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A MALA ERRADA - Carlos Cedano


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A MALA ERRADA
Carlos Cedano

Aquele dia o voo que vinha de Nova Iorque estava superlotado. Como era o fim das férias os viajantes tinham caprichado nas compras e por isso retirar as malas foi um enorme sufoco. Armando identificou aquelas que acreditou serem as suas, eram três iguais, colocou-as no carrinho e rumou para a saída, passando pelo controle de bagagens entregou os tíquetes e saiu sem problemas.

Na área de desembarque já o esperava Lucia sua namorida, com a alegria impregnada no rosto, trocaram rápidos abraços e beijos e sem mais delongas foram para casa, estavam separados há quase um mês! Amaram-se, e descansaram. Duas horas depois acordaram, tomaram banho e agora, disse Armando, tá na hora de seus presentes, meu amor.

Ele abriu a primeira usando o segredo numérico, ela só continha roupa e coisas masculinas, abriu a segunda e estava em parte com documentos e relatórios de trabalho e o restante com roupas usadas do próprio Armando. Lucia estava bastante ansiosa, queria ver já os perfumes, as roupas de grife e, o mais importante, o anel de noivado que Armando tinha mandado fazer numa famosa joalheria de Nova Iorque! 

A terceira mala lhe parecia estranha. Tão estranha que o código numérico não funcionava. Armando olhou-a mais atentamente, girou-a para direita e para esquerda  em busca da etiqueta de identificação, ele jamais deixara de identificar sua bagagem, mas esta não continha nenhuma etiqueta.  Desconfiado, de estar com uma mala que não lhe pertencia, ainda assim, achava que se parecia com a sua. Talvez a etiqueta tenha se perdido, isso acontece com frequência.

Enquanto estava nesse jogo de reconhecimento da bagagem,  soou o telefone da casa, Armando atendeu ainda com o pensamento num suposto erro de malas na esteira:

É o senhor Armando Costa?

Sim, sou eu.  -   respondeu.

Muito bem seu Armando, o senhor por engano retirou uma mala no aeroporto que pertence a minha esposa,  e nós estamos com uma que deve ser do senhor, estou correto?

Sim, ainda não me certifiquei disso, mas já desconfiei. - respondeu Armando.

— Muito bem, a meia noite o senhor deverá  colocar à porta de sua casa a mala que levou por engano.  Importante: Não tente abri-la. Sua mala estará à sua porta para realizar a troca. Depois você entrará em casa e somente poderá sair de seu domicilio a partir das seis horas da manhã. Estaremos observando que o senhor siga nossas ordens, caso contrário as consequências serão graves para os ambos.  Estamos entendidos? 

Perante a resposta afirmativa de Armando o cara desligou.

E assim procederam. Esperaram ansiosos pela meia noite com as luzes apagadas, temiam que tivessem esquecido algum detalhe. Armando até tinha mexido com o segredo da mala que entregaria para apagar o seu. Armando,  muito cansado e sonolento resistiu até a hora da troca das malas. A meia noite ele olhou pela janela e sua mala já estava no lugar indicado. Armando saiu temeroso e procedeu rapidamente e a troca exigida, logo entrou em casa e, apavorado trancou a porta, estava em pânico!

O casal exausto dormiu na sala aos sobressaltos.  Às cinco da manhã. Acordou,  ligou a TV, onde notícia do dia era a enorme explosão acontecida na casa de um conhecido empresário ligado às máfias orientais. Tudo indica, disse o investigador encarregado do inquérito, que abriram uma mala com o um código errado o que ativou um mecanismo eletrônico detonando uma massa de plástico de quinhentas gramas que matou o empresário, sua esposa e dois assistentes, além de destruir documentos e incendiar parcialmente a casa. Armando percebeu então que fora o telefonema do cara que salvou sua vida, tinha renascido, essa explosão poderia ter acontecido com ele!

Deitaram e dormiram até sentir que estavam bem dispostos. Já calmos, mas ainda com um pouco de medo, decidiram ver os presentes de Lucia. Estava tudo lá. Armando abriu a pequena caixinha pegou o anel adornado de um belo brilhante e disse:

Lucia meu amor você que casar comigo, assim como eu desejo casar com você?

Com certeza, meu amor, com certeza e para sempre!

Foi duro esperar por esse anel, né meu amor?
Disse Armando com um leve tom de gozação.


Mas que sufoco!

