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O Outro - José Vicente J. de Camargo


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O Outro
José Vicente J. de Camargo

Levantei de mal humor pela noite mal dormida. Frações dos vários sonhos que tivera me rodeavam a cabeça. Não consegui, como sempre, interpretá-los. Mas senti que eram mais para o mal do que para o bem. Também pudera, com tanto azar pulando pro meu lado ultimamente, não dá pra sonhar com praia, sol e mulher maravilha. Aliás, minha praia hoje está longe daquela de paz e amor. São só multas e prestações vencidas, banco no negativo, cartão bloqueado, carro na oficina, nome na boca do Serasa e credores na porta. Tudo começou com a perda do emprego. A tal da crise, como se eu tivesse culpa das sacanagens desses políticos safados. O pior é que eles continuam numa boa e eu me azarando.

Vontade de esquecer tudo e fugir, desaparecer, ir para um lugar onde ninguém me conheça. Ou então tomar o lugar de outro, uma nova identidade, livre de preocupações, começar do zero, não cometer os mesmos erros, as mesmas tentações... Mas e elas, como ficariam? Iriam juntas? Abandonariam seus afazeres?

A dorzinha da gilete raspando o rosto ensaboado desperta-o do devaneio.

Mais rápido, senão ainda perco a entrevista, penso comigo. Só me falta essa pra completar a desgraça. Pela ligação que recebi da empresa (a voz dela tinha um toque sensual, talvez uma quarentona enxuta), pareço ter o perfil desejado. Não me atrevi a perguntar o salário. Primeiro vou sentir o interesse pelo meu serviço, depois discutimos a grana. Mas, na situação que estou, aceito o que vier...

No metrô miro disfarçadamente os caras ao redor, procurando um que me agrade para me reencarnar. Uns têm semblante cansado – já de manhã? – cabeça pendendo no peito, não servem! Devem ter mais problemas que eu! Outros têm detalhes físicos que não me sentiria bem transportando: ou é barrigudo, ou sem pescoço, ou cabeça chata, ou narigudo, orelhudo; aquele lá tem pernas finas tal vara de bambu, o do lado tem bunda grande, o terceiro tem dentes amarelados. Será que não salva nenhum ou sou eu que sou muito exigente?

Nova estação. Sobe gente mais do meu tipo. Aqueles dois sentados de lado, parecem executivos. Ternos bem cortados, sapatos de couro, gravatas de seda. Mas discutem nervosos, semblantes tensos, devem ter problemas na certa. Já que vou mudar de corpo, que seja pra algo mais fino, legitimo “laissez-faire, creme de la creme”. Mas pelo visto, não vai ser no metrô que encontrarei meu futuro ser ...

E depois, como agiriam elas? Gostariam desse novo eu? Ou essa tal de reencarnação não autoriza acompanhantes? Se não dá pra levar, nem pensar. Pelo menos esse desgastado recebe em casa carinho em dobro para recuperar a estima, afastar a má sorte. Não me deixam faltar nada, nem que seja só arroz, feijão e ovo. Mas tudo preparado com carinho. Vou lá saber se no meu “Outro” não me cai uma cara metade  azeda ou estragada? E a filhota? Só sorrisos e carinhos...Vai saber se no lado de lá, não me vem uma cambada de preguiçosos, que só pensam em comer e dormir?

Não dá! É muito arriscado. Melhor ficar cada macaco no seu galho. Eu no meu, e o “Outro” no dele. Seguir o ditado: hoje é hoje, amanhã é outro dia! Quem sabe já não recebo nessa entrevista, uma oferta de deixar as meninas novamente de cartão de crédito na mão?

Por falar nisso, deixa eu começar a esfregar meu talismã, que na próxima estação desço. Essa figa de angico preto espanta mal olhado. Presente da própria mãezinha do Gantois, abençoada pelo padinho Cícero através das mãos de Frei Damião.


“Benção Padinho, passa Satanás...”

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