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SUZANA DA CUNHA LIMA - VÁRIAS HISTÓRIAS



RECORDANDO ANTIGOS TEXTOS


SUZANA DA CUNHA LIMA






A LENDA DO AMOR ETERNO


 Diz a lenda que o Absoluto reinava no mundo escuro do sem-fim.  Mais além, já nas fímbrias deste espaço infinito, surgia o Universo, com seus planetas e estrelas e todos os corpos celestes.

O Absoluto tinha dois Filhos, Zairo e Zoé, encarregados de dar as características masculinas e femininas aos seres vivos que povoavam o mundo das leis universais, ou seja, o Universo.

Um dia, Zairo recusou-se a esta tarefa e foi imediatamente sugado para dentro de um dos inúmeros buracos negros do mundo do sem-fim.  Zoé ficou com a tarefa dele junto com a sua, assim, apelou para o Grande Magma, que habitava um destes buracos.

   O grande Magma foi breve e sucinto: você tem que conceder a imortalidade a alguém ou a alguma coisa ou criar alguma que a mereça.  É assim que o Poder se perpetua. Mas você tem apenas o tempo de três pulsões para isso. Isto significava três semanas terrestres.

E antes que Zoé pudesse falar alguma coisa, desapareceu.  Zoé percebeu que devia partir para o Universo, ciente de que, ao atravessar a Grande Margem Negra, não havia mais volta.  Foi o que fez, com muita coragem, pois sabia que devia encontrar a Fenda do Tempo e através de muitos passados e futuros, chegar ao luminoso Universo dos corpos siderais. E depois encontrar um planeta habitado para checar as qualidades e defeitos de seus habitantes e ver quem merecia ganhar o dom da imortalidade.

Ela escolheu um planeta de cor azul, que possuía um satélite, mas Zoé percebeu que nesta lua havia somente espíritos sem luz.  Então rumou aleatoriamente para o principal, aterrissando num campo louro, de trigo maduro. Lá ficou algum tempo, observando o trabalho e a vida simples nos campos. Depois percorreu fábricas, escritórios, escolas, teatros, indústrias, casas suntuosas, choupanas, prisões, abrigos e tudo mais que caracterizava aquela sociedade naquele tempo histórico.  E percebeu que os humanos estavam acorrentados a muitos entes maléficos: a Inveja, o Ciúme, a Ingratidão, a Crueldade, a Impaciência, o Preconceito. E não se apercebiam disso.

- Não vejo como vou dar a imortalidade a alguém neste planeta, ninguém merece e não tenho muito tempo. Já se passaram dois pulsões – pensou.  Mas resolveu tentar a sorte acima dos oceanos, observando a vida nos grandes navios. E foi assim que chegou no exato momento de um grande naufrágio, o imponente transatlântico afundando devido a uma onda gigante.  E dentro daquele horror, a água impetuosa levando tudo e todos, viu, com surpresa e alegria, a presença dos delicados entes da solidariedade, compaixão, disponibilidade, amor e amizade, se movendo com delicadeza, ajudando, consolando, salvando vidas. Ah, isso só pode ser amor, pensou.  Isso merece, mais do que os humanos, este sentimento merece.

Assim, resolveu conceder a imortalidade ao AMOR.  Porém Zoé não sabia que havia muitos amores aqui na terra.  O Amor Materno depressa se apoderou do dom da imortalidade.  Esta é a razão de o amor materno não morrer nunca, ser a maior certeza, atravessar os tempos, vencer todas as dificuldades,  e ir  além da vida,  até a eternidade.

Quanto aos outros amores, são infinitos, enquanto duram.









CIÚMES



Rubens e Marta ainda moravam na mesma casa por uma questão econômica. O juiz havia concedido separação de corpos e caberia a ele manter a casa financeiramente e a ela administrá-la. E ambos estariam livres de procurar outro (ou outra) companheiro (a),desde que não o (a) levassem para dentro da casa onde ambos ainda residiam.  Era o mesmo que estar casado, com aval para sair quando e com quem quisesse, até mesmo dormir fora ou viajar, sem dar nenhuma satisfação. 

Melhor, impossível, pensou Rubens, que já fazia isso há algum tempo, motivo das constantes brigas dos dois. Parecia um bom arranjo, mas o tempo provou o contrário.

