GREY’S ANATOMY - A SÉRIE
Oswaldo U. Lopes
Demorou,
mas aconteceu. Foi publicado na revista científica de acesso aberto “Trauma
Surgery and Acute Care Open (TSACO)”[1]
, um estudo de pesquisadores do Hospital Saint Joseph, da cidade de Phoenix no
Arizona, no sentido de avaliar o quão próximo da realidade o seriado, cujo
título está acima, se aproxima ao abordar tipos diferentes de traumas e de
urgências. E mais, como isso poderia afetar a maneira com que pacientes de
verdade encaram suas doenças e o atendimento recebido.
A
mortalidade foi maior na série de TV do que na vida real, 22% na TV versus 7%
na real. Na série 71% dos doentes foram diretos da emergência para a sala
de operação. Esse número é três vezes maior do que o que acontece de
fato (25%). A recuperação dos doentes na série foi muito mais rápida, mais do
que o dobro do que de fato acontece, menos de uma semana na série em 50% dos
doentes contra apenas 20% no aqui, agora. Essa falsa ideia de recuperação
rápida e feliz pode gerar expectações nos doentes e familiares que não
encontram amparo na realidade.
Eu
diria que não encontro uma enorme diferença, mesmo após tanto tempo, na
atividade como era praticada nos anos 60 e agora. Não era raro que durante um
plantão de PS, passássemos a noite inteira sem ir à sala de operações.
É
difícil julgar o que esta série causa no pensamento das pessoas no Brasil. Nos
USA ela chegou ao incrível número de 38 milhões de pessoas assistindo um dos
capítulos, mas lá ela fazia parte da grade da chamada TV aberta, no Brasil só é
visível na TV a cabo que não está propriamente ao alcance de muita gente.
Embora faltem dados mais concretos, tenho me surpreendido com o número e classes
sociais que têm acesso a TV dita fechada.
Embora
haja uma convergência nítida entre o modo de tratar os doentes e seus
familiares aqui e lá, e isto eu vejo sem sombra de dúvida, na maneira de lidar
com diagnósticos e revelações feitas pelos médicos, temos diferenças culturais
e religiosas que nos afastam do modo, por vezes cru, com que certas colocações
são feitas lá. Este fator não é realçado na pesquisa feita pelo pessoal de
Phoenix, levando a crer que na vida real, nos USA o uso da chamada verdade nua e
crua é um fato comum.
Agora
a grande surpresa para mim, veio num comentário feito através da internet e que
estava ao fim da notícia:
“- Médicos discutindo a relação durante
cirurgias em cima do peito aberto do paciente? Espero que não aconteça na vida real.
”
Sinto
se for desapontar os amáveis leitores, mas acontece sim e sempre aconteceu! Se
a pessoa que fez o comentário se refere a relação entre pessoas, homens e
mulheres e suas atividades sexuais, não posso testemunhar. Quando fiz
residência numa turma de 80 ingressantes na FMUSP (1956) havia apenas 8
mulheres e nenhuma fez residência cirúrgica.
Certas
relações que ocorrem na série seriam impossíveis naquele tempo, por
incompatibilidade numérica de gênero. Quando entrávamos em cirurgia só havia
praticamente homens ao redor do paciente. Relacionamentos gays nem se cogitava.
Não tinha como ocorrer namoro ou cantada durante a cirurgia.
Agora
o que é preciso tornar claro é que num ato cirúrgico há momentos de rotina e
momentos de tensão. Durante a parte de rotina conversa-se sobre muitas coisas:
o futebol de ontem, a comida da mama, o carro que quebrou etc.
Eu
pessoalmente preferiria ser operado por alguém que seguro do que faz conversa
sobre o tempo, o jogo de futebol, do que por alguém que rezasse o tempo todo
pedindo ajuda de Deus e de todos os santos. Você já imaginou guiar um automóvel
numa viagem de 300 ou 400 quilômetros, e permanecer agarrado na direção sem
sequer olhar de lado. Estaria exausto depois de 20 minutos.
Há
outro aspecto que merece lembrança. A aparente frieza do médico. Eu disse
aparente e se for preciso vou repetir: aparente frieza. Quem já viu não esquece
a entrada no PS de um paciente gravemente ferido acompanhado de familiares e
amigos. Há uma comoção muito grande e uma falta de iniciativa enorme. É preciso
alguém que, friamente e meticulosamente, examine o doente e tome as
providências necessárias, é o médico.
Isso
só é possível porque ele foi treinado para isso e deve, mesmo nos casos mais
tristes e aflitivos, manter o sangue frio e agir de modo rápido e eficiente. É
provável, eu diria que é certo, que por dentro ele esteja sofrendo muito, mas
enterra isso o mais fundo que pode e segue o protocolo.
A
profissão médica é das que tem maior índice de suicídios, não pergunte
por quê .
[1] Trauma
Surgery & Acute Care Open (TSACO), é uma revista de acesso aberto da
Association for The Surgery of Trauma.
Gosto muito dos seus textos. Sempre aprendo muito com eles.
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