O BODE VELHO - Maria Luiza Malina


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O BODE VELHO
Maria Luiza Malina

Vou ser direto. Nunca fui homem de meias palavras, aliás, violei todas as simetrias das palavras, o que na verdade, originou meu apelido de Bode. Coitado do bode, dele mesmo só tenho o cavanhaque e as pernas finas. Ah sim, berrava o tempo todo as tais palavras inelegantes sem no entanto ser devasso, o que me levou a vida solitária.

Papai do céu ou Papai Noel, cada um no seu espaço, onde sequer eu cabia. Não sofria por isso. Era um forte candidato às voluntárias da boa vontade. Não me irritavam, retribuía com um desatento olhar sonhador que as fascinava.

Um dia este mesmo olhar fascinador transformou minha vida. A chuva rasgava a sarjeta arrastando tudo o que vinha pela frente. Afastei-me do ponto de ônibus. Neste momento alguém gritou:  – Corre bode velho senão a água te engole -  Não procurei saber quem era, como não reconheci a voz. Na padaria, um café, a xícara branca colocada a minha frente exalando o forte aroma da bebida,  remeteu-me ao alpendre da fazenda dos meus avós. Aspirava profundamente segurando-a entre as duas mãos apalpando seu calor. Inspirava, aspirava. Inspirava, aspirava junto às lembranças.

Senti alguém tocar meu ombro. Era o cheiro adocicado da adolescência. Virei-me.

Vamos vovô, eu te dou uma carona na minha sombrinha. A chuva já está passando. Você me paga um “cafe au lait”?

Que surpresa menina! Me diga, como você sabe que a marca do café é Olé

Não é a marca vovô – ria-se  num riso encantador que fazia brilhar ainda mais seus olhos azuis – aprendi hoje na aula de francês que é assim que se pede um café com leite.

Eu a tomei em meus braços segurando seu calor familiar que há muito não sentia.

Tomamos o “café au lait”. A chuva cessou. Caminhamos olhando as vitrines. Era Natal. Foi assim que os aromas então perdidos em mim, voltaram à vida com elegância.


Naquela tarde após a chuva, passei a acreditar no Papai do Céu e no Papai Noel.

O Outro - José Vicente J. de Camargo


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O Outro
José Vicente J. de Camargo

Levantei de mal humor pela noite mal dormida. Frações dos vários sonhos que tivera me rodeavam a cabeça. Não consegui, como sempre, interpretá-los. Mas senti que eram mais para o mal do que para o bem. Também pudera, com tanto azar pulando pro meu lado ultimamente, não dá pra sonhar com praia, sol e mulher maravilha. Aliás, minha praia hoje está longe daquela de paz e amor. São só multas e prestações vencidas, banco no negativo, cartão bloqueado, carro na oficina, nome na boca do Serasa e credores na porta. Tudo começou com a perda do emprego. A tal da crise, como se eu tivesse culpa das sacanagens desses políticos safados. O pior é que eles continuam numa boa e eu me azarando.

Vontade de esquecer tudo e fugir, desaparecer, ir para um lugar onde ninguém me conheça. Ou então tomar o lugar de outro, uma nova identidade, livre de preocupações, começar do zero, não cometer os mesmos erros, as mesmas tentações... Mas e elas, como ficariam? Iriam juntas? Abandonariam seus afazeres?

A dorzinha da gilete raspando o rosto ensaboado desperta-o do devaneio.

Mais rápido, senão ainda perco a entrevista, penso comigo. Só me falta essa pra completar a desgraça. Pela ligação que recebi da empresa (a voz dela tinha um toque sensual, talvez uma quarentona enxuta), pareço ter o perfil desejado. Não me atrevi a perguntar o salário. Primeiro vou sentir o interesse pelo meu serviço, depois discutimos a grana. Mas, na situação que estou, aceito o que vier...

No metrô miro disfarçadamente os caras ao redor, procurando um que me agrade para me reencarnar. Uns têm semblante cansado – já de manhã? – cabeça pendendo no peito, não servem! Devem ter mais problemas que eu! Outros têm detalhes físicos que não me sentiria bem transportando: ou é barrigudo, ou sem pescoço, ou cabeça chata, ou narigudo, orelhudo; aquele lá tem pernas finas tal vara de bambu, o do lado tem bunda grande, o terceiro tem dentes amarelados. Será que não salva nenhum ou sou eu que sou muito exigente?

Nova estação. Sobe gente mais do meu tipo. Aqueles dois sentados de lado, parecem executivos. Ternos bem cortados, sapatos de couro, gravatas de seda. Mas discutem nervosos, semblantes tensos, devem ter problemas na certa. Já que vou mudar de corpo, que seja pra algo mais fino, legitimo “laissez-faire, creme de la creme”. Mas pelo visto, não vai ser no metrô que encontrarei meu futuro ser ...