Porque Marta fiscalizava as entradas e saídas dele pela janela do seu quarto, através da veneziana. Também passava bom tempo no quarto de Rubens, remexendo gavetas e roupas, livros e papéis, sempre em  busca de alguma coisa que ela não deveria saber para não se sentir infeliz.

Um dia, ela não conseguiu entrar lá, porque ele o havia trancado a chave. Ficou furiosa, chamou o chaveiro, acabou entrando.  Isso deu a Rubens o direito de reportar o caso ao juiz e ela acabou sendo duramente recriminada.

Noutra noite, sempre espiando pela veneziana reparou que o carro parado à frente da casa não era o dele. Alguém o tinha trazido e pela demora nas despedidas, era alguém muito ardoroso.

- Tudo isso, ali, no meu nariz – queixava-se aos filhos, já cansados das lamentações da mãe. Não adiantava conselho e nem mesmo a ideia de ela própria arranjar um namorado, foi aceita.  O ciúme  era um cancro que estava dando metástase em todos os aspectos de sua vida.

Cada vez mais furiosa, resolveu colocar um cadeado com corrente no portão de entrada que era bem alto.

— Quero ver agora você entrar, seu safado.   

E ficou de vigia na janela para saborear a hora da chegada de Rubens e ver a cara de surpresa que ele ia fazer. Nem cogitou que não podia agir desta maneira. Tinha assinado junto com o Rubens e diante de um juiz, um compromisso que precisava ser honrado.

Ele chegou bem tarde e já sonolento. Olhou para o cadeado atarantado, até perceber que não ia conseguir entrar em casa naquela noite. Aborrecido, levantou o olhar para janela, viu seu vulto e gritou: Você me paga, espere para ver. No dia seguinte entrou com o pedido de divórcio, foi na casa pegar suas coisas e achou que tinha saído da  vida de Marta para sempre.

Foi quando Marta surtou de vez. Arranjou um detetive para espionar Rubens e parece que o alimento de sua vida era ler os relatórios que o investigador lhe levava. E essa obsessão foi corroendo sua saúde e a tornando cada vez mais fraca e amarga.

Enquanto isso o processo de divórcio ia seguindo seu curso e ela foi chamada para as primeiras acareações. Entrou noutra paranoia ao perceber que ia ficar pior do que estava. Tinham que dividir os bens. Marta ficou histérica e percebendo que não podia reverter o quadro que ela mesma criara, resolveu se vingar pedindo uma pensão altíssima.  O juiz nem considerou seu pedido e tentou lhe dar alguns conselhos, para tentar acalmá-la.

Um dia, o investigador resolveu falar com ela pessoalmente.

D. Marta, a senhora está gastando seu dinheiro atoa.  Não vejo nada fora do comum na vida do Sr. Rubens.  Trabalha muito e almoça no escritório. Às vezes sai para tomar café numa padaria em frente com alguns clientes, geralmente homens.

Está morando num apart-hotel perto do trabalho. Fiquei amigo do porteiro e ele me garantiu que nunca viu mulher entrando lá para falar com ele, nem ele chegou lá com alguma mulher.  É uma vida bem sem graça, essa de seu marido, viu?

Fique de olho também nos homens, ora – dizia ela – vá que ele resolveu sair do armário e arranjou algum jovenzinho para se divertir.

O investigador estacou como se tivesse recebido um soco. – Sou um profissional, minha senhora. Qualquer coisa nesse sentido já teria me chamado a atenção.  A senhora me desculpe, mas vou sair desse serviço. Estou trabalhando em pura perda e sinto-me mal em aceitar seu dinheiro. Nada acontece na vida de Sr. Rubens que mereça alguma atenção maior. Aqui está a conta, se quiser pode fazer um cheque para dois meses.

Marta quase fuzilou o homem com o olhar, fez logo os cheques e o mandou embora com um monte de impropérios.

Naquela tarde, ele foi tomar café na padaria em frente ao escritório de Rubens. Não precisou esperar muito. Daqui a pouco Rubens chega com uma bela mulher ao lado.

Oi Siqueira, como foi a coisa lá com aquela maluca?

Ah, Sr. Rubens, quase apanhei dela. Mas já encerrei o caso. Acho que D. Marta está cada vez mais doente e obsessiva. Dá pena, sabe?
- Que pena que nada, Sr. Siqueira A gente colhe o que planta. Obrigada por tudo, quebrou um galhão para mim. Está aqui o prometido -  e lhe entregou um envelope - Acrescentei uma coisinha a mais porque o senhor fez um trabalho excelente.

