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O Crime do padre Jerônimo - Ises de Almeida Abrahamsohn

 


O Crime do padre Jerônimo

Ises de Almeida Abrahamsohn

 

A cidadezinha de São Bernardo das Neves acordou gelada e opaca naquela manhã de julho para mais um dia modorrento. Dias mansos sem sobressaltos vividos pelos cidadãos bernardenses, todos respeitadores das leis de Deus e dos homens. Ou a bem dizer, quase todos!

Anselmo, ao abrir a porta da sacristia às cinco e meia, encontrou o padre Jerônimo caído atrás da escrivaninha. De início pensou que o padre desmaiara, porém, ao virar o corpo não havia dúvida. O homem  estava morto, bem morto. E mais, o rosto congestionado, os olhos esbugalhados e a marca púrpura ao redor do pescoço indicavam a causa mortis. Anselmo empurrou o corpo com o bico do sapato. Ainda não estava rígido, portanto fora morto há menos de três horas.

Já foi tarde, falou baixinho persignando-se.

Fez por merecer. O que fazer? Se chamo a polícia, vão acabar prendendo alguém daqui mesmo. Disso tenho certeza. Alguém daqui com bons motivos para despachá-lo para o inferno.

Anselmo hesitava em ligar para o posto policial. Pensou em chamar Dona Marilda. Pessoa ponderada, a diretora da escola tinha prestígio na cidade e ele desconfiava também ter sofrido nas mãos do padre. Assim como ele mesmo e outras vítimas na cidade. O sujeito era um crápula. Usava o que ouvia nas confissões para chantagear os fiéis. Tinha ouvido Seu Arlindo, o farmacêutico, comentar com D. Marilda sobre uma carta encaminhada ao bispo.

Quando o Pe. Jerônimo chegou à cidadezinha foi inicialmente acolhido com entusiasmo. A paróquia estava há dois anos sem pastor. A modesta igreja dedicada a São Bernardo era cuidada por alguns dedicados fiéis. O recém designado era um sujeito alto, muito magro, cabelo escuro e barba curta aparada. Usava sempre batina preta com colarinho branco e um crucifixo de prata sobre o peito. Parecia um jesuíta saído das pinturas de El Greco. Os olhos castanhos penetrantes passeavam pelo rosto do interlocutor como que analisando cada palavra proferida. Raramente sorria. Em suma, não era um padre acolhedor ou simpático. Porém, a bem da verdade, parecia muito culto. Fazia citações da bíblia e os seus sermões eram obscuros. Insistia muito na necessidade de os fiéis virem à igreja para confessar os pecados e purificarem alma.

As pessoas lembravam com saudade Pe. Antônio. Era um sacerdote alegre, aberto, sempre com uma palavra amistosa para adultos e crianças. Falava ao coração dos fiéis, acudia os pobres e os ricos sem distinção. Mas, ele já não estava mais no mundo dos vivos.

Que contraste com o atual padre! Porém, o que fazer ? Era o que a comunidade tinha conseguido. Veio em fevereiro com duas cartas de recomendação para o prefeito. Com o passar do tempo, quase um ano, os moradores da cidadezinha foram se acostumando com os modos e maneirismos do Pe. Jerônimo.

Os moradores mais importantes, e também melhor situados economicamente, formavam o grupo que de fato administrava a cidade. Era a esse grupo seleto que o Pe Jerônimo dedicava suas melhores atenções. O prefeito se cercava desses conselheiros quando tinha que tomar decisões importantes. Além de D. Marilda e do farmacêutico, faziam parte o fazendeiro Ananias e seu Murilo, dono do hotel e do supermercado. Ao final da missa, o padre cumprimentava um a um, e às respectivas famílias à porta da igreja, distribuindo sorrisos melífluos a torto e a direito.

Passado o Natal, o sacristão Anselmo começou a notar que primeiro a D. Marilda e depois os outros membros do grupo do conselho da cidade começaram a rarear a frequência à igreja. A diretora deixou de trazer flores para os vasos do altar, o farmacêutico só entrava na igreja quando o pároco não estava.  Pararam de vir à missa dominical, assim como o fazendeiro e o dono do supermercado. Anselmo conjeturava a causa da debandada. Algo mais sério devia estar acontecendo. Ele mesmo mantinha distância do Padre, que o tratava secamente quase com rispidez. Só falavam o essencial. Estava mesmo pensando em se afastar da função. Mas seria difícil encontrar alguém para cuidar da igreja onde ele também fazia as vezes de zelador e consertador geral. O prefeito lhe ofereceu um aumento no ordenado para manter a igreja em bom estado.

