas.  Aparentemente, não se interessava por mulheres, embora fosse cortês com as colegas. Um dos engenheiros da casa de máquinas também o conhecia e os dois, ao se encontrar, conversavam em alemão ou francês sobre assuntos como música ou escritores preferidos. Ao ser interrogado, o engenheiro Ferencz, húngaro, confirmou não conhecer nada sobre a vida pregressa do pianista, que desviava o assunto quando a conversa chegava próxima à sua vida pessoal. Os outros empregados tinham sido recém-contratados, porém uns três, entre eles o barman Louis, já tinham trabalhado em outros navios onde o pianista se apresentara e o conheciam de trocar algumas palavras.

       O pessoal da perícia não encontrou nenhuma pista na cabine que foi vasculhada em todos os cantos. Nem digitais, nem escritos particulares ou outros documentos, ou fotos do falecido que pudessem ser de maior interesse.  Apenas duas fotos foram encontradas de Edgar quando jovem, orgulhoso ao lado de um piano de concerto e de uma bela mulher que devia ser a mãe. Atrás das fotos estava escrito Conservatorium Novi-Sad Прва награда (pronuncia-se Prva nagrada) significando primeiro prêmio e a data, 1982. Os seguranças esmiuçaram a cabine inteira, atrás de digitais ou quaisquer pistas da identidade do assassino, ou assassina (embora não acreditassem que fosse mulher devido ao método do crime e ao porte de Edgard).

       O navio precisava seguir a viagem. Os policiais ficaram com a lista de passageiros e empregados para outras investigações em Santos e no porto de embarque da vítima.

       O detetive Marcos, da Polícia de Estrangeiros, carioca e ligado à Interpol, foi designado para o caso e depois das entrevistas no navio e pericia foi deslocado para Santos para aprofundar a investigação.

       Em Santos, chegou a uma pensão onde o pianista se hospedava em um quarto amplo com banheiro privativo nos períodos entre viagens. Costumava alugar um piano para ensaiar durante o dia. Era calmo, pontual nos pagamentos e embora cortês com outros moradores não estabeleceu nenhuma amizade. Por alguns períodos saia à noite para tocar, quando contratado por hotéis ou bares em Santos, ou no Guarujá.  Dona Eulália, dona da pensão, lamentou a perda de tão bom hóspede e das músicas que alegravam o seu dia a dia. Era de opinião que devia existir algum segredo na vida pregressa do Seu Edgar.

       Com as informações obtidas o detetive Marcos construiu um perfil da vítima.

       Tocava em bares e restaurantes e em navios de cruzeiro música pop internacional, principalmente. Tinha sido recentemente contratado para trabalhar no enorme navio de cruzeiro o “Ocean King”, que zarparia do porto de Santos. Falava um português correto às vezes mesclado de palavras em espanhol, porém com um leve sotaque. Era sérvio, fluente em inglês e alemão e também se virava no francês. Era um pianista popular dominando o repertório internacional de hits românticos dos compositores da primeira metade do século XX, americanos e franceses e improvisava bem no jazz e na bossa nova. Antes do Ocean King tinha sido contratado em outros navios de linhas importantes como a Norwegian, Costa e algumas que navegavam no Caribe.

       Seu horário de trabalho em navios era das oito da noite até a uma da manhã, com quatro intervalos de quinze minutos. Era metódico. Dona Eulália tinha observado como cuidava das mãos e aplicava um creme hidratante com massagens ao longo dos dedos. Afinal, dizia ele, são os meus instrumentos para ganhar a vida...       Fazia diariamente séries de flexões de joelhos e exercícios com os braços para aliviar as tensões da posição ereta ao tocar o instrumento.

       O barman Louis contou ao inspetor os hábitos do pianista. Voltando dos intervalos ao palco ou restaurante, parava no bar ou encomendava ao garçom um copo de suco e um de água. Bebia o primeiro e o segundo costumava levar a uma pequena mesa ao lado da banqueta do piano. Jamais tomava bebida alcoólica durante o dia, ou antes e nos intervalos das apresentações. Apenas após terminar, de madrugada, bebia uma única dose de vodka gelada, de um só gole, à maneira dos escandinavos. Depois descia para sua cabine localizada nas entranhas do navio, no mesmo corredor das demais cabines destinadas aos empregados. Essa era a rotina que costumava adotar nas viagens de navio, com eventuais pequenos ajustes.

