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MEMÓRIA DESTA VIDA SE CONSENTE - Oswaldo Lopes

 




Oswaldo Lopes em tarde de autógrafos

MEMÓRIA DESTA VIDA SE CONSENTE

Oswaldo Lopes

 

        Regina guiava com cuidado, de volta do cemitério, onde fora visitar o tumulo de sua mãe, morta faz um ano. De momento lhe veio à mente o verso incomparável de Camões: “ Memória desta vida se consente”.  Será que há outra vida, será que a memória desta é levada para lá?

         Subitamente começou a rir, lembrando os tempos de escola. Famoso era o poema pelo cacófato (o primeiro verso do soneto  “alma minha gentil que te partiste”), maminha no colégio provocava risos sufocados. Quem hoje em dia sabe o que é cacófato ou liga para isso?

        Mais do que nada, os poetas servem para isso, colocar em verso sentimentos estranhos que não sabemos resolver. Memória, memória, o que se levaria para o além, supondo que ele exista e a memória seja consentida.

        Memória, memória... Primeira coisa que vem a cabeça de mulher é homem, pensou e riu sozinha, enquanto guiava. Como era mesmo a cantiga que entoavam na escola:

O primeiro foi Paulo, o segundo foi João o terceiro foi Mateus com quem Regina se casou.

        Paulo foi um caso de Pronto-Socorro. Interna, mas não iniciante, Regina se deparou com aquele rapaz, bonito, elegante, que capotara com o Paulistinha no Campo de Marte. Fez bobagem, mas teve muita sorte. O avião ficou de cabeça para baixo e ele foi retirado com apenas um talho grande na coxa. O tempo que Regina passara estagiando na plástica foi ótimo. Fez um serviço notável, já mal se via a cicatriz com os pontos intradérmicos. Era obvio que ficaram íntimos e saíram juntos algumas vezes.

        A memória lembra, mas o caso não foi longe, Paulo gostava mais de aviões do que de qualquer outra coisa, mulher incluída. Voou muito, virou engenheiro de voo e sumiu misteriosamente num avião da Varig em cima do Pacifico. Ele, toda tripulação e uma coleção de obras de Manabu Mabe que iam para o Japão. Essa história que tinha uma ligação com o voo de Orly, também da Varig, chamou muito atenção na época e agora, claro voltava na memória.

        João, o segundo, não era papa, mas um colega, médico que era especialista em gineco-obstetrícia. Juntaram as coisas e os trapos e tentaram ir em frente. Consultório comum, apartamento idem. Só que Regina era renomada cirurgiã plástica e quando você mistura na sala de espera clientes de plástica com clientes de ginecologia e obstetrícia o resultado é um enorme desastre. Fora os chamados noturnos, obstetrícia, como todos sabem, trabalha mais a noite, em geral de madrugada.

        A memória lembra, mas não com muito agrado. Foi um tempo muito complicado que acabou tristemente. Ele pra lá, noite adentro e ela para cá dormindo sossegadamente.

        O terceiro, como na canção, foi aquele que Regina deu a mão. Mateus, o advogado. Pois é, tem gente que acha que medicina e direito são profissões complementares. Nos Estados Unidos, ambas são profissões que exigem um college anterior, ou como alguns dizem são profissões pós-graduadas. A brincadeira é dizer que ambas têm o direito de matar, sem deixar vestígios.

        O casamento, sim casaram, deu certo e tiveram filhos, três no total. As conversas na mesa de jantar eram interessantes porque os assuntos não eram profissionais e quando eram, pelas circunstancias, tinham caráter pouco profundo. Não havia colisões.

        Como dizia o outro poeta: “Mas que seja infinito enquanto dure”. Durou bastante ou durou pouco, não dava para dizer, uma doença silenciosa levou Mateus com pouco mais que bodas de prata.

        Agora estaria ele “no assento etéreo”? Talvez com memoria de sua vida, consentida. De que se lembraria?

        E assim, como dizia o poeta da canção: “Perdida em pensamentos”, na direção do carro seguia Regina, com seus apóstolos, Paulo, João e Mateus, entre poemas e canções tentando encontrar a memória desta vida.