E depois, como agiriam elas? Gostariam desse novo eu? Ou essa tal de reencarnação não autoriza acompanhantes? Se não dá pra levar, nem pensar. Pelo menos esse desgastado recebe em casa carinho em dobro para recuperar a estima, afastar a má sorte. Não me deixam faltar nada, nem que seja só arroz, feijão e ovo. Mas tudo preparado com carinho. Vou lá saber se no meu “Outro” não me cai uma cara metade  azeda ou estragada? E a filhota? Só sorrisos e carinhos...Vai saber se no lado de lá, não me vem uma cambada de preguiçosos, que só pensam em comer e dormir?

Não dá! É muito arriscado. Melhor ficar cada macaco no seu galho. Eu no meu, e o “Outro” no dele. Seguir o ditado: hoje é hoje, amanhã é outro dia! Quem sabe já não recebo nessa entrevista, uma oferta de deixar as meninas novamente de cartão de crédito na mão?

Por falar nisso, deixa eu começar a esfregar meu talismã, que na próxima estação desço. Essa figa de angico preto espanta mal olhado. Presente da própria mãezinha do Gantois, abençoada pelo padinho Cícero através das mãos de Frei Damião.


“Benção Padinho, passa Satanás...”

SE VOCÊ SE ESQUECER DE MIM - Maria Luiza Malina.

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SE VOCÊ SE ESQUECER DE  MIM
Maria Luiza Malina.

Um dia a saudade bateu de encontro com palavras amigas. Os devaneios aparentavam  um baú escancarado. A velocidade dos pensamentos, a partir de um aperto de mão!

No aperto de mão, jamais esquecido, a amabilidade do olhar transformou-me num turbilhão que se limitava a sorrir. Emudeci. Estava acontecendo naquele momento a magia da transformação do sonho de menina moça, onde um simples olhar ou afago era transformado em namorico, noivado, casamento, filhos e toda uma vida por viver.

Um segundo de sonho juvenil. Nada disso aconteceu. As mãos se soltaram. Os olhares se perpetuarem em abraços de despedidas incompreendidas. Jamais o vi.

Engraçado. As vidas correm em paralelo umas às outras; tão próximas e tão distantes; tão ao alcance e o mago do tempo a ludibriar. As explicações chegam como velhos fios desgastados pelo tempo impiedoso.

Quantos fatos ruins me foram afastados -  disse Anabella ao amigo Antonio – não sei se teria a serenidade igual a sua. Antonio se limitou ao silêncio infinito. 

Respeitei o momento observando os transeuntes da varanda do bistrô onde acontecia a exposição de seus quadros. O frescor do vinho branco acentuava o prazer de um final de tarde. Antonio continua imóvel. Imaginei que toda uma segunda opção se recriava em si, dentro do chavão de “e se não tivesse sido assim”. Desviei meu pensamento. Isso era só dele, não meu. O tempo havia sido o dono do nosso destino.

Desviei meu olhar sucinto às telas que, agora se mostravam desnudas. A delicadeza do vinho ajudou-me a penetrar no alvoroço das cores.  Antonio continuava imóvel. A taça vazia acompanhava os pensamentos obsoletos. Apreciei e adquiri a coleção.

Antonio continuava perdido no azul do horizonte, que anunciava o crepuscular, com a taça cheia. O instante acromático de Antonio selava o pseudônimo da vida e das obras.

Assim como uma pessoa que, de passagem entra por curiosidade para uma mostra, despedi-me de Antonio:

Se você se esquecer de mim lembre-se de suas telas – nada respondeu.


Acredito que, também quisesse que fosse assim. Nunca mais soube de Antonio. O aperto de mão se desvaneceu no espaço. Um ciclo que foi fechado.

SOPHIE - Carlos Cedano

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SOPHIE
Carlos Cedano

Nossa turma, com sessenta alunos, estava no terceiro ano da Faculdade de Economia e era um grupo bem integrado e de muita camaradagem. Mas nada fazia prever que nosso coreto seria bagunçado em breve. Quando retornamos das férias nos deparamos com uma nova aluna de nome Sophie, alta, olhos verdes, cabelos loiros e um sorriso suave parecendo saída do quadro o Nascimento de Vênus de Botticelli.

Lentamente foi cativando gregos e troianos, sempre gentil e alegre. Em pouco tempo já fazia parte de nossa sala como se sempre tivesse estado conosco. Sua inteligência impressionava e seu elevado nível cultural também. Conhecia muitos países e discorria sobre artes com muita precisão e até falava de coisas que nem sabíamos existirem.