       Edgar era muito reticente sobre seu passado e suas origens. Era magro de estatura média, 1,73 metro de altura segundo os dados do passaporte; o smoking impecável o fazia parecer mais alto. Tinha cabelo liso escuro penteado para trás deixando a testa livre. O rosto tinha algo de oriental ou mongol pelos olhos escuros ligeiramente oblíquos e as maçãs do rosto altas. Esta era sua primeira viagem no Ocean King. Os carimbos no passaporte confirmavam as viagens anteriores nas embarcações de outras linhas.  

       O detetive Marcos verificou que quando Edgar se apresentou a bordo pediu ao imediato para ver a lista dos demais empregados sob o pretexto de verificar se haveria algum conhecido de viagens anteriores. Percorreu atentamente a extensa lista. Desde os maquinistas, comunicadores, até o pessoal da cozinha, os que trabalhavam nos restaurantes e bares, arrumadeiras e animadores, grupos de dança e atores. Enfim, a lista enorme de mais de duas centenas de empregados para atender alguns milhares de passageiros. Ao devolver a lista comentou que havia reconhecido um ou outro nome de companheiros de viagens anteriores. Outra lista que pediu para consultar foi a de passageiros, o que soou estranho ao imediato que recusou.

       O cruzeiro do Ocean King seria de 25 dias costeando o Brasil até Natal, de onde rumaria até o Senegal, na África e depois até Cádiz, na Espanha, seu destino final.

       Após zarparem Edgar ficou na cabine até a hora do almoço que foi servido aos empregados às 11:30. Voltou à cabine e por volta das 15 horas foi caminhar no convés superior e se exercitou na academia por uma hora. Depois tomou um café em um dos bares e encontrou seu colega Sven para uma partida de xadrez que durou cerca de hora e meia. Depois, Edgar começou a se aprontar para a função noturna. Tocou no restaurante principal desde as 20 horas até o final do jantar às onze horas e depois no amplo bar contíguo até uma da manhã. Essa tinha sido a determinação do coordenador de entretenimentos do navio e foi confirmada pelo barman quando interrogado ainda no Rio.  Todas as movimentações do pianista até se retirar à uma da manhã foram confirmadas.

       O detetive entrou em contato com os colegas da perícia do Rio para verificar se haviam encontrado algum outro indício que pudesse ser útil para identificação. Havia uma pegada no carpete de sapato masculino tamanho pequeno,40, que poderia ser do criminoso. Os fios de cabelo preto encontrados na cabine aguardavam análise, mas tudo indicava serem da vítima. Nada havia sido roubado da cabine, nem documentos ou passaporte, ou um relógio de pulso de marca valiosa encontrado em uma gaveta. O relógio que a vítima trazia no pulso era do tipo comum sem valor. Também não encontraram telefone celular e ninguém nunca o vira usar um.

Qual seria o motivo do crime? Marcos avaliou que  o crime estaria de alguma maneira ligado à vida anterior do pianista, mas quando?  Apostou que algum indício poderia vir das duas fotografias encontradas na cabine. Tinha entrado em contato com a Interpol na Sérvia e passado as fotos e as anotações do verso. Enquanto aguardava alguma informação, resolveu trabalhar na lista de passageiros embarcados em Santos e na lista dos empregados no navio. Era um trabalho tedioso, mas mais rápido com o uso do computador. Dispunha dos nomes de todos além da nacionalidade e número dos passaportes. O assassino provavelmente era do sexo masculino devido à natureza do crime, que requeria passar o fio estrangulador com muita força e rapidez de modo a bloquear a reação imediata da vítima.

Marcos era metódico. Primeiro, percorreu a lista de empregados que era menor, cerca de trezentos. Considerando que o crime estava possivelmente relacionado a algum acontecimento. Concentrou-se nos empregados de nacionalidade ou naturalidade estrangeira. Havia cerca de trinta homens nesta situação, entre os quais aqueles que já conhecia Sven, Ferencz e o barman argelino Louis. Enviou para as sedes da Interpol em Lyon na França e em Washington, os dados para verificar se havia alguma informação registrada sobre os empregados estrangeiros.