Alma Minha Gentil, Que Te Partiste - Soneto de Luís Vaz de Camões

 

ALMA MINHA GENTIL, QUE TE PARTISTE
Luíz Vaz de Camões





Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer te
algüa causa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver te,
quão cedo de meus olhos te levou.



Soneto dedicado a sua amada, a chinesa chamada Dinamene. Camões, segundo a lenda, estava de viagem a Macau, na China, quando seu navio naufragou. Indeciso, sem saber se salvaria a noiva ou a obra épica “Os Lusíadas”, o jovem poeta optou pela narrativa clássica. Com remorso, escreveu este soneto com base antitética: ela, um anjo celestial; ele, um homem ímpio, vivendo encarnado, só. Outra vez vê-se a temática neoplatônica: o homem é impuro e a mulher perfeita. Por fim, ele pede que ela interceda junto a Deus, para que este o leve a vê-la, dada a extensão de seu amor.


Veja este e outros tantos sonetos de Camões.


Abaixo temos o soneto cantado lindamente  em ritmo de fado.



Biografia de Luís de Camões

Luís de Camões (1524-1580) foi um poeta português. Autor do poema Os Lusíadas, uma das obras mais importantes da literatura portuguesa, que celebra os feitos marítimos e guerreiros de Portugal. É o maior representante do Classicismo Português.

Nascimento e Juventude

Luís Vaz de Camões nasceu em Lisboa, Portugal, por volta de 1524. Era filho de Simão Vaz de Camões e Ana de Sá e Macedo, aparentada com a casa de Vimioso, da alta nobreza portuguesa, e sobrinho de D. Bento de Camões, cônego da Igreja de Santa Cruz de Coimbra.

Em 1527, durante uma epidemia de Peste, em Lisboa, D. João III e a corte transferiram-se para Coimbra, e Simão, a mulher e o filho, com apenas três anos, acompanharam o rei.

Luís de Camões viveu sua infância na época das grandes descobertas marítimas e também no início do Classicismo em Portugal. Foi aluno do colégio do convento de Santa Maria. Tornando-se um profundo conhecedor de história, geografia e literatura.

Em 1537, D. João III transferiu a Universidade de Lisboa para Coimbra. Camões iniciou o curso de Teologia, mas levava uma vida irrequieta, desordeira, além da fama de conquistador, mostrando pouca vocação para a Igreja.

O Poeta e o Soldado

Em 1544, com 20 anos, deixou as aulas de teologia e ingressou no curso de filosofia. Já era conhecido como poeta. Nessa época, compôs uma elegia à Paixão de Cristo, que ofereceu a seu tio. Seus versos revelam que ele estudou os clássicos da Antiguidade e os humanistas italianos.

Em 1544, com 20 anos, encontra-se com D. Catarina de Ataíde, dama da rainha D. Catarina da Áustria, esposa de D. João III e, desse encontro nasce uma ardente paixão, mais tarde imortalizada pelo poeta, que se referia à dama do paço, com o anagrama “Natércia”.

Nessa época, a intelectualidade nacional era incentivada, sobressaindo-se escritores, pensadores e poetas, como Sá de Miranda e o próprio Camões.

Em um sarau, seguido de um torneio poético, o espanhol Juan Ramon, sobrinho de um professor da Universidade, sentiu-se ofendido por causa dos versos de Camões.

Seguiu-se um duelo e o espanhol saiu ferido, o que terminou na prisão do poeta, sob o protesto dos estudantes. No final de muitas discussões, Camões é perdoado, com a condição de ser desterrado durante um ano em Lisboa.

Na capital, os versos do poeta eram apreciados pelas damas da corte. Era perseguido por outros poetas, sendo vítima de muitas intrigas para desprestigiá-lo e afastá-lo da corte. Para fugir das perseguições, em 1547, Camões resolve embarcar, como soldado, para a África. Serviu dois anos em Ceuta. Combateu contra os mouros e durante uma briga perdeu o olho direito.