Jaiminho, um cara um pouco excêntrico, bom observador e fantasioso, dizia com frequência que ela não era deste mundo, achávamos que era um modo de elogiar seus talentos.

Sophie participava de todas as atividades e numa das festas levou pequenos presentes para todos. Todos agradeceram sua gentileza e perguntavam: Como você adivinhou que era algo que eu desejava? Ela apenas respondia que tinha usado a intuição! Mas, Jaiminho já desconfiado pelas coincidências continuava observando!

A maior surpresa foi quando ela não voltou às aulas após as férias, e todos se perguntavam sobre o motivo: Doença, viagens ou sofreu um acidente? Um dos alunos perguntou na sala se alguém sabia seu sobrenome, endereço ou número de telefone. Ninguém sabia de nada!

— Porque não pedimos na secretaria seus dados? Indagou outro aluno.

— Boa ideia, vamos falar com Secretário, e lá foi um grupo de alunos.

O Secretário escutou atentamente e achou a situação preocupante, chamou um funcionário e lhe disse:

— Seu Roberto, precisamos os dados de uma aluna cujo nome é Sophie, os senhores aqui podem te ajudar, mantenha-me informado, por favor.

Desceram todos e em pouco tempo verificaram os arquivos da faculdade sem encontrar nenhuma Sophie, apenas uma Sofia que logo foi descartada porque quem a conhecia disse que era muito feia.

Depois visitaram as salas de aula de toda a faculdade indagando, mas sem uma foto a simples descrição de Sophie impediu que alguém se lembrasse dela ou nem a conhecia, outros brincavam dizendo que uma mulher com todas as qualidades descritas simplesmente não existia!

Uma aluna sugeriu ao desanimado grupo que todos pegassem fotos tiradas nas reuniões do semestre anterior onde Sophie com toda certeza devia aparecer. A ideia foi considerada muito boa e todos partiram para suas casas. A reunião seria retomada essa tarde por volta das dezesseis horas.

Na hora combinada e com a sala cheia se dividiram em grupos para checar cada câmera, celular ou tablet. Nova decepção parecia que Sophie nunca tinha feito parte do grupo!

Agora o silêncio era total. De repente alguém pede a palavra, era Jaiminho:


— Eu lhes disse que ela veio de outro mundo e vocês não acreditaram em mim, vai ver que ela esteve aqui só para tirar sarro de nossas caras, Ah! Mas, com certeza ela era uma extraterrestre muito linda e brincalhona! Gostei tanto dela!
                                       
E nunca mais soubemos de Sophie.



Uni, dunê, tê ... - Sérgio Dalla Vecchia

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Uni, dunê, tê ...
Sérgio Dalla Vecchia

— Uni, dunê, tê,
— Salamê, minguiê,
— Um sorvete colorê,
— O escolhido foi você!

Ouviu-se da voz do atirador, enquanto um tiro ecoou pelos ares!

Da roda de colegas ajoelhados, tombou ela. A escolhida!

O assassino ainda empunhando a arma disse:

— Só agora, encorajado pelas notícias de vingança de serial killers, que sofreram bullying pelo mundo afora, reuni vocês aqui.

O medo que sentem nesse momento eu o engolia a seco todos os dias. Dia após dia!

— Vocês me fizeram um homem instável, ruminando por anos humilhações passadas.

— Escolhi um de vocês para pagar com a vida todo o sofrimento moral imposto por nada! Talvez agindo assim sem dó, como faziam, vocês assimilem o recado ao seu nível.

— Aprenderam a lição?

— Ensinem para seus filhos o significado de duas simples palavras, que se completam e tudo dizem:

 — Amor e Fraternidade!

 E assim, outro tiro chorou pelos ares, com mais um injustiçado aplicando a própria vingança.  


Que fique a mensagem para todos pais. Só eles é que poderão reverter esse drama mundial através da educação dos filhos.

FELIZ DIA DOS MÉDICOS - Oswaldo U. Lopes


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FELIZ DIA DOS MÉDICOS
Oswaldo U. Lopes

         Alô. É a Dra. Brenda? Este é o aviso final. O dia de amanhã não existirá no seu calendário.

        Que maneira besta de começar o Dia dos Médicos, pensou a doutora. A folhinha a sua frente marcava sem duvida 18 de outubro de 2017, dia de São Lucas e, portanto, em homenagem ao patrono, dia deles: os médicos.