No dia seguinte obteve respostas negativas de ambas as agências.  Marcos estava ansioso pelas respostas do escritório da Interpol da Sérvia. Passou mais uma vez na pensão de Dona Eulália para verificar se conseguia alguma outra informação ou se algum conhecido da vítima tivesse aparecido ou ligado, mas nada havia de novo. Era hora de almoço e o detetive resolveu espairecer, almoçando num dos bons restaurantes de peixe da ponta da praia.

Ao voltar para o hotel encontrou as respostas da Sérvia. Bingo... Acertei. O sujeito tinha mesmo com que se preocupar. O pianista Edgar era, na verdade, Borislav Yesensky. As fotos tinham sido tiradas quando recebera um prêmio no Conservatório aos quinze anos. Aos dezoito anos terminara os estudos de piano e tentara sem sucesso um emprego nas escolas ou conservatórios das cidades próximas. Teve que fazer serviço militar e acabou permanecendo na ativa. Foi promovido a oficial. Nessa altura, a biografia se tornava interessante.

 Como militar participou na Guerra da Bósnia durante os três anos de duração. Comandava grupos que invadiram Srebrenica em 1995 e que participaram do massacre de milhares de pessoas, a maioria muçulmana. Com o final da guerra em 1995 e com muitos dos seus colegas de farda acusados por crimes de guerra, Borislav sumiu de casa e do mapa. Não deu baixa no exército e nem se despediu da mãe e da irmã. Ambas já haviam falecido.

Marcos pensou que talvez   o assassinato do pianista, agora identificado como Borislav, fosse devido à sua ação na guerra, embora quase trinta anos houvessem se passado.  Voltou imediatamente ao computador para esmiuçar a gigantesca lista de passageiros. A estratégia seria procurar por homens que tivessem nomes ou sobrenomes oriundos do Levante, ou da antiga Iugoslávia, possivelmente muçulmanos. A busca identificou cerca de duzentos com sobrenomes oriundos de países do Oriente Médio, Turquia, Síria, Líbano. Ainda era muita gente. A maioria era de brasileiros descendentes de imigrantes que desde o início do século passado vinham se estabelecer no norte e no sudeste. Descartados os brasileiros, sobraram apenas oito nomes. Eram provenientes dos Emirados Árabes, da Arábia Saudita e do Egito e viajavam com esposa ou família. Entretanto, um nome entre os oito chamou a atenção de Marcos. Aleksander M. Zaric -Radíc. Um sobrenome iugoslavo. Quando Marcos olhou o passaporte, tinha quase certeza de que achara o assassino. A inicial do meio M. correspondia a Mohamed, indicando a religião muçulmana do passageiro Alexander. Entrou em contato com o navio que havia deixado o porto de Salvador no dia anterior. Confirmou que o passageiro ocupava uma das cabines interiores e que recusara os serviços de limpeza da camareira desde o dia em que zarparam. Não fora visto andando no convés, mas tinha comparecido às refeições.

Marcos ligou para o barman. Marcos havia estabelecido um bom contato com Louis e acertara com ele que ficasse de olho nos passageiros. Louis lembrou de um passageiro que destoava dos outros. Era um homem de estatura média, atarracado que parecia nervoso e deslocado. Chegou atrasado para o jantar, pedindo desculpas. Ocupou o lugar designado, mas ficou ali, meio à parte, constrangido sem participar da conversa. Jantou rapidamente, não quis vinho, nem sobremesa. Parecia estar com pressa. Pediu licença, e saiu para o convés quase vazio àquela hora. Porém, Louis o viu voltar ao salão de refeições e se instalar numa das mesas ao fundo do bar. Estava ali isolado com um café à sua frente quando o pianista chegou para tocar. O barman observou que o sujeito não pediu nenhuma bebida e permaneceu lá na penumbra. Mas Louis não sabia dizer quanto tempo ou se o tal sujeito encontrara alguém. Apenas notou que, ao avisar o fechamento do bar para os últimos pedidos, a mesa estava vazia.

O detetive tinha agora quase certeza de que o tal Aleksander era o assassino. Entrou em contato com o imediato. Era necessário verificar se o passageiro de nome Aleksander Zaric-Radíc se encontrava no navio e no dia seguinte, ao aportar em Recife, sem alarde, policiais da polícia federal o levariam para interrogatório na Central da polícia de estrangeiros.

