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Bem que eu tentei - Ledice Pereira

 



Bem que eu tentei

Ledice Pereira

 

Tantas lembranças passando em minha mente como se fossem recortes de filmes embaralhados...

— Lembra quando seus pais me levaram para viajar com vocês? Se não fossem eles eu nem conheceria Ubatuba. Naquela época, meus pais não tinham nenhuma condição financeira. Ainda me recordo da casa com aquelas janelas enormes que davam para o mar. É como seu eu ouvisse ainda o barulho das ondas rebentando ali perto. Eu tinha um medo de que as águas invadissem a casa. Sem meus pais, eu me sentia desprotegido, por mais que seus pais tentassem suprir a falta deles.

— E naquela manhã em que você resolveu se exibir entrando mar adentro! Eu te chamava aflito e você me provocava, nadando mais e mais, deixando que a correnteza o levasse para o fundo. Senti alívio quando vi seu pai indo ao seu encontro, trazendo você, que começava a roxear, para a beira da praia. Ele estava bravo, passou-lhe um baita de um pito.

Roguei a ele que não o pusesse de castigo. Você fingindo chorar, piscou pra mim numa espécie de agradecimento. Gostava de viver perigosamente.

Foram várias as vezes em que eu tive que apartar suas brigas, ou buscar você no meio do mato de onde não conseguia sair. Sempre aprontando.

Quando se é criança, quatro anos e meio faz uma enorme diferença. Como mais velho, eu me achava na obrigação de cuidar de você. Esperava que a idade o fizesse mudar, mas você continuava a viver no limite.

Até sua mãe desistiu de você, abandonando casa, marido e filho, até morrer numa clínica psiquiátrica.

Foi demais pro seu velho pai que, alguns anos depois, também se foi.

Continuei tentando protegê-lo de você mesmo, sem sucesso. Resolvi seguir a minha vida. Casei-me e afastei-me por julgar que você seria um péssimo exemplo para meus filhos.

Você percebeu e procurou evitar de participar da nossa vida.

Hoje, arrependo-me de ter meio que te abandonado. Afinal, eu era o seu único amigo de verdade. Talvez eu tivesse evitado que hoje você estivesse aí, nesse caixão, sem ninguém mais pra chorar a sua morte. Por você ter despencado do alto daquela montanha de onde, até hoje, ninguém conseguiu sair vivo.  

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