Em 1549, Luís de Camões retorna para Lisboa e entrega-se a uma vida desregrada. Em 1553, envolve-se em novo incidente, ferindo um empregado do paço. Foi preso e permaneceu um ano encarcerado.

Nessa época, inspirado nas conquistas ultramarinas, nas viagens por mares desconhecidos, na descoberta de novas terras e no encontro com costumes diferentes, escreve o primeiro canto de sua imortal poesia épica, Os Lusíadas.

Posto em Liberdade, em 1554, Camões embarca para as Índias. Esteve em Goa, e toma parte de várias outras expedições militares.

Camões
Camões - Retrato pintado em Goa (1581)

É nomeado provedor em Macau, na China e durante sua estada aí, escreveu mais 6 contos de seu poema épico. Em 1556, parte novamente para Goa, mas sua embarcação naufraga na foz do rio Nekong.

Camões consegue se salvar nadando, levando consigo os originais dos Lusíadas. Chegando a Goa, é preso novamente em consequência de novas intrigas. Ali recebeu a notícia da morte prematura de D. Catarina de Ataíde.

Os Lusíadas

Em 1569, Camões resolve voltar para Portugal e embarca na nau Santa Fé, levando consigo um escravo, que lhe acompanhou até seus últimos dias. Chega a Cascais em 7 de abril de 1570. Depois de 16 anos, estava de volta à sua pátria. Em 1572, publica seu poema Os Lusíadas. Que celebra os feitos marítimos e guerreiros de Portugal.

Camões faz do navegador uma espécie de símbolo da coletividade lusitana e exalta a glória das conquistas, os novos reinos formados e o ideal de expansão da fé católica pelo mundo. O poema é composto de dez cantos, cada canto é formado por estrofes de oito versos. Com o sucesso, Camões recebe do rei D. Sebastião uma pensão anual, que mesmo assim não o livrou da extrema pobreza em que vivia.

Inspirado em A Eneida, de Virgílio, Camões narra fatos heroicos da história de Portugal, em particular a descoberta do caminho marítimo para as Índias por Vasco da Gama. No poema, Camões mescla fatos da História Portuguesa a intrigas dos deuses gregos, que procuram ajudar ou atrapalhar o navegador.

Um aspecto que diferencia Os Lusíadas das antigas epopeias clássicas é a presença de episódios líricos, sem nenhuma relação com o tema central que é a viagem de Vasco da Gama. Entre os episódios, destaca-se o canto III que relata o assassinato de Inês de Castro, em 1355, pelos ministros do rei D. Afonso IV de Borgonha, pai de D. Pedro, seu amante:

Canto III

Passada esta tão próspera vitória,
Tornado Afonso à Lusitana Terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e digno da memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que depois de ser morta foi Rainha.

Tu, só tu, puro amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa a molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.

Estavas linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus formosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

 

Um Poeta Múltiplo

Camões foi um poeta sofisticado e popular. o poeta erudito do Renascimento, mas às vezes, se inspirava em canções ou trovas populares e escreveu poesias que lembram as velhas cantigas medievais. Além de Os Lusíadas, Camões escreveu poemas líricos, versos bucólicos, as comédias El-rei SeleucoFilodemo e Anfitriões e uma coleção de sonetos de amor, entre eles o mais famoso O Amor é fogo que arde sem se ver:

Amor é fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói, e não se sente,
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer,

É um não querer mais que bem querer,
É um andar solitário por entre a gente,
É nunca contentar-se de contente,
É cuidar que se ganha em se perder,

É querer estar preso por vontade,
É servir a quem vence, o vencedor,
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Morte

Luís de Camões morreu em Lisboa, Portugal, no dia 10 de junho 1580, em absoluta pobreza. Segundo alguns biógrafos, Camões não tinha sequer um lençol para lhe servir de mortalha. Teria sido enterrado em cova rasa. Mais tarde, em 1594, Dom Gonçalo Coutinho, mandou esculpir uma lápide com os dizeres: "Aqui jaz Luís de Camões, Príncipe dos Poetas do seu tempo. Viveu pobre e assim morreu"

(origem: e-biografia)

O TRAJE IDEAL - SILVIA HELENA DE ÁVILA BALLARATI

 


 O TRAJE IDEAL

SILVIA HELENA DE ÁVILA BALLARATI


Faço as malas pensando no delicioso convite para uma festa em fazenda no Mato Grosso do Sul. Resolvo ir de vestido, separo um bem bonito, estampado, super de acordo com a ocasião,  e coloco dobrado com o maior capricho na mala. 