        Apesar do frio na espinha Brenda permaneceu calma. Sabia do que se tratava e o porquê da ameaça.

        Tudo começara há pouco tempo, dois dias atrás para ser preciso. Fora sequestrada na Clínica em que era uma das proprietárias, reputada cirurgiã vascular com extenso currículo. Embora tivesse ainda aparência jovem, 42 anos, detalhe que não costumava omitir, já contava 20 anos de formatura e muita experiência.

        Durante a residência ficara por cinco longos anos dando plantões no Hospital Souza Aguiar. Era uma das maiores especialistas em balas, sobretudo as disparadas. Distinguia calibres quer em radiografias quer ao vivo e a cores. Fora autora de uma memorável palestra sobre ferimentos por projetil em ambiente urbano.

        Onde? No Walter Reed Medical Center em Washington. Bem, mas isto era passado, dois dias atrás, acontecera o sequestro.

        Costumava chegar cedo à clínica, fato que todo mundo sabia. Se tinha cirurgias preferia começá-las por volta das onze. Mal descera do carro na garagem da clínica e encarou três homens fortemente armados que se dirigiam a ela. Outro assalto, pensou, fazia tempo que não ocorria.

A senhora vem conosco, agora.

        E foram-na conduzindo para um furgão Volvo que estava perto. Epa pensou, já lera sobre sequestros de médicos em UPAs pelos morros e favelas cariocas. Numa clínica particular nunca tinha ouvido falar.

        Foi acomodada junto à janela no banco de traz. A seu lado um tipo relativamente franzino encostou uma pistola 40 nas suas costelas. Nada aconteceu enquanto rodavam ainda pela zona sul, quando atingiram os tuneis um capuz foi colocado sobre sua cabeça.

        Pararam numa rua pequena típica de morro e foi rapidamente introduzida dentro de uma casa. Por fora parecia um molambo, por dentro uma enfermaria de Pronto-Socorro, muito bem equipada. Foi levada a um quarto, onde jazia deitado um homem, jovem e de aparência muito forte que já estava recebendo soro.

        Através de gestos simples e claros foi “convidada” a examiná-lo. Tinha recebido uma rajada. O ferimento na coxa não era grave perfurara musculatura e não sangrava.

        O do braço fora pra valer! Partira o osso e rasgara a artéria. A mão e o antebraço estavam já azuis e inchados. Seria necessário removê-lo para um hospital e operá-lo logo.

        Informou sua impressão e a necessidade de intervenção imediata.

Negativo, doutora. Vai ter que fazer o serviço aqui mesmo

Vou precisar de um anestesista. Ele não aguenta uma cirurgia a sangue-frio.

Pelo que sabemos nos tempos do Souza Aguiar, a doutora fazia milagres, com uma tal de anestesia troncular. A senhora faça uma lista do que precisa e terá tudo aqui em menos de uma hora.

        Olhou para eles, olhou as pistolas, olhou para o ferido e sentou-se para fazer a lista.

        Em uma hora recebeu tudo que pedira, precisava de um time destes na clinica pensou, ou mesmo no Souza Aguiar dos velhos tempos.

        Como é que costumavam dizer:

Deus protege os bandidos embora ninguém soubesse por quê.

         Fez a tal anestesia troncular, fixou a fratura com placa e parafusos e grande finale, restabeleceu a circulação na artéria. Viu a mão recuperar a cor e o rapaz foi até capaz de mexer os dedos. Por ultimo colocou o imobilizador de ultima geração e disse:

No mínimo sessenta dias de imobilização. Depois disso, radiografia e consulta com ortopedista. Já aviso que essa não é a minha área.

— Doutora duas coisas:

1- Diga o preço, sabemos que salvou o braço e vamos pagar pelo serviço.

2 – Silêncio absoluto. Se procurar a polícia, vamos atrás até para servir de exemplo. Não tente nenhuma gracinha.

Não vou cobrar, até eu estou maravilhada pelo resultado de tão precárias que eram as condições. Na questão ética, não vai ser bandidagem do Rio que vai me pautar.

        Sentiu um ar gélido em volta, recebeu de novo o capuz e foi deixada na clínica.

        No dia seguinte, véspera de São Lucas, procurou a delegacia de Ipanema e registrou o ocorrido. Era conhecida do delegado e foi muito bem tratada.

        Capuz ou não tantos anos de ambulância, sabia bem por onde andara.  Acharam a tal casa enfermaria naquela mesma tarde, vazia é claro.

