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Fantasia ou Realidade? - José Vicente J. de Camargo



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Fantasia ou Realidade?
José Vicente J. de Camargo
                                                                 
                                   

Da área de serviço do seu apê, Alzira observa que a vizinha fala com seu gato que obedece aos seus gestos. Volta para a cozinha e quase tropeça no Lampião que estendido no chão, impede a passagem. Diz:

- “Já pedi pra você arrumar outro lugar pra dormir, senão vai levar uma vassourada nas orelhas. Seja obediente como o gato da vizinha.
 Coitada! Fala com ele como se entendesse”.
E ambos riem...

Os risos fazem o Louro, do seu poleiro, cantarolar:

- Lampião é cão castrado, não morde nem assusta!

O barulho faz com que o cuco do relógio da sala ao lado, abra a portinhola fora do horário e esbraveja:

- Vamos parar com essa bagunça aí na cozinha. Preciso de silêncio pra dormir e recuperar as energias para o próximo canto.

Na sequência, o pinguim de cima da geladeira começa a bater as patas, abanar a cabeça, andar em círculo grasnando:

- Alzira, cadê meu peixe! Risada não enche barriga...

Sobrepondo-se, ouve-se o cacarejar da galinha da cesta de ovos:

- Seu pinguim tem razão! Risos também não enchem minha cesta de ovos que está vazia. Que saudades do meu terreiro com fartura de milho e minhocas...

- E do pescoço torcido quando te pegam para o almoço, emenda o Louro, que vê na galinha uma rival para os afagos de Alzira.

Em seguida, da sala ao lado, ouve-se o choramingar da bailarina que guarnece a caixinha de música:

- Estou cansada de ficar na ponta dos pés! Fico deprimida quando não danço, mas Alzira se esquece de me dar corda.

- Vocês todos são uns ingratos! Intervém Alzira. Só por que aceitei o convite da minha amiga Diná, do curso “Forças Ocultas”, para almoçar, se põem todos a resmungar. Se esquecem que fui eu quem lhes deu vida, mantendo-os unidos como uma família.

Entretanto pensa consigo: “Odin exagerou nos raios! Devo ter evocado seu poder com muita fé. Na próxima aula do curso, tenho de aprender melhor como controlá-lo. Espírito que é, não tem corpo, só energia concentrada do tipo negativa. Eu, que tenho energia positiva, o atraio. O problema é que não consigo conter suas ações. Sai pela casa fazendo estripulias, lançando raios por todo lado, atiçando minha família a se rebelar contra mim.

Neste momento, um vento forte invade o ambiente batendo portas e janelas ao mesmo tempo que Alzira sente no corpo um aquecimento com tremores como se Odin estivesse baixando nela:

“Mas se eu não o invoquei, como que pode estar por aqui? Só uma mente de ser vivo pode fazê-lo. A do louro é muito pequena, tem baixa energia, mas a do Lampião? E olhando para ele, este lhe mostra os  dentes afiados dizendo:

- Cuidado Alzira, cuide bem da família, senão quem vai levar umas vassouradas nas orelhas é você!

E o Louro logo emenda:

- Lampião é cão castrado, mas é nosso novo líder!
- Cocorocó! Estou de acordo, acrescenta a galinha,
- Ok, mas não esqueça do meu peixe! Grasna o pinguim,
- Se promete manter silêncio, tem meu apoio. Balbucia o cuco sonolento.

Com um suave bater de palmas, a bailarina manifesta sua concordância.

Alzira, surpresa e chateada pela reação do grupo, exclama:

- Quem ri por último, ri melhor! Se vocês não me querem mais como mãe, eu já sei pra onde ir e mira a folhinha pendurada na parede que estampa a foto de uma praia paradisíaca de areia alva, rodeada por coqueiros verdes, mar esmeralda, céu azul, tudo emoldurado por um sol radiante. Cerra os olhos, respira fundo, decidida do que quer. Concentra-se na “evocação” de Odin, pois quer captar o máximo de energia para poder mudar de vida, ir a um lugar onde ninguém a conheça, começar do zero, um desejo que vem acalentando há tempos. Sente então um raio lhe varrendo o corpo e berra: 

- Pessoal! Odin tá presente! Eu os desculpo pela rebeldia e os libero para pedirem o que quiserem. Dêem vazão aos seus desejos reprimidos. Agora é cada um pra si e sorte pra todos. Dizendo isso, se desfaz num redemoinho de fumaça que penetra na foto de onde, em seguida, se a vê na praia de bata colorida dando tchau aos que ficaram.

A imagem de felicidade causa um impacto na família:

- Mãe é mãe! Grita o Louro. Eu também vou, chega desse Lampião, castrado e medroso. Cobre a cabeça com as asas, vira um bolo de pó que penetra no calendário e aparece do outro lado, trepado num coqueiro, triturando coquinhos.
Sem mais delongas seguem a galinha, que vira gaivota, o pinguim, que se transforma em golfinho, e a bailarina que vira dançarina de hula-hula.

Cuco e Lampião, como últimos, se entreolham e Lampião diz:

- Você que está quase sempre dormindo, não deve ter acompanhado o que se passou por aqui. O desabafo da mãe Alzira e sua fuga para a praia da folhinha.

- Você que pensa, retruca o cuco. Fico no descanso, mas minha mente fica atenta ao bater dos ponteiros. Acompanhei tudo.

- Então só sobramos nós dois, responde Lampião.

- Dois não, só um, pois sempre sonhei em ser gavião, viver nas alturas e ser temido por outras aves e animais. Me vou...

Lampião esfrega o focinho chateado pelo seu curto período de liderança. Mas eriça as orelhas e lhe brilham os olhos quando se dá conta que também pode se transformar em algo que sempre quis ser, mas impossível de conseguir numa sociedade de tantas fobias e preconceitos. Abana o rabo e mergulha na foto para depois emergir, do lado de lá, retorcido entre as almofadas de um sofá de veludo, como “gato maravilha” …

Moral da história:

A fantasia acompanha a vida do homem desde a infância, povoando sua imaginação de mundos diferentes, de sonhos e de desejos do que gostaria de fazer, de ser ou de ter. A fantasia é anterior às letras e as assombrações têm lugar em todas as literaturas. Além de ser inerente ao homem, a fantasia satisfaz seu anseio inesgotável de  ouvir histórias.

Neste sentido, Alzira e sua família não é uma fantasia, mas uma realidade...

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