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PÃES E AFINS - Silvia Helena De Ávila


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PÃES E AFINS
Silvia Helena De Ávila
I

Com muita dificuldade Bolivar se locomovia até a padaria todas as madrugadas, tão gordo estava.  Muitos anos atrás, seu avô inaugurara um pequeno comércio de azeites vindos de Portugal. Desde então, setenta anos se passaram e o negócio só prosperou.

De azeites para pães foi um longo caminho. Só se definiu mesmo como padaria quando o pai de Bolivar, seo Manuel, sofrendo de diabetes tipo II,  passou o comando dos negócios para o filho mais velho . Com pesar foi entregando o patrimônio da família, o que gerou  um mal estar entre os irmãos. Bolivar era sabidamente um "bon-vivant", ávido por dinheiro. Queria para si um estilo de vida fora dos padrões austeros da família portuguesa.

Qualquer produto novo que agradasse aos clientes abastados do condomínio vizinho era imediatamente incorporado às vendas. Até que chegou ao balcão do caixa a possibilidade de se vender drogas. Quem começou, na verdade, foi o próprio funcionário do caixa, às escondidas dos proprietários.  Vendia junto com os cigarros. Dentre os clientes da padaria,  destacava-se a garotada, usuária frequente de drogas  e ali no condomínio não havia lei. O tráfico foi se intensificando a ponto de chamar a atenção de Bolivar.
II
Quando descobriu a irregularidade, pensou em despensar o funcionário, mas pesou o que seria mais vantajoso para seus negócios e decidiu continuar, ele mesmo cuidando das tratativas.

As transações aconteciam de madrugada, quando Bolivar chegava.  Nesta época,  seo Manuel já não vinha trabalhar tão cedo.  Rigoroso como era, custou-lhe confiar no suposto empenho do filho.  E assim foi por alguns anos, as entregas crescendo gradativamente.

Por outro lado, a intensidade das transações também chamou a atenção do chefe dos traficantes. Ele resolveu fiscalizar o novo ponto e conhecer o "cabeça" dos intermediários. Bolivar não quis se envolver pessoalmente, mas não houve meios de evitá-lo, seu funcionário não possuía traquejo para lidar com esta situação, com esse tipo de pessoal.

Muito a contragosto Bolivar se viu envolvido em uma trama perigosa e talvez sem saída, porque depois  de ter se aproximado do chefão dos traficantes, tinha o passo seguinte, fundamental para o sucesso da operação,   conhecer o pessoal da polícia, os camaradas que  faziam a ronda nos arredores do condomínio.  Todos envolvidos na trama.

Viveu assim mais alguns anos, faturando muito, mas sempre sobressaltado. Começou a pensar em deixar o negócio quando sua esposa descobriu as vendas ilícitas. Ameaçou se separar dele, pois temia pelas filhas. Com os nervos à flor da pele, ameaçou matá-lo, caso não abandonasse os negócios.

Certa vez, ao descer do carro, foi cercado por dois rapazes que o ameaçaram também. Estavam fora de si, notadamente drogados, queriam que ele passasse a vender drogas mais pesadas.  Bolivar sentia-se pressionado. Incorporar novas drogas interessava a todos que faziam parte do círculo vicioso. Traficantes, usuários, policiais e o funcionário da padaria. Só ele pensava em sair da jogada, ele, o financiador da mega transação  em que  tinha se transformado.

 Resolvera de fato  encerrar o tráfico, mas era impossível deixar o esquema ileso, todos estavam contra ele. Sentindo-se inseguro, contratou os serviços de proteção de guardas, mas estes pertenciam  à mesma delegacia regional dos outros, envolvidos com a droga.

III

Nunca em setenta anos de existência, viu-se  a padaria do seo Manuel fechada. Assim os clientes a encontraram naquela manhã chuvosa de novembro. Sem nenhum aviso, sem nada que indicasse o que poderia ter ocorrido. Na madrugada daquele dia frio, úmido,  Bolivar aparecera morto, caído na rua ao lado de seu carro, em frente à padaria. Não se sabe se foi empurrado, se tropeçou, se escorregou no piso molhado ao descer do carro, estava muito gordo, com dificuldade pra andar, o fato é que caiu e bateu a cabeça na sarjeta.
A família ficou em choque. A esposa, com medo de retaliação, pegou as filhas e partiu para a casa dos pais sem dar explicação a ninguém. Os irmãos, habituados a ter Bolivar no comando de tudo, choravam de dor e pavor pelo que lhes aguardava. Desconheciam até mesmo o preço da farinha de trigo. Seo Manuel ficou impassível.

Nos dias que se seguiram o movimento da padaria foi mais intenso que o normal. Clientes curiosos, antigos amigos do cafezinho, moradores do condomínio e muitos policiais, a pretexto de proteger o local e dar continuidade nas investigações. Pouca coisa foi esclarecida sobre o incidente e a família se contentou com o laudo da perícia. Foi quando tomou-se  conhecimento também da venda de drogas, para incredulidade de uns, desprezo de outros e  ainda aqueles  que tinham certeza absoluta tratar-se de pura mentira.

Chegada a missa de Sétimo Dia, as pessoas foram confortar os familiares. Os parentes notaram  a presença de um grupo estranho, souberam tratar-se dos traficantes e seu chefão. Ficaram indignados com a presença deles pois uma das hipóteses levantada pela polícia era de que teria sido crime de facção. O grupo conversava sorrateiramente com os policiais. Na verdade, tratavam de negócios, pensavam em como dar continuidade à operação,  não estavam lá rezando pelo falecido.

Na saída da igreja o grupo se dispersou rapidamente, já os  amigos e conhecidos permaneceram ali  na tentativa de consolar a família amiga. Seo Manuel não quis ficar por mais tempo, foi se dirigindo para o carro quando percebeu um sinal de um homem do outro lado da rua. Caminhou em sua direção, conversaram por um breve instante.

—Tinha que ser assim, disse ao desconhecido. A padaria é sagrada!



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