Chego em Dourados, sexta-feira e começo a sentir calor, muito calor, mesmo sendo 9h da noite. Imagino que o vestido escolhido, por ter mangas ¾, não vai dar certo. Àquela altura já estou incomodada com o suor no pescoço, nos braços e passo a sofrer antecipadamente, só de pensar no dia seguinte. 

Decido comprar um vestido novo, bem fresquinho, sem mangas. Peço ajuda à minha sobrinha que sugere lojas de pessoas conhecidas.

De manhã tomo um café rápido com minha irmã, café preto, só isso; o "breakfast" completo deixo para depois. Vou para o quarto me arrumar e ouço vozes na copa, gente chegando. 

Buzinam na rua, Luiza avisa que Marília, minha sobrinha, nem vai entrar. Saio do quarto, pronta para ir comprar o vestido novo, quando me deparo com ele. Nesse momento a copa está cheia de gente, mas ele rouba minha atenção, não consigo desviar o olhar dele: o pão de queijo caseiro, assado na hora, fumegando. 

Nem percebo as pessoas, só uma coisa vai no meu pensamento; corro lá fora e grito na direção do carro: "Não vou mais, entra para tomar café!"  Sem entender nada, Marília vem e pergunta o que está acontecendo. Talvez ela não entenda, parece preocupada comigo. Será que percebe a riqueza do momento?

 O pão de queijo é muito mais que um alimento, é um estilo de vida, é uma satisfação que não se pode adiar. Junto com ele vem as conversas antigas, o café, a broa, o queijo fresco, o papo sem fim. Parentes e amigos reunidos, um momento clássico nas famílias do interior e isso eu não posso perder.

Hei de achar outro traje para vestir, penso comigo e largo o vestido pra lá. A conversa se estende animada pela manhã toda, lembranças, risadas, histórias, só paramos na hora de ir para a festa. Visto uma blusinha, sei que estou menos arrumada, mas sinto-me tão linda por dentro, tão repleta desse momento riquíssimo que minha dúvida se esvai. 

Vestido ou pão de queijo? Acho que fiz a escolha certa.

 

O Cavaleiro Destemido - Maria Verônica Azevedo

 



O Cavaleiro Destemido

Maria Verônica Azevedo


            Jonas é conhecido por aquelas paragens como o cavaleiro misterioso. Nunca houve alguém naquela vila que contasse tê-lo visto sozinho sem o seu companheiro Faísca.

            Faziam os dois longas caminhadas em busca de um lugar onde se fixar. Tinham saído da velha cidade onde Jonas nasceu, mas que não oferecia oportunidade para uma vida melhor. É verdade que ele aprendera alguma coisa com o pai, pioneiro que desbravara aquela terra inóspita com muito esforço, mas sem conseguir progredir. Faísca era o único amigo de Jonas.

            O cavalo estava sempre por perto mesmo quando Jonas descansava da lida diária com a manutenção do sítio, dormindo na rede armada na sombra do grande salgueiro. Aquela sim era uma sombra preciosa naquela terra tão quente.

            A vida corria em paz até que um dia chegou a notícia trazida pelo sacristão da vila que entrou correndo na casa de Jonas. O rapaz estava deveras apavorado. Os olhos arregalados e a respiração ofegante testemunharam aquela aflição.

            ¾ Socorro, Dom Jonas! O vigário foi assaltado. Um bandido mascarado com revólver e tudo entrou berrando na igreja. Levou todo o dinheiro da coleta. E ainda deu um empurrão no monsenhor que se estatelou no chão.