Em abril, Anselmo quis se confessar em preparação para a Páscoa. Costumava ir até a cidade de Ponte Nova para se confessar com o padre que conhecia há duas décadas. Porém nesse ano seu amigo e confessor tinha viajado por um problema de família. E Anselmo teve que se confessar com o Pe. Jerônimo. Anselmo fez a besteira de confessar sua ligação homossexual com um rapaz da cidade vizinha. A princípio tudo bem, recebeu a penitência e palavras acusatórias. Foi o começo de diária perseguição com perversas insinuações soltas aqui e ali. Até que, numa manhã após a missa das sete, o sujeito fez a chantagem. Em troca de uma boa soma depositada em conta silenciaria sobre a ligação de Anselmo. Anselmo ficou apavorado. Acabou cedendo. Parte das economias destinadas à compra de uma casa em São Paulo, foram parar na conta do padre. Foi então que Anselmo se deu conta da possível razão do afastamento da igreja por parte dos conselheiros. Se tinha acontecido com ele, devia estar acontecendo com outros.

Olhou o relógio. Quase seis horas. Ligou para a casa de D. Marilda. A professora, de início muito assustada sugeriu, ao se acalmar, que seria melhor chamar os outros participantes do conselho. Ela se encarregaria das ligações.

E assim antes das sete horas lá estavam os quatro e mais o sacristão Anselmo reunidos na sacristia. Entreolharam-se desconfiados. De início apenas palavras banais, “coisa terrível”, “acontecer na nossa cidade”, “não  pode ficar impune” etc. etc.  O Sacristão foi se impacientando. Resolveu abrir o jogo.

Quem fez, fez um favor a todos nós e à cidade. O cara era um demônio. Se aproveitava das fraquezas dos outros. Desconfio que nem padre era.

Um a um os presentes assentiram. Sim. Era verdade o que Anselmo dizia. Ao mesmo tempo cada um pensava.... Quem teria encomendado a morte do pároco? Era justo que fosse julgado e condenado? Provavelmente um dentre eles, gente honesta e temente sofrendo nas mãos do chantagista.

O fazendeiro Ananias, homem prático, sugeriu:

Vamos sumir com o corpo. Ainda temos aí uma hora até que a neblina se dissipe. Temos que fazer um pacto de silêncio. Para o prefeito e para a população, o padre viajou durante a noite. O Anselmo limpa a sacristia e remove qualquer vestígio  do crime. Eu tenho uma lona na caminhonete. Junto com o Murilo e o Arlindo vamos levar o corpo até o rio depois da represa, tenho um barco lá e afundamos o desgraçado. Marilia vai daqui direto para a escola justificando que saiu cedo para adiantar alguma tarefa.

Antes das oito estavam os três na beirada do rio. O corpo enrolado na lona com o devido lastro de pedras foi carregado até o barco. Ananias ligou o motor e o barco avançou até o meio do rio. Murilo e Arlindo rolaram o morto para a água.

  Fez por merecer! Resmungou o fazendeiro. Em dez minutos Ananias estava com o barco preso ao atracadouro da margem. A neblina se mantinha cúmplice. Não se enxergava sequer um metro adiante.

O sumiço repentino do malquisto padre rendeu muitos comentários. O prefeito que tinha sido poupado da extorsão e nada sabia escreveu para o bispo indagando sobre o Pe. Jerônimo. A resposta veio rápida, não existia nenhum padre Jerônimo. O delegado de Ponte Nova informou que a descrição do padre correspondia à do bandido conhecido como Geninho que já aplicara golpes no interior da Bahia. Foi dado como foragido e completamente  esquecido. Os conselheiros mantiveram a palavra. Nunca mencionaram o ocorrido. Anselmo mudou-se com o namorado para São Paulo e tornou-se roteirista de filmes. Vinte anos mais tarde, relatou o acontecido em um roteiro de filme. Os personagens e lugares todos fictícios, é claro.


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