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Motim no araçá - José Vicente Camargo



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Motim no araçá
José Vicente Camargo



Corria apressada pela trilha desviando dos empecilhos de sempre: pedras, galhos, poças d’água e principalmente do turbilhão de companheiras na contramão igualmente apressadas e sobrecarregadas com pedaços de folhas verdinhas, escolhidas a dedo, para alimentarem os fungos da horta que posteriormente seriam servidos à rainha, mãe de todas elas. Vez ou outra recebia das formigas soldados a ordem de atacar um inimigo a vista e transportá-lo como alimento ao formigueiro.

A rotina exaustiva do dia a dia, sem esperança de melhoras, ia deixando a formiguinha cortadeira cada vez mais deprimida com seu destino. Por que não nasci formiga soldado? Pelo menos seria mais alta, teria uma melhor visão desse mundo ao meu redor que desconheço. Quando estou carregada, fica pior, pois tenho de andar de cabeça baixa para suportar o peso da carga que me foi imposta.

Nessa ladainha de infortúnios sente uma antenada mais forte vinda de uma companheira na contramão que balbucia: “Amanhã, na cova do araçá morto, tem reunião das cortadeiras. Despiste os soldados. Compareça, é para o seu bem! ”

Uma sensação de bem-estar toma conta dela. Algo nunca antes acontecido, reunião secreta? Provavelmente de protesto, pois já tinha escutado que companheiras outras também estavam desgostosas com o dia de mortas vivas que tinham. A espera pelo amanhã foi angustiante. A noite contava as horas em conta-gotas. Mal o amanhecer despertou, afiou suas lâminas, descuidando do capricho de sempre, e deslizou pela trilha misturando-se ao turbilhão de cortadeiras, obreiras, empregadas, afastando ao máximo das formigas soldadas que a tudo observavam com suas garras prontas para intervirem ao mínimo movimento de desorganização. Procurava marchar em cadência com as batidas aflitas de seu coração e expulsava da mente qualquer sinal que significasse cuidado, perigo, desistir, conformar-se, como se fosse enfrentar a língua úmida e rápida do tamanduá.

Nessas condições chega ao lugar indicado. Outras centenas de convidadas já recheavam a cova do que foi um dia um frondoso pé de araçá até que um dia uma rainha raivosa, insatisfeita com seu macho Zangão que a fertilizou contra sua vontade debaixo de sua sombra, vingou-se depositando no seu tronco seus ovos que desabrocharam num enorme formigueiro que com sadismo, tal sua rainha, devorou suas folhas com devotada rebeldia que em pouco tempo desabou de fraqueza e morreu.

Com antenas eretas, a formiguinha aguarda os sinais comunicativos, até que vibra o som das promotoras do encontro pedindo atenção:

“Cortadeiras! Escolhemos vocês entre milhares de outras tantas para darmos início aos movimentos de protestos contra a nossa escravidão. Cada uma de vocês passará a espalhar entre suas companheiras as boas novas da luta pela liberdade. Sabemos pelas colegas agricultoras, limpadoras e alimentadoras, que a rainha está prestes a levantar voo para acasalar e formar nova colônia para a qual deveremos nos juntar em seguida. Porém, contando com o apoio de outros insetos que convivem nosso suplício, não iremos. Com a ajuda deles derrotaremos as formigas soldados que tanto nos martirizam e viveremos em liberdade baseada no princípio da união faz a força. Doravante não mais cortaremos folhas e flores que dão subsistência aos nossos amigos apoiadores: cigarras, besouros, minhocas e abelhas. Uma mão lava a outra! Manteremos seus alimentos intactos e, em troca, ganharemos nossa liberdade. Fora a tirania!
Fora a tirania! Responde em eco as ouvintes...

A formiguinha cortadeira não pode acreditar no que ouve. Seus sinais de angústia, diariamente repetidos, não foram em vão. Junto com os de outros milhares de companheiras, serviram para penalizar os insetos ao redor que resolveram acabar com aquela injustiça exposta. Desejaria que os insetos amigos, tomando o exemplo delas, conseguissem também se unirem e vencerem seus grilhões prisioneiros.

Nesse ziguezaguear lúdico não se dá conta de que desviou bastante do trilho ordenado com tanto rigor e sente no corpo franzino um ferrão que o corta em dois.

Suas antenas miram para um céu azul, manchado por um brilho amarelado, que nunca vira antes: Será o tal sol? Pensa com um sorriso de felicidades dependurado nas cortadeiras murchas...


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