            Jonas não pensou duas vezes. Montou no faísca e ainda puxou o sacristão pela gola da camisa para que subisse na garupa. Saíram os dois em disparada rumo à igreja. O sacristão, visivelmente amedrontado, se agarrava na crina do cavalo. Ao se aproximarem da encruzilhada não repararam no carro de bois. O desastre inevitável aconteceu. Com o susto, Faísca empacou jogando o sacristão na estrada barrenta. O pobre homem demorou para se dar conta do que tinha acontecido. Sentado ali na beira da estrada, todo sujo de lama, não tinha ânimo para se levantar. Jonas, que a essa altura já tinha dominado o Faísca, amarrou o cavalo ao tronco de uma árvore e acudiu o sacristão. Fez de tudo para convencer o sacristão a subir de novo no lombo do Faísca, mas não teve sucesso. Então continuaram caminhando pela estrada os dois homens lado a lado seguidos pelo cavalo. A noite já ia se aproximando. Quem passava pela estrada, voltando para casa depois da lida diária, estranhava aquela cena: no escuro do começo da noite, um cavalo bem fagueiro acompanhado de dois homens cansados e desanimados  andando ao seu lado. Houve quem sorrisse diante daquela situação insólita. Afinal, para que serviria um cavalo tão folgado?

 

Lina, a árvore e o relógio - Adriana Frosoni

 





Lina, a árvore e o relógio

Adriana Frosoni

 

Lina era uma menina encantadora e, como tal, as coisas à sua volta pareciam encantadas também. Ela passava as tardes lendo na varanda da sua casa de paredes brancas, janelas azuis e floreiras constantemente coloridas pelos gerânios. O gramado estava sempre verdinho e não havia cerca na frente do jardim.

Quem passava pela rua e não conhecia Lina, ficava intrigado. No meio de um jardim tão bonito havia uma árvore horrível. Baixa e tortuosa, ela tinha galhos secos e raízes saltadas. Mas as pessoas do bairro que passavam por lá conheciam o segredo da árvore e já nem a achavam tão feia assim: ela era mágica.

Lina vivia lendo para as crianças que passavam por lá e, quando terminava a leitura, juntos eles enterravam o livro embaixo de uma das raízes da árvore. Então ela tirava do bolso um relógio, também mágico, que começava a brilhar intensamente. Entregava-o para as crianças e dizia:

— Olhem para o ponteiro maior, quando ele der uma volta completa no relógio, brotarão vários livros dos galhos da árvore, um para cada um de nós. Assim, vocês poderão ler para outras pessoas também.

Encantadas, as crianças observavam o relógio engraçado, que tinha muitos ponteiros coloridos girando desordenadamente. Mas ao final da volta do ponteiro maior, o relógio parava de brilhar e os livros brotavam dos galhos da árvore. 0s olhos delas cintilavam; apanhavam e abraçavam os livros e então voltavam para suas casas felizes e saltitantes, cheias de imaginação, levando novas histórias para contar.

Um dia um homem muito ganancioso descobriu o segredo da árvore e decidiu roubá-la. Ele pensava apenas em reproduzir milhares de coisas e depois vendê-las. Numa noite fria e silenciosa, ele pegou uma pá e foi tentar tirar a árvore do jardim de Lina. O que ele não sabia era da existência do relógio e de que não era o primeiro a tentar tal maldade. Quando ele deu o primeiro golpe com a pá, duas raízes agarram seus pés e puxaram-no para baixo da árvore.

Na manhã do dia seguinte Lina percebeu o relógio se agitando quando foi guardá-lo no bolso, abriu a janela e viu a pá caída ao lado da árvore. Ela chamou seu pai e foram juntos ver quem era o dono da ferramenta. Chegando perto da árvore ela tirou o relógio do bolso, os ponteiros começaram a girar, ao final de uma volta completa vários homenzinhos brotaram dos galhos da árvore e caíram de lá sozinhos, como frutas podres. Imediatamente depois as raízes da árvore devolveram o homem, que estava assustado e com os olhos arregalados. Então os homenzinhos levantaram do chão e começaram a correr atrás dele, que fugiu sem olhar para trás.

­— Papai, quanto tempo mesmo eles vão correr atrás daquele homem? — Perguntou Lina.

— Até que ele aprenda a lição e se arrependa da maldade que ia fazer.