        No mais, manteve silêncio total. Ferimento a bala de grosso calibre provavelmente rajada e só. Se resolvera tratar o doente, ele passara a ser seu paciente e assim estava coberto pelo sigilo profissional. Não fez nenhuma descrição dele e se recusou a tentar identificá-lo no álbum da policia.

        O delegado advertiu-a que poderia até ser presa e que estava levando o caso a um juiz que iria querer interrogá-la e não estaria muito a fim de sigilo profissional, sobretudo em se tratando de um bandido. O crime parecia ser acerto entre quadrilhas o que andava na moda atualmente e ia ter repercussões na mídia.

        Continuo calada. Hoje recebera o telefonema fatal. Pouca gratidão e muita bala, era o que a esperava. Olhou no seu lindo calendário para ver qual era o santo de amanhã:

        São Pedro de Alcântara, frade franciscano.


        Sorriu, mas que coincidência para alguém que nasceu em Petrópolis.

ACEITA ESTE HOMEM COMO SEU LEGITIMO ESPOSO, PARA HONRÁ-LO E RESPEITÁ-LO ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE? - OSWALDO U. LOPES

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ACEITA ESTE HOMEM COMO SEU LEGITIMO ESPOSO, PARA HONRÁ-LO E RESPEITÁ-LO ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE?
Oswaldo U. Lopes

        Não tenho procuração da Santa Madre Igreja para discutir assuntos que lhe dizem respeito. Ela não costuma concede-las a leigos e considerando meu currículo atual, não sei se o faria.

        Por outro lado não convém negar que fui militante de Ação Católica e que participei da JUC (Juventude Universitária Católica) que mais tarde deu origem a Ação Popular. Embora tivéssemos a assistência de um padre éramos incentivados a nos manifestar e discutir os textos bíblicos do Novo Testamento.

        A Igreja católica reconhece sete Sacramentos. Dois privativos do Bispo: a crisma e a ordem. Quatro privativos do padre (batismo, comunhão, penitencia e extrema unção ou unção dos doentes), com exceção do batismo que in extremis pode ser administrado por qualquer pessoa já batizada.

        E mais um que poucos sabem é privativo dos noivos, o matrimonio, sendo o sacerdote uma mera testemunha privilegiada. É comum que os padres acabem falando demais se esquecendo dos reais celebrantes.

        Na posição de testemunha, cabe ao reverendo apenas perguntar se fulano aceita fulana como sua legitima esposa e a fulana se aceita sicrano como seu legitimo marido. No fim confirma o contrato do qual foi testemunha.

        Textos mais elaborados, como o do título representam apenas votos dos noivos que podem, dentro, é claro de certos limites, ensaiar sua veia poética e criarem textos a sua escolha.

        Muitos se arrepiam porque se lembram, e não sei de onde o tiraram, do termo obedecê-lo que seria usado pelas mulheres. Ele não faz parte da liturgia e não está determinado em nenhuma orientação ou manual.

        A religião cristã é uma continuação e derivação da judaica. Quem já foi a um casamento judaico viu e sentiu a importância que eles dão ao casamento. A festa que fazem a respeito é enorme. Ali esta assegurada a continuação do povo escolhido e a sua permanência na face da terra.

        O que se encontra na cerimônia do casamento católico, sobretudo quando é celebrada a missa, é uma passagem do evangelho de São Mateus em que os fariseus, para provocar Cristo perguntaram-lhe se era lícito ao marido repudiar a mulher. Esta passagem também se encontra no Evangelho de São Marcos.

        “Não separe o homem o que Deus uniu” ensinou o Mestre

        Note-se que naquele tempo, na religião judaica, bastava ao homem comparecer perante o rabino e por três vezes repudiar sua mulher para obter a separação (o papel, guet em hebraico, lhe dava a condição de casar de novo). A mulher era completamente ignorada. Foram necessários mais mil anos para que, entre os judeus, se passasse a exigir, para o divórcio, também o consentimento feminino.

        Jesus enfrentou duramente a Lei de Moises e o repúdio privativo do homem sobre as mulheres:

“Eu, porém, vos digo que todo aquele que repudiar sua mulher, se não é por causa de infidelidade, e casar com outra, comete adultério”.

        Recentemente Israel duplicou de dez para vinte anos de prisão a pena para o homem que se recusa a dar o divórcio. Machista paga dobrado.

        A posição de Jesus neste episódio é, pois extremamente avançada e protetora da mulher. Não é o que gostaríamos que fosse nos tempos atuais, mas isto provavelmente é mais culpa da Santa Madre do que de Jesus.