Fico muito agradecido, Dr. Rubens.  Que o senhor encontre a felicidade e esqueça logo este capítulo tão atribulado de sua vida. – respondeu o detetive alegre com o que viu dentro do envelope. Rubens pegou o braço da moça dizendo alegre:

Vamos dar uma gorjetinha também para o porteiro daquele prédio, querida.

Atravessaram a rua rindo, enquanto Sr. Siqueira meditava filosoficamente sobre sua profissão que só lidava com separações e divórcios e, portanto muitas mágoas represadas, muito ódio, onde, um dia, só existia amor e confiança.









O QUARTO HOMEM



Cheguei em casa cansada e feliz. A festa tinha sido ótima, dançamos muito, bebemos champanhe à vontade e ainda fui pedida em casamento.  Três anos juntos com Rubens e não tínhamos ainda oficializado nossa união, porque brigávamos toda hora: eu por ciúmes e ele pelo vício do carteado. Mas o amor falou mais alto, as promessas mútuas também e como o relógio biológico não para, estava mais do que hora de juntarmos nossos trapinhos e esperanças e irmos morar juntos de vez. Foi mágica a hora em que ele se resolveu. “Se queremos construir uma família é agora, Bia. Vamos encarar?” e me beijou com a velha paixão dos primeiros tempos. Saímos do Clube enlevados um com o outro e não sei como ele não bateu com o carro em algum poste, de tanto beijo que me dava, mesmo guiando.  

Entrei flutuando em casa e ao mesmo tempo louca para dormir. Danças e emoções fortes cansam muito, pensei. Fui largando tudo pelo quarto, a bolsinha, sapatos, pulseiras e brincos, mas quando passei pelo grande espelho da porta, estaquei: a imagem era de uma mulher descalça com um vestidinho preto . Faltava algo. A echarpe dourada! Ele tinha comprado para mim em Marrocos e ela,  sozinha, fazia de qualquer vestidinho preto básico, um traje de coroação.

Aí lembrei-me  que eu a tinha deixado numa cadeira, no baile.  Não podia perdê-la, ia usá-la numa cerimônia do dia seguinte, em Búzios, já estávamos com a viagem marcada e devíamos acordar bem cedo. Fiquei pensando: bom, a festa deve ter acabado, mas sempre há seguranças pelo Clube e eles recolhem tudo que o povo esquece e levam para a Portaria.  Coloquei umas sapatilhas e um casaquinho e fui para  lá. Era bem perto.

Parei  na entrada, e mesmo sem sair do carro, perguntei ao porteiro se haviam achado alguma echarpe.  Ele olhou na prateleira e veio com minha linda echarpe na mão, dizendo que  a haviam entregue há poucos minutos. Ah, que bom – disse – agora é voltar para casa e dormir.  Segui em frente para depois pegar a Marginal, de lá era um pulo para casa. Foi quando meu olhar se deteve num carro estacionado bem na esquina, embaixo de uma árvore.  Era o carro do Rubens!  Será, pensei? Olhei a placa e era dele mesmo.  O que estaria fazendo ali naquela hora? Dali mesmo,  liguei para os telefones fixo e celular dele. Nada!  Um caiu na secretária eletrônica e outro estava desligado.

O velho ciúme tomou conta de mim. Será que ele tinha alguma amante nos arredores? Pareceu-me pouco provável, só se ele fosse muito burro. Aí acendeu-se uma luzinha na minha cabeça. Ou será que ele foi para o carteado do Clube? Resolvi dar a volta completa no quarteirão, para ver se havia luz da sala de jogos.  Esta sala dava para a Marginal, onde ficam o refeitório dos empregados, a lavanderia e área de serviço. Bem escondidinha.  Fui devagar e pude perceber uma luzinha, no segundo andar.  Então, tinha carteado mesmo!

Parei o carro sem saber o que fazer, chorando em cima do volante,  atordoada com a ideia de Rubens ter sucumbido ao velho vício. Quando levantei a cabeça reparei num vulto no portão e parecia estar carregando um embrulho pesado. Alguma coisa ilegal, com certeza, para ser levada assim, no meio da noite. Muito estranho, pensei e resolvi telefonar para a polícia, contando tudo.  O Distrito é ali perto, duas quadras do clube,  em minutos eles chegaram, sem sirena e bem silenciosamente. Pararam o carro atrás do meu e bateram no meu vidro.  Fizeram sinal para eu ficar quieta e dirigiram-se para lá.

