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O livro sonhador - Ises A. Abrahamsohn



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O livro sonhador    
Ises A. Abrahamsohn


Senti na hora a diferença. Sabem, sou muito sensível. Conheço as mãos cálidas de macio veludo da Irene. Afinal, há vinte anos ela me retira cuidadosamente da estante e ao fim do dia me devolve exatamente ao mesmo lugar para meu descanso noturno. Hoje não foram as mãos de Irene que me levaram de volta à estante. Palma  áspera e fria,  os dedos grossos me apertaram para dentro da estante abrindo à força um espaço que claramente era estreito demais para mim.  Deve ser um bibliotecário substituto.  Nunca o vi antes . Fiquei muito angustiado. Será que Irene tirou férias? Ou está doente?

Suspirei, apertado entre dois colegas num lugar que não o meu. Aqui não me  encontrarão amanhã, mas certamente darão por minha falta. Minha esperança é que sou encadernado em capa dura azul com lombada de  couro gravada em dourado. Quer dizer, agora não resta muito do dourado mas dá para ler. Vão logo perceber que estou em lugar errado nesta prateleira de colegas de capa brochura circulantes.  Sem ser pedante devo dizer que pertenço a uma geração especial, de uma época em que eram frequentes as encadernações.

Sou muito requisitado e por isso tenho um status especial na biblioteca. Só posso ser lido aqui porque sou exemplar único.  Eu poderia me gabar disso aos meus colegas circulantes, mas  também sei que não sou um livro raro. Nós todos moramos nessa biblioteca de bairro cujo acervo é limitado. Somos bastante requisitados. A biblioteca fica em frente a uma escola pública e à tarde os jovens  ocupam quase todas as mesas.  Gosto de ser lido pelos jovens. Dizem que vamos desparecer algum dia ultrapassados pelos  ebooks. Pode ser, mas para os jovens daqui ainda temos muito a oferecer. Informação bem organizada e imediata. Não precisa estar conectado, nem ter tablet ou computador para ler os nossos textos ou ver nossas ilustrações. A rigor, nem luz elétrica precisa. Basta a luz do dia ou até de velas.

Percebi que meus dois vizinhos de agora são romances policiais. Escuto deslumbrado os relatos desses dois circulantes. Já estiveram nos mais diversos lugares. Lidos no ônibus, na praia, numa casa, num quarto de hotel.... Imaginem só... E os perigos que enfrentaram. Já caíram numa sarjeta e foram atacados por um cachorro. Que existência morna e monótona a minha, igual a meus vizinhos na estante dos encadernados. Mas não posso mudar meu destino. Vou ficando por aqui até que alguém me ache ouvindo as aventuras dos meus vizinhos circulantes. Boa ideia para um escritor. “ Aventuras de um livro circulante”. 

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