BIBI, o JABUTI - Sergio Dalla Vecchia

 



BIBI, o JABUTI

Sergio Dalla Vecchia

 

Era uma vez um jabuti que vivia em um grande quintal de um sobrado. Chama-se BIBI, nome escolhido pelo pai dos meninos que fez uma analogia do formato do casco com um quepe dos soldados apelidado de bibi.

Nesse quintal havia um galinheiro, muito bem construído com telas de arame, dois ninhos e alguns poleiros sob uma cobertura. Mais ao fundo havia também um aquário, onde peixinhos de várias cores nadavam tranquilos para lá, para cá, balançando suas longas caudas. Vez ou outra a porta do galinheiro era aberta para as galinhas saírem e ciscarem na grama saboreando larvas e insetos apetitosos. Existia também o Pingo, um cachorro Basset que recebeu o nome de Pingo, pois tinha as cores preta e bege, lembrando o leite pingado com café. O quintal era uma alegria só, com a bicharada toda interagindo ao som dos canarinhos do pitoresco viveiro ali existente.

Assim era a vida de Bibi. Por ser solitária fez amizade com as galinhas, aproximava-se delas com o pescoço esticado, balançando de um lado para o outro chamando as amigas para brincar. Assim passavam bons momentos.

Certo dia um garoto vizinho trouxe um quelônio um pouco diferente da Bibi e dizia que ele sabia nadar. A molecada incrédula fez logo um teste colocando-o no aquário. Na mesma hora ele saiu nadando, para surpresa dos meninos. Um olhou para o outro e tiveram mesma ideia de colocar a Bibi também na água.

Glub, glub ...foi o que ouviram quando Bibi foi direto ao fundo! Imediatamente foi retirada e por pouco não morreu afogada.

Arrependidos e desconfiados, começaram a comparar os dois quelônios, cascos, dimensões, peso e patas. Examinaram com mais detalhes as patinhas do nadador e observaram que elas tinham uns formatos diferentes, eram menos arredondadas, esguias e possuíam membranas entre as garras, diferentemente das patas da Bibi, que eram roliças, pesadas e sem membranas. Daí a visitante por ter casco mais leve e patas com membranas conseguia nadar. Bingo! Aí estava o mistério.

No dia seguinte contaram para a professora o ocorrido e ela explicou que existiam várias espécies de quelônios, conhecidos genericamente por tartarugas.

A professora empolgada, prosseguiu descrevendo as espécies para os ansiosos alunos:

Quelônios são uma ordem de répteis que incluem as tartarugas, cágados e jabutis. Existem 14 famílias e 356 espécies espalhadas nas regiões tropicais e temperadas do planeta.

Tartarugas são os que vivem no mar e na água doce, possuem grande porte, morfologia aquática, portanto são excelentes nadadoras.

Cágados são os que vivem tanto na água como na terra, menores e esguios, como o que nadou no aquário.

Jabutis, vivem somente em terra como a Bibi, são pesadas e com morfologia própria para tanto. Não conseguem nadar.

Ao término da explicação improvisada ela prometeu aos alunos avançar na pesquisa das espécies nas próximas aulas.

Assim saíram todos felizes com expectativas para as próximas dias, tudo por causa de uma molecagem com a pobre Bibi, que felizmente sobreviveu e deve estar vivinha até hoje.   

A experiência valeu a pena, aguçou a curiosidade e os meninos nunca aprenderam tanto em tão pouco tempo!

VERDADE QUE DÓI OU MENTIRA QUE CONFORTA - Ledice Pereira

 



VERDADE QUE DÓI OU MENTIRA QUE CONFORTA

Ledice Pereira

 

Vânia acordou suando, outra vez o mesmo pesadelo. Aquilo tornara-se recorrente. Respirou fundo. O despertador marcava quatro horas da manhã. Revirou-se na cama sem conseguir pegar no sono novamente. Na verdade, o medo de sonhar outra vez fazia com que lutasse para não dormir.

Levantou-se, dirigiu-se à cozinha, preparou um café bem forte. Podia sentir o descompasso das batidas de sua pulsação.