Eu estava inquieta e apreensiva.  Observei que outro homem surgiu pelo portão de serviço. Parece que o embrulho era pesado e veio ajudar o companheiro.

Gostei de ver a presteza dos policiais. Com as mãos no coldre, renderam os dois homens e os fizeram abrir o embrulho.  De onde eu estava não dava para ver o que era. Logo que foi aberto, eles se entreolharam e rapidamente algemaram os dois homens. Eu ainda os vi ao rádio. O jogo é sempre com quatro pessoas. Nenhum daqueles homens era Rubens.

Nestas alturas, um policial se acercou de mim e me pediu telefone e RG, informando que eu tinha que ir à Delegacia prestar informações.   “Vai um policial com a senhora no seu carro e ele lhe leva depois em casa” – informou ele.  

Seguimos para lá.  Enquanto eu prestava depoimento, vi pela janela o carro da polícia chegando com os dois homens algemados. Eu os conhecia de vista, estavam  no clube, naquela festa. Agradeci por Rubens não ser um deles.  Será que neste meio tempo ele já teria voltado para casa? Não quis telefonar ali na delegacia, aliás, nem queria que a polícia soubesse que meu noivo possivelmente estava com aqueles dois no carteado.  Já bastava  eu ainda estar acordada naquela hora, por ter bancado a boa cidadã.

Comecei a ficar bem apreensiva,  cheia de dúvidas e sem querer incriminar ninguém, falei o mínimo, mas o medo ia crescendo no meu peito. Não disse para o delegado que eu estava procurando meu noivo. Ainda bem que ele viu a echarpe e meu testemunho pareceu válido. Dei a entender que tinha dado a volta no clube, para pegar a marginal e ir para casa, que era ali perto.  Foi quando eu vi aquele movimento suspeito e resolvi acionar a polícia.   O delegado agradeceu e mandou alguém comigo para a volta à casa. Já eram três da manhã.

Cheguei cada vez mais aflita e antes de pegar o elevador, tentei ligar outra vez para meu noivo e nenhum telefone  tocou. Subi e entrei em casa sem saber o que pensar. Joguei a bolsinha e a echarpe na poltrona da sala, quando vi um vulto sentado no sofá. Meu coração disparou. “Psiu, sou eu, não grite”. Era ele, parecendo mais assustado do que eu.

- Meu Deus, o que houve, por que está aqui? Sentei perto dele, segurando suas mãos, que estavam geladas e o abracei. Ele se abraçou comigo chorando, falando depressa e baixo, não consegui entender quase nada.   

Tinha me levado em casa e resolveu voltar para pegar o carteado que ia começar naquela hora. Vício é uma coisa danada mesmo... Estavam os quatro jogando quando começou uma discussão entre os dois mais velhos, e tudo por causa de mulher. Que um tinha paquerado a mulher do outro, e outras tantas baixarias que ele me poupou de contar.  Numa hora, a coisa saiu do controle, um deles pegou o taco de bilhar e acertou na cabeça do outro. Foi uma tacada certeira, ele caiu e lá ficou. Um deles que era médico, constatou a morte. Eles eram figuras conhecidas na sociedade, com belas carreiras consolidadas, não podiam ser expostos num julgamento. Afinal, ninguém teve intenção de matar ninguém, mas o morto estava ali mesmo, na frente deles, pedindo uma solução rápida. Então combinaram que, para todos os efeitos, eles nunca estiveram ali, da festa tinham retornado às suas casas.  Iam colocar o morto num saco de lixo,  e desovar perto da marginal. Pronto! Rubens ia ficar para apagar vestígios e desligar a luz. Mais um crime sem solução! 

Uma história terrível, da qual, infelizmente,  ele não iria se salvar. Evidente que os dois que foram presos iam denunciá-lo, no mínimo por cumplicidade. Rubens era advogado, sabia que a história ia ter muitas outras implicações, nenhuma boa. Nem podia dizer que estava na minha casa na hora do incidente, seria minha palavra contra a deles e, afinal, o carteado é com quatro jogadores. Fazendo as contas, Rubens era o quarto homem. Que estava na hora errada num lugar errado, violando promessas e destruindo sua vida pelo vício.  Creio que aprendeu a lição.

Está acabando de cumprir sua pena e logo vamos casar.



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