        É, mas nessa mesma missa está a carta de São Paulo aos Efésios dizendo que estejam as mulheres submissas a seus maridos, e nos não gostamos do termo. De pleno acordo, mas é preciso lembrar que ao dizer isto São Paulo, diz que os maridos devem se comportar como Jesus. Esta lá: “Cristo amou a Igreja e por ela se entregou” e mais:

“O que ama sua mulher ama-se a si mesmo. Porque ninguém aborreceu jamais a sua própria carne”.
        Nem sempre os textos das ditas Sagradas Escrituras nos agradam ou se adaptam ao tempo em que vivemos. Isso é certo e não se discute, mas muitas e muitas vezes, somos nós que não os vemos à luz do momento histórico e das circunstâncias em que as palavras foram ditas e os acontecimentos vividos.


        É bom lembrar que a Santa Madre é obra dos homens, ainda que com a ajuda de Deus, às vezes é como o trem do samba: está atrasado ou já passou.

DE NOVO NO ARAGUAIA - Oswaldo U. Lopes




DE NOVO NO ARAGUAIA
Oswaldo U. Lopes

        Dez passos para a direita, quinze para a esquerda, se fosse no Caribe iriam achar tesouro, mas no Brasil quem cava com esse rumo esta procurando é ossada. Ainda mais se está perto do Rio Araguaia.

        Era o que pensava Marcelo um dos poucos sobreviventes da guerrilha na selva. Quarenta anos são passados, Bodas de Rubi, pedra dura pensou, só perde para o diamante.

        Na memória tudo estava embaralhado. Sincero consigo mesmo, admitia sem dó, aquilo fora um retumbante fracasso.

        Queriam fazer como o Che na Bolívia e fizeram exatamente igual. Não conseguiram apoio local, os posseiros e mateiros da região os olhavam calados e desconfiados e forneciam as informações para o exercito. Eram conhecidos como o pessoal especialista em caneta em oposição aos que sabiam manejar o facão.

        O Major Curió, capitão na época ganhou de goelada.

        Conseguiu refazer a vida, concluiu o curso de engenharia e trabalhava na Petrobras. Poucos na guerrilha, muito poucos sabiam seu nome verdadeiro e esses poucos tinham morrido ou foram  assassinados. Dr. Juca, o memorável médico, entre eles. Casado, resolvera contar a mulher, logo de cara e ela fez por merecer a confidência, nunca vazou ou comentou o assunto. Viviam bem, dois filhos e uma ótima casa num condomínio da empresa na beira da rodovia Bertioga- São Sebastião.

        Até que veio a Comissão da Verdade, mais eficientes do que os milicos ou com mais recursos depois de tanto tempo, farejaram seu paradeiro.

        Não se esquivou, já tinha reconhecido seu erro. Não de combater a ditadura. Mas de fazê-lo com armas perdido na selva. Até hoje estranhava o nome da pequena cidade Xambioá.

        Convidado não se omitiu nem se enalteceu, contou o que sabia e... Grande surpresa puxou um pequeno mapa e revelou onde enterrara dois companheiros de luta cujos nomes não sabia, apenas os codinomes: Mané e Jupiá.

        Era um mapa pequeno feito em tecido que ele levava costurado por dentro da bota e com o qual ficara quando escapou.

        O pano era bom e o mapa simples. Um traço forte na diagonal que se bifurcava como Y em baixo. O traço representava o Rio Araguaia e o Y o Rio das Mortes e o braço do Javaés que formava a Ilha do Bananal. Uma série de letras ao longo do desenho identificava as referências:

CA – Conceição do Araguaia
SF – São Felix do Araguaia
A – Rio acima – Montante.
M – Rio das Mortes
AFA – Atracadouro da Fazenda Curua
10D – Dez passos a direita
15E -  Quinze a esquerda.

        Agora estavam perto. Topara vir e resgatar os corpos dos dois guerrilheiros mortos naquele dia. Lembrava bem os dois cadáveres, ele e o mateiro na canoa.

        Fora um dia no final de outubro de 1974, a guerrilha já estava perdida quando deram de cara com a patrulha do exercito. Estavam na vizinhança de Conceição do Araguaia.   Tudo foi muito rápido, já escurecia, trocaram tiros. Tinha certeza de que acertaram um dos soldados. A patrulha se retirou provavelmente levando o ferido. Quando olhou de lado viu mortos Mané e Jupiá.

        Não queria deixar os corpos ali. Já vira muitos cadáveres pendurados em helicópteros sem a cabeça. Enterrar mortos com dignidade era uma questão de honra. Com o de acordo do piloteiro Juvenal, embrulhou- os em lona vedou-os bem, colocou sal e cal dentro e se foram rio acima. Agora entendia melhor porque o Dr. Juca sempre tinha esses elementos nos acampamentos mais importantes. No começo só viajavam a noite, e assim foi que só atingiram o Rio das Mortes dois dias depois.

