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Conto fantástico - Ises A. Abrahamsohn

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Conto fantástico
Ises A. Abrahamsohn

Era o ano de 3078. Celso pertencia à casta dos artistas.  Considerava-se privilegiado.  Habitava um dos apartamentos funcionais fornecidos pelas autoridades cibernéticas. Havia uma sala de trabalho iluminada onde ficava o cavalete de pintura, quarto e banheiro. O climatizador do prédio mantinha a temperatura em 23 graus enquanto nas ruas sombreadas com toldos refletores a média ficava em 60 graus.  Sensores e câmaras instalados nos diversos aposentos controlavam a temperatura, o volume de água disponível e as atividades dos moradores.

Ainda criança, Celso mostrara habilidades extraordinárias para criação de imagens e desenhos. Aos três anos, no seu primeiro tablet usava já programas avançados para desenhar e esculpir figuras, animais e prédios, e o que mais se imaginasse. Foi encaminhado para o treinamento especial. Com o tempo foi aceito na casta dos artistas. Seus pais que eram da casta dos cuidadores I ficaram orgulhosos. Poucos eram os indivíduos que alcançavam a casta de artistas. 

A maioria dos humanos sem habilidades especiais era encaminhada para treinamento como menials.  As condições de vida para estes podiam ser muito duras. Variavam com a capacidade intelectual. Os mais limitados eram enviados para planetas afastados para trabalhar na extração de metais raros e radioativos. Outros atuavam nas cidades em trabalhos supervisionados pelos Cybers ou robôs.  Moravam em alojamentos com pouco conforto e sua alimentação e reprodução eram controladas para gerar apenas o número suficiente de novos menials. Celso já tinha visto esses seres, mas nunca tinha falado com algum, nem sabia onde habitavam.  Não era desejável que seres das castas superiores interagissem com os das inferiores. As câmaras de vigilância nas ruas e centros de diversão registravam tudo continuamente.  Qualquer comportamento anômalo podia resultar em advertências ou, pior, em alguma punição. Em geral a pena era o banimento dos centros de diversão onde pílulas coloridas promoviam sensações de paladar agradáveis ou exóticas à escolha do freguês ou ainda sensações musicais ou visuais durante algumas horas.

O trabalho de Celso 4268-Y era produzir imagens agradáveis coloridas para projeção nos centros de diversão e nas paredes externas de edifícios, todos monotonamente idênticos, sem janelas, revestidos de painéis refletores brancos. As imagens eram da natureza existente no segundo milênio antes do grande evento que aniquilara as florestas e a maior parte dos animais.

As altas temperaturas impediam que as antigas plantas e seres vivos em geral sobrevivessem.  Foram desenvolvidas outras variantes alimentares que cresciam a 50 graus em cultivos que os antigos chamavam de hidropônicos. Enormes fermentadores produziam proteína animal a partir de células tronco dos animais domésticos comuns no milênio anterior.

Celso 4268-Y podia circular pelas ruas no seu monomobil movido a energia solar para verificar o efeito de suas criações.  Numa dessas incursões por uma região desconhecida onde novos prédios e ruas estavam sendo construídos, o rapaz viu ao longe o que pareciam ser ruínas de alguma edificação do segundo milênio. Alguns painéis eletrônicos proibiam avançar além de onde estava. Ficou curioso. Olhou em volta e não viu nenhuma câmara de vigilância. Ainda não haviam instalado. Avançou com o monomobil até onde pôde.  Daí pra frente, ao sair do veículo refrigerado, teria que usar a capa defletora de raios solares. Mesmo protegido pela capa o calor era intenso. Caminhou sobre a terra esturricada até as ruínas.  Nada de maior interesse lá, mas viu um buraco que dava para o que era o porão do edifício. Uma escada de degraus toscos de metal fora encostada. Celso 4268-Y arriscou.  Chegado ao solo, iluminou o vasto recinto com potente lanterna. Ficou maravilhado. Por toda parte, empilhados no chão ou ainda fixados nas paredes, havia quadros pintados com as mais diversas cenas. 

 Retratos de pessoas, paisagens, animais, flores, cenas da vida de cidades antigas.

Era aquilo que em seu treinamento tinham chamado de museu, mas ele nunca tinha visto. Nem lhe tinham mostrado as obras de arte que diziam ter existido naqueles museus. Como lhe explicaram, elas tinham sido feitas com técnicas primitivas usando tintas e pincéis e placas de madeira e tecido que nunca conseguiriam chegar aos pés da arte cibernética com seus milhões de pixels e cores infinitas!

Celso 4268-Y ficou parado frente a algumas telas encostadas na parede. Eram de um mesmo sujeito, o mesmo estilo, as marcas da tinta aplicada em largas pinceladas. O artista estava deslumbrado. Os rostos, alguns com infinita tristeza e outros alegres em telas desbotadas, mas ainda coloridas. Nunca tinha criado rostos ou algo expressivo. Era proibido. A arte devia servir apenas ao bem-estar dos seres. Celso abaixou-se viu que em cada tela havia um conjunto de rabiscos em preto. Era a escrita da época, manual, agora abandonada. Devia ser o nome do pintor. As letras maiores, de formato padrão conseguiu ler, PORTINARI.

Numa das telas havia um prédio antigo e um enorme veículo preto que reconheceu como sendo um trem, equipamento que servia de transporte no segundo milênio. A tela mostrava uma única pessoa no ato de embarcar no veículo.  A destreza do pintor deu ao ato todo o movimento do quadro. Um pé já dentro do trem, o outro ainda apoiado na plataforma.

Celso, mesmerizado, olhava fixamente a cena. Até que percebeu que o único passageiro era o próprio pintor. Celso deu um passo adiante e se viu na plataforma. Entrou no trem da Mogiana, a caminho de Brodowski.


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