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O segredo inexistente - Ises de Almeida Abrahamsohn





O segredo inexistente
(um conto para recordar ou conhecer como era a época da ditadura)

Ises de Almeida Abrahamsohn


Rodolfo não aguentava mais. Ao sentir os choques antes de desmaiar via lâmpadas do teto balançando e piscando. Acordou com a dor da pancada nos rins. Ouviu de novo ao longe a voz que já conhecia repetindo o mantra insistente.

A pergunta feita e refeita entre as pancadas e os choques era para ele dizer os nomes dos companheiros e onde se reuniam. Os algozes queriam saber quais colegas do CRUSP estavam na militância.

Não tinha adiantado Rodolfo dizer que não estava metido em política. Os PMs jogaram o aluno do terceiro ano de física da USP no camburão.  O destino era o DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social) lá na praça Júlio Prestes perto da rodoviária. Rodolfo inicialmente foi interrogado por um delegado. Repetiu que não era da militância e que não estava envolvido na ação política. Respondeu que conhecia o Lélio e o Marcos apenas das aulas práticas na faculdade. De fato, faziam os experimentos juntos em grupo, mas era só, apenas isso. Não sabia nem onde moravam, nem o que faziam.

Pediu para avisarem seu pai. Tinha confiança que era um engano e logo iria ser libertado.  Foi o que disse ao delegado.

Não foi. Foi levado para o porão e trancado numa cela escura sozinho depois que lhe tiraram os sapatos e o cinto. Estava muito assustado. Alguma luz filtrava das lâmpadas fracas do corredor. Chegando-se à grade podia enxergar algumas celas semelhantes ao lado e em frente. Depois era a escuridão, mas Rodolfo podia ouvir os gritos distantes e alguns gemidos. Da cela ao lado ouviu uma voz rouca de jovem. Perguntava-lhe quando e por que tinha sido preso. O estudante respondeu que tinha sido lá pelas seis da tarde e que os caras pensavam que ele era metido em política.

Mas é um engano, repetiu. Meu pai já foi avisado e virá me tirar daqui.

Ouviu a risada irônica do vizinho.

  Você acredita que vão avisar seu pai? Esqueça! E se te procurarem, eles vão negar que está aqui. E vão te bater até você falar ou até eles desistirem.

Rodolfo sentiu o medo piorar bem na boca do estômago. Fugiu para o fundo da cela. Sentado no chão e escorado na parede imunda e úmida repetia para si mesmo que não tinha nada a contar. Logo iriam tirá-lo dali.

Lá pelas onze vieram buscá-lo. Perguntou se tinham avisado o pai. O policial deu risada e debochou:

 Tu acha que a gente vai ficar ligando para a família dos comunas que despejam aqui? Você não sai antes de cantar tudo que sabe...

Enfiaram-lhe um saco na cabeça e o conduziram até um quarto fortemente iluminado por três lâmpadas nuas penduradas por fios no teto. Ao enxergar de novo viu dois sujeitos de jeans e camiseta fumando a um canto. No outro canto dois baldes que pareciam conter água. E, ao centro, a armação de que Rodolfo tinha ouvido falar, mas nunca visto. A barra de madeira roliça presa nos dois apoios de ferro. Tentou correr para a porta, mas os dois, chamados de Cavalo e Miúdo pelo policial o agarraram. O policial rindo saiu dizendo que o Cavalo e o tal Miúdo iriam fazer ele falar o que sabia. Enquanto tirava a camisa levou o primeiro soco no estômago.

É  para testar, riu Cavalo. Rodolfo vomitou. Jogaram-lhe água. O outro prendeu-lhe os pulsos com um nó de corda e arrancou as calças e cueca. Cavalo encurralou-o contra a parede. O mesmo Miúdo acionou um gravador apoiado num banquinho de plástico encardido.

E começou a pancadaria e sempre as mesmas perguntas. Quais eram os outros caras da militância ? Aonde se reuniam?

Rodolfo apanhou até desmaiar. Quando acordou estava pendurado. Sentiu o forte cheiro das próprias fezes e estava com o corpo molhado. E frio! Entendeu que lhe tinham jogado água.

Na terceira rodada de choques Rodolfo desmaiou. Acordou ao ser arrastado nu e torturado de volta para a cela. Ainda tonto, ouviu o tal Miúdo que era o chefe da tortura falar que, ou ele não sabia mesmo nada ou teria que ser encaminhado ao Dr. Tibiriçá.

Lá ele vai cantar mesmo, respondeu Cavalo rindo.

Rodolfo acordou no chão na manhã seguinte sentindo a bota do policial cutucando-lhe as costelas. Meio surdo dos socos recebidos ouviu que era  para se vestir. O sujeito jogou-lhe as roupas.

─ Alguém veio te buscar seu fdp. Tu deve conhecer gente importante pra sair tão logo daqui!

Na saída, Rodolfo encontrou o pai que o levou para casa. Soube que o pai tinha se comunicado com Dom Evaristo Arns e com o Rabino Sobel para descobrir seu paradeiro. Um mês depois, ainda se recuperando das costelas quebradas, o jovem viajou para os Estados Unidos onde se formou e mora até hoje. Nunca esqueceu os seus dois salvadores.

E o segredo ? Nunca existiu! Rodolfo não tinha nenhuma atividade política.

P: S: Dr. Tibiriçá era o apelido do Coronel Brilhante Ustra.

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