No Recife, os dois policiais em vão bateram à porta da cabine. Ao ser aberta, encontraram apenas a cama desarrumada e uma mala barata vazia. Sobre a cama, um envelope de papel pardo amassado com uma carta de duas páginas endereçada à polícia escrita em inglês básico, mas suficientemente esclarecedora.

Na carta, revelava que havia matado o pianista cujo nome verdadeiro era Borislav Yesensky. Não queria que outra pessoa levasse a culpa pelo ato. O pianista era um criminoso de guerra e comandara e matara centenas de pessoas na sua vila em Srebrenica. Borislav pessoalmente fuzilara todos os membros de sua família, sua mulher, seus dois filhos e seu irmão mais novo. Só ele, Aleksander escapara por não estar em casa. Quando ocorreu o cessar-fogo enterrou seus mortos e abandonou a casa destruída. Conseguiu saber de alguns vizinhos a identidade do militar assassino que também comandara massacres em outras vilas. Sabia que o assassino estava foragido e também que tinha sido pianista quando jovem.   Aleksander jurou que iria matar o assassino de sua família. Relata que trabalhou como pedreiro em vários países da Europa, sempre tentando encontrar pistas do criminoso sérvio e ex-pianista Borislav Yesensky. Dele tinha em mãos uma fotografia antiga com os companheiros d

e caserna. Vasculhou jornais procurando pianistas em casas noturnas e teatros. Até contratou um serviço de procura de desaparecidos.  Conta que em 2017, quando trabalhava na Bélgica, viu num jornal um anúncio de turismo de um navio norueguês que, entre as atrações, mencionava a apresentação de um “famoso” pianista sérvio.  Foi atrás do citado pianista em Oslo e descobriu junto à companhia de navegação que se tratava mesmo do assassino Borislav; usava o nome de Edgar Todorovic, e tinha adquirido a nacionalidade brasileira. Atuava normalmente nas linhas de cruzeiro no Caribe e nas Américas, mas tinha sido chamado para substituir nessa viagem o pianista regular que adoecera. O navio estava em cruzeiro. Aleksander esperou até que aportasse e reconheceu Borislav entre os tripulantes que desciam a escada e caminhavam na direção do prédio de controle da alfândega. Apesar de envelhecido, Aleksander reconheceu-o imediatamente. Gritou: Borislav, Borislav. Este, surpreendido involuntariamente, virou-se ao ouvir o nome, parou e, largando a bagagem, saiu correndo entre os edifícios do porto. Aleksander não conseguiu alcançá-lo nem o encontrar em Oslo. Depois de muito insistir, conseguiu saber que o pianista havia embarcado após uma semana num navio da companhia que rumava de volta ao Brasil. Aleksander trabalhou ainda na Europa para juntar dinheiro para as despesas de viagem. Finalmente, em 2023, conseguiu viajar para o Brasil. Em Santos, localizou o navio onde o pianista iria atuar. Achar o endereço de moradia de Borislav/Edgar na cidade foi impossível. Aleksander conseguiu comprar uma cabine interna no Ocean King. Tinha tudo planejado. Como descreve na carta, usaria um fio de nylon resistente que preparou, prendendo cada ponta a uma empunhadura de madeira. Precisava surpreender e não permitir barulho ou resistência. Ficaria na cabine até o próximo porto em Salvador e escaparia em meio aos passageiros do cruzeiro. Já tinha comprado os bilhetes dos voos que o levariam a Recife e de lá para Amsterdam e depois para algum lugar onde não pudesse ser encontrado. Queria viver os anos que lhe caberiam em paz. Finalizava assim a carta.

O detetive Marcos comunicou o conteúdo da carta aos superiores. Os contatos com o aeroporto internacional de Recife revelaram que Aleksander de fato já embarcara para Amsterdam na noite anterior. A questão era se iriam dar prosseguimento à procura de Aleksander Zaric -Radíc. O grupo da Interpol do Rio decidiu não prosseguir com a investigação. O caso tinha sido elucidado e o Marcos pessoalmente considerou que o melhor era deixar o bósnio viver em paz os anos que lhe restavam.

 

 

 

O caso do duende - Maria Verônica Azevedo

 



O caso do duende

Maria Verônica Azevedo

 

Ao ler a proposta de hoje, eu me lembrei de uma canção de quando eu era criança.

       “Um dia, uma criança me falou, olhando nos meus olhos a sorrir: o que é preciso para ser feliz?”