Não aguentava mais. Desde que se omitira sentia-se assim. Aquilo estava fazendo-lhe mal.

Devia ter falado a verdade. Mesmo que doesse seria preferível do que confortá-la com uma mentira. A mãe sempre lhe dissera que a mentira tem perna curta. Era disso que tinha medo. Se Genoveva descobrisse, a amizade de ambas iria por água abaixo.

Como poderia consertar aquela situação?

Tinha vontade de telefonar, marcando um encontro, mas Genoveva costumava dormir até tarde.

Deixou passar as horas. Isso a fez perder a coragem novamente.

Apenas ela sabia da verdade.

Jurava que sua omissão fora para que a amiga não sofresse, mas isso estava custando um preço muito alto. Ela estava a ponto de enlouquecer.

Precisava se abrir com alguém, mas quem?

Ao menos assim o segredo estava guardado a sete chaves. Dividir com alguém seria dar chance ao azar.

O dia começava a clarear. Resolveu sair para caminhar. Precisava esfriar a cabeça.

Estava tão absorta que não viu o carro em velocidade. Foi jogada do outro lado da rua.

Nem percebeu quando a colocaram na ambulância em estado crítico.

Genoveva soube do ocorrido e correu para o hospital para ver a amiga querida.

A fratura no maxilar exigira muita habilidade dos cirurgiões que tiveram que imobilizar a parte afetada por tempo indeterminado.

MENTIRAS QUE PROVOCAM AUSÊNCIAS - Antonia Marchesin Gonçalves

 


MENTIRAS QUE PROVOCAM AUSÊNCIAS

Antonia Marchesin Gonçalves

 

                Aprenda a dar sua ausência para quem não valoriza sua presença. Essa é uma verdade, demorei muito para aprender e perceber que se doar sem nada pedir em troca não tem valor para as pessoas em geral. Não só isso, também a intolerância com a mentira dificulta os relacionamentos. Diziam não precisa mentir é só “omitir”, a verdade nua e crua não ajuda, pode ser dito de outra forma.    

                Tudo bem, é verdade, devemos sempre estar em eterno aprendizado, aceitar e ao mesmo tempo sentir-se frustrada por violar a sua característica, é quase castrar a tua personalidade. Com o tempo vai afetando a saúde física trazendo malefícios que sempre terminam no consultório médico. Muito comum a pessoa mais sincera ser usada pelos próximos para resolver problemas, a procuram na hora difícil, são ajudados e depois somem, sem dar um telefonema sequer.

                Nesse meio tempo tudo correndo bem, sequer vêem compartilhar as boas coisas vividas. Muito comum nesses casos voltarem quando novos problemas surgem, desculpas por suas ausências, normalmente sempre por excesso de problemas. Mas tem o velho ditado que diz: mentira tem perna curta, tem sempre alguém que sabe da verdade e conta. Como disse, aprendi e finalmente resolvi dar uma basta, passei cada vez mais me ausentar, até quase não mais comparecer.

                Os poucos momentos compartilhados, conversas só o trivial com pouco envolvimento de minha parte, aí a minha ausência passou a ser motivo de censura e críticas, a mudança passou a incomodar.  Ainda acredito que é melhor uma verdade que dói do que uma mentira que conforta.

O SORRISO DA SOGRA ME LEMBRAVA... - Ledice Pereira

 


O SORRISO DA SOGRA ME LEMBRAVA...

Ledice Pereira

 

O sorriso da sogra me lembrava uma professora que tive no ginásio. Ela dava aula de matemática.

Era irônica. Debochava dos alunos que se equivocavam, fazendo gracejos.

Aquilo me irritava profundamente. Tinha vontade de faltar às aulas dela, mas isso me prejudicaria.

Um dia resolvi denunciá-la à diretoria. Já havia tantas reclamações que minha denúncia foi a gota d’água. Sua demissão foi inevitável.

Com a sogra, entretanto, eu apenas fiquei prevenida. Não tinha a quem denunciá-la, muito menos ao meu marido.

Nunca demonstrei a ele o sentimento de desconfiança que nutria por ela...