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O BLOCO DA LAMA - OSWALDO ROMANO




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Constrangimento
Coisas acontecem imprevistas que nos deixam perplexos. O perplexo é uma ficha que cai inesperadamente em nossa vida.
Eu estava redigindo a reestruturação do conto “Bloco da Lama” que há muito escrevi. É o carnaval de Paraty. Levanto os olhos, vejo na tela da TV homens atolados no barro, procurando cadáveres, na tragédia de Brumadinho.  Surpresa, a cabeça rodou, procurei entender, demorou, mas refiz-me vendo aquela imensidão de lama.
Neste conto, uma pequena porção de humanos, com largos sorrisos, comemoram a festa carnavalesca, desprovida de tragédia e heresia pagã.
“É o contraste elevado a quinta dimensão”.
 Uma população chora seus mortos
     Este é o conto “O Bloco da Lama”. Por favor, priva-se do cenário anterior. Transforme-o como fosse tomado de um sonho, e venha para a alegria do carnaval.


O BLOCO DA LAMA
Oswaldo Romano

Era início do Carnaval na cidade. Não podíamos perdê-lo. Um cartaz na porta de uma loja mística de Paraty anunciava:

“Não perca, participe neste Carnaval da festa do Bloco da Lama...”
e também “Não Perca, vibre neste carnaval com o bloco dos bonecos gigantes”

Estava na calçada onde se viam, sentadas no chão e encostadas à parede, as índias “artesãs” e até, com filhos sendo amamentados. Vendem seus produtos manufaturados com bambu, palha, taboa e coco. Chama a atenção a “cana da chuva”, o berimbau, muitos cestos e arco e flecha. As tribos guaranis prevalecem na região.

Especulei o cartaz do tal “Bloco da Lama”. Aconteceria no dia seguinte, sábado. Tínhamos notícia do seu sucesso. Falavam ser um dos mais típicos do carnaval, o primeiro a desfilar, disputava qual seria o melhor, comparado aos bonecos gigantes.

Nasceu quando dois amigos caçavam caranguejos no mangue do Jabaquara, aproveitando justamente o feriado.

De principio a caça estava divertida, mas o inferno dos mutucas e muriçocas os fustigava. A lama os protegia das picadas até a cintura.

Um deles teve uma luz. Então por que não afundar tudo por um momento e nos livrar dos mutucas de vez?

— Boa ideia!  

Quando emergiram, um veio com um graveto na cabeça e parecia um bode, um diabo... Fez o outro morrer de rir. No dia seguinte, o sábado de Carnaval, corria 1986, convenceram-se de participar do folguedo, assim mascarados. Com outros amigos repetiram o mergulhar na lama e criaram o bloco. Eram em número de uns dez, só́ sungas saqueiros, e elas de meio biquínis, pareciam pelados cobertos com calda de chocolate.

Combinaram para impressionar que o canto criado viria de afastados lugares, gritos esparsos, reunindo-se no séquito. Quando surgiram cantando com fortes vozes, foi o maior sucesso.

Tomado pelo espirito desprovido dos compromissos, eu assistia ao desfile do dia, envolvido por pensamentos esparsos, viajando diante de tanta euforia.

Num estalo, recompondo-me, vejo no meio dos foliões, num relance, o Bino. Bino! Exclamei! A fantasia e a máscara colada no rosto, disfarçavam bem, mas era ele mesmo. O reconheci pelo nariz inconfundível, aquilino.

         — Bino! Bino... sei que é você, você aqui?

         — Disfarça Roma, amanhã apanho você e venha curtir o mais excêntrico carnaval do Brasil.

— Onde encontro você?

         — Pousada Condessa, ok espero, é conhecida como “Viver nas Nuvens”.
Dia seguinte lá estava eu com o Bino. Enfrentei o que para mim era um desafio. O mangue de fato, um criadouro de enormes caranguejos, cercado por barragens naturais. Muitos, muitos, lindos, vermelhos, barrigas amarelas, olhos saltados.

 Um que vi se engraçar com o Bino, ele o pegou pela cintura e mirava jogá-lo sobre um amigo. Equivocou-se. Cobertos pela lama, não atingiu o amigo e sim era a mulher do amigo. Seu grito invadiu o mangue. Todos que mal podiam abrir os olhos, posicionaram-se como primatas, assustados.

O grito, tão característico, logo foi encaixado na composição dos seus cantos.

À noite, nas ruas de pedras do Centro Histórico de Paraty, uma banda puxava os blocos.

Sem dúvida valeu o convite. Nunca imaginei participar de um bloco tão característico, admirado e respeitado. Respeitado sim, porque alguns recebem vaias e não as palmas de admiração, que me tocaram, brotando lágrimas pelo barro. As moças ostentando lindos e desnudos seios, tinham admiração até das mulheres.

         Uma das passagens que tive, ficou marcada: Na apresentação, no desfile que era contínuo, pulando ou encenando, como faz um índio, não percebi atrás de mim, uma garotinha nissei, olhos bem puxados, fofa blusinha azul, nos admirando. Quando num gesto brusco me virei na hora do canto, hora do grito, o grito ecoando entra UGA, UGA, RÁ, RÁ, RÁ, pra quê! A japa desandou gritando, corria sem direção. Por momentos aquele desespero ficou martelando meus ouvidos. Mas... Final feliz, a mãe a apanhou.

Anos depois o bloco alcançou centenas de integrantes. Enfeitam-se com os mais diferentes adereços, como a planta Barba de Velho, cipós, ossos, enfim, mascaram-se. São chamados de pré-históricos, provindos do fundo da terra. Seu slogan é retumbante, arrepia. Levantam os braços, dão o grito e soltam:

UGA, UGA, RÁ, RÁ, RÁ quem vem comigo, UGA, UGA, RÁ, RÁ, RÁ, ninguém manda em mim! Sou da caverna, da caverna sem fim! Sou da caverna, da caverna sem fim...

O povo espera um novo grito. Em uníssono lá vem ele e... UGA, UGA....
Senti simbolizada, a libertação dos escravos.  Por que não, preparativos pra a luta de uma tribo ou simplesmente era carnaval.

         Hoje posso dizer mais: - Sobrenatural místico de um milagre imaginado a acontecer com os soterrados de Brumadinho. Amém, meu desejo é que esse milagre ocorra. Venham sorrindo! Venham munidos de asas brancas sobrevoar nosso carnaval.


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