Desde então, fico me perguntando se as crianças, na sua ingenuidade, não têm uma sabedoria, que as leva a serem otimistas.

Na minha rua, moram crianças de várias idades, que costumam brincar na pracinha, onde podem inventar as brincadeiras livremente.

Rafael, com sua imaginação fértil, lidera o grupo.

Na praça onde costumava brincar, tem uma casa que parece abandonada, com poças de lama e bastante mato.

Rafael incentiva o grupo a pular o muro para investigar aquele quintal.

Vários aderem à ideia de Rafael e se propõem a segui-lo.

Já dentro do quintal, vão caminhando, pé ante pé, observando o espaço com certo receio do desconhecido.

À medida que avançam, vão se deparando com vários gatos.

No grupo, está Patrícia, que tem alergia a gatos. Logo tem uma reação e começa a se coçar, desesperada, chorando.

De repente, surge do meio da vegetação um duende gorducho, bastante agitado, que grita:

— Este bosque me pertence. Não admito invasores.

Com um gesto brusco, ele imobiliza as crianças.

Rafael enfrenta o duende gritando, tentando assustá-lo.

Pego de surpresa, o duende foge dali.

ESCREVENDO UMA HOMENAGEM AOS PAIS

 



Alguns grandes autores trabalharam poesias, contos, romances e filmes homenageando os pais. 


E você, o que escreveria 

para homenagear seu pai?



As Mãos do Meu Pai – Mário Quintana

“As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já cor de terra
— como são belas as tuas mãos —
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram
na nobre cólera dos justos…

Porque há nas tuas mãos, meu velho pai,
essa beleza que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam
nos braços da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas…

Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
vieste alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los contra o vento?
Ah, Como os fizeste arder, fulgir,
com o milagre das tuas mãos.

E é, ainda, a vida
que transfigura das tuas mãos nodosas…
essa chama de vida — que transcende a própria vida…
e que os Anjos, um dia, chamarão de alma…”

 

 

Distinção – Carlos Drummond de Andrade

O Pai se escreve sempre com P grande
em letras de respeito e de tremor
se é Pai da gente. E Mãe, com M grande.
O Pai é imenso. A Mãe, pouco menor.
Com ela, sim, me entendo bem melhor:
Mãe é muito mais fácil de enganar.
(Razão, eu sei, de mais aberto amor.)

 

 

O pai -Pablo Neruda

Terra de semeadura inculta e brava,
terra que não tem estreitos nem sendas,
minha vida sob o sol treme e alarga.
Pai, os teus olhos doces nada podem,
como nada puderam as estrelas
que me abrasam os olhos e as fontes.
O mal de amor cegou a minha vista
e nesta fonte doce do meu sonho
refletiu-se outra água estremecida.
Depois… Pergunta a Deus por que me deram
o que me deram e por que depois
soube da solidão de terra e céu.
Olha, minha juventude foi broto
puro que ficou sem abrir, perdeu
sua doçura de sangues e de sucos.
O sol que cai e cai eternamente
cansou-se de beijá-la… E sendo outono,
Pai, os teus olhos na podem.
Escutarei na noite tuas palavras:
menino, meu menino…
e na noite imensa seguirei
com as minhas e as tuas chagas

 

Soneto ao pai – Edival Lourenço

Oh! Fluida infância! Pátria faz-de-conta!
Pobre de coisas com riqueza d’alma:
palhoça, vento, verde, aves e calma
para fruir a vida em toda monta.

Aquele ano choveu além da conta
e abriu-se um olho d’água em nossa casa
que meu pai ajudou, com fina vaza,
fazer o arroio: do Araguaia ponta.

Encanta-me o sentido que propala.
Maior riqueza, sei, ninguém encontra:
o nascente Araguaia nos escala.

A vida tem o rio a inspirá-la:
mereja, empoça, entorna, enfim desponta
promissora qual jorro de olho d’água!

 

A voz do meu pai – Manoel de Barros

Abro os olhos.
Não vejo mais meu pai.
Não ouço mais a voz de meu pai.
Estou só. Estou simples.
Não como essa poderosa
voz da terra
com que me estás chamando, pai —
porque as cores se misturam
em teu filho ainda
e a nudez e o despojamento
não se fizeram em seu canto;
mas, simples por só acreditar
que com meus passos incertos
eu governo a manhã
feito os bandos de andorinha
nas frondes do ingazeiro.