        Era cheia, e o rio estava navegável por inteiro. Curioso o nome do rio fora dado pelos Xavantes por causa da mortandade causada pelos bandeirantes. Era diferente do outro Rio das Mortes de Minas, mas continuava fazendo jus ao nome, ainda morria muita gente afogada nele.

        Seguiram pelo rio acima até encontrarem o embarcadouro da Fazenda Curuá. Achou que estava bom. Apesar de bem embrulhados os corpos já produziam um odor triste. Desceu contou dez passos para a direita e quinze para a esquerda, fez uma cruz numa Embaúba e enterrou os mortos com a ajuda do Juvenal.

        Feito isso subiram ainda mais o rio até Nova Xavantina. Despediu-se do Juvenal recomendando a este que não voltasse à Conceição do Araguaia. Recomendação inútil, o piloteiro que sabia das coisas e tinha participado ativamente da peleja pretendia e foi se meter no Pantanal.

        Marcelo foi de Nova Xavantina a Barra do Garça, e de lá para São Paulo. Estavam muito longe de Xambioá e passou despercebido.

        Agora estava de volta. Acharam o local e a cruz que fizera na árvore. Não precisava cavar, havia mais gente, muita gente. Desenterraram. O padre que estava junto abençoou os ossos, ele persignou-se e ficou calado, muito calado.

        As famílias poderiam agora enterrar os mortos, ele teria que enfrentar um tempo de exposição na mídia, depois voltaria para seu canto, em silêncio, quieto.





Difícil Reparação Maria Verônica Azevedo

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Difícil  Reparação
Maria Verônica Azevedo

        Nós estávamos os quatro parados em círculo na entrada do velho casarão.

        Leila, com as mãos trêmulas, examinava o papel um pouco amassado com fortes marcas das dobras, bem envelhecido pelo tempo. A emoção se espalhava entre nós.

        A gente lembrava que deveríamos começar a procura a partir do chafariz do jardim...

        Mas ele não estava lá. Alguém, não sabíamos quem nem quando, tinha tirado o chafariz dali. No lugar tinham plantado um canteiro de margaridas.

        Estava tudo diferente por ali. Eu pensei alto:

        — Se mudaram tanto assim o jardim... Será que vai adiantar a gente cavar?

        — Claro que vai, falou a Flaviana. O buraco era bem fundo. Acho que ainda está lá.

        Leila começou a ler:

        — Dez passos para a direita... Alguém lembra em que direção?

        — A gente estava de costas para a casa. Eu me lembro bem.

        — Então vamos lá. Falou decidido o Oscar.

        — Quinze passos para a esquerda. Continuou a Leila.

        Nós quatro nos movemos juntos com passos nervosos e alguns encontrões.

        Finalmente paramos na frente de uma escultura de mármore: um grande leão com ar ameaçador.

        — E agora? Gritou Oscar, muito nervoso. Essa é a posição em devemos cavar.

        — Vocês têm certeza de que era aqui? Eu nunca tinha visto este leão.

        — Claro! Você não está vendo que este leão é novo? Foi colocado bem no lugar em que a gente enterrou o cachorro. Não vai dar para cavar.

        Nós estávamos querendo consertar a situação.

        A vovó, já muito idosa, tinha deixado um diário onde lamentava o fato de seu cão de estimação, Fidélio, que ela tinha criado desde novinho, com tanto carinho, tê-la abandonado daquele jeito, de um dia para o outro, sem razão.

        Nós, os netos, ao lermos o diário, ficamos nos sentindo culpados por termos dado fim no cachorro, que sempre furava a nossa bola. Já tinha dado cabo de três bolas num só mês.

        Oscar acabara com o problema levando Fidélio para um banho de cachoeira. Ele achava que o cachorro ia se perder no mato e não saberia voltar. Mas o cão da vovó caiu na cachoeira ao atravessar o rio pelas pedras.  Bateu a cabeça e morreu ali mesmo.

        Sem coragem de contar à vovó, tínhamos feito o enterro no jardim. Por via das dúvidas, fizemos um mapa do local.

        Agora, tantos anos depois, emocionados com o diário, queríamos reparar o dano, fazendo um enterro decente para Fidélio, ao lado do túmulo da vovó.


        Diante da escultura do leão, concluímos que seria impossível resgatar os restos do Fidélio.