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Coisa de criança. - Maria Verônica Azevedo





Coisa de criança.

Maria Verônica Azevedo


A casa das palmeiras, como era conhecida, foi construída numa região nobre da cidade de Santos em 1889. Ficava numa esquina da Avenida Conselheiro Nébias, no bairro do Paquetá. As plantas arquitetônicas assim como os vitrais coloridos de suas janelas vieram de Paris. Logo que a casa ficou pronta, Georgina e sua mãe Isabel, se mudaram para o palacete construído por seu pai Pedro de Souza Aranha, ela tinha então apenas quatro anos de idade e lá morou até 1929.

            Um ano depois nasceu sua irmã Adélia.

            Georgina e Adélia cresceram ali em meio a muito conforto convivendo com pessoas proeminentes da cultura literária como seu tio o poeta Vicente de Carvalho, que ali morou por alguns anos, acompanhado de sua mãe Augusta, avó de Georgina e Adélia.

            Georgina tinha uma personalidade forte, um porte altivo e um belo rosto. Falava pouco, mas não se furtava a uma conversa sobre literatura ou política.
            Casou-se em 1905 com um rapaz escolhido por seu pai, como era comum na época. Ela gostava de outro em segredo, mas em nenhum momento isso foi considerado. O casamento foi um acontecimento na cidade de Santos devido à grande pompa. Era o que se podia esperar de uma filha de Pedro de Souza Aranha.

            Adélia não tinha beleza, mas era uma criatura doce, dedicada ao piano. Embora fosse muito tímida, era alegre e espirituosa. Adorava crianças e era correspondida. Nunca se casou. Era muito querida pelos sobrinhos e depois pelos filhos desses, que estavam sempre aos seus pés junto à cadeira de balanço para ouvirem as histórias que contava com extrema habilidade. Ela não precisava de livros. As lendas e contos de fadas saiam de seus lábios com muita facilidade.

            Na casa das palmeiras nasceram os sete filhos de Georgina e Leôncio.
            O segundo filho era muito peralta. Estava sempre recebendo reprimendas de seu pai. Um dia, depois de muito pedir, ganhou de presente uma bola de futebol com a instrução de só jogar com ela no gramado do quintal atrás da casa. O espaço era bem grande cabendo um campinho de futebol com redes de gol e tudo mais. Sozinho no meio de cinco irmãs e só um irmão ainda bebê, ele resolveu convidar os garotos da rua para jogar com ele. Assim encheu o quintal de meninos de todos os tipos. Ao perceber a algazarra, Georgina acabou com a festa. Era inconcebível aquela meninada desconhecida dentro de sua casa.

            Num dia de muita chuva, irrequieto, sem poder jogar bola no quintal, ele começou a chutar a bola dentro de casa, próximo ao canto onde a tia tocava seu piano. Foi repreendido por ela, mas não deu ouvido e continuou com a diversão até que a bola atingiu o rosto dela quebrando-lhe os óculos. A bola foi recolhida pela mãe e ele nunca mais a viu. Mas as peraltices continuavam. Quando era surpreendido num malfeito, corria, subia numa árvore alta e ameaçava não descer mais a não ser que o pai prometesse que não seria castigado. Georgina não sabia como lidar com esse menino incorrigível no meio de tantas meninas. Ele definitivamente não era calmo e razoável como seu irmão caçula. A solução encontrada pelo casal foi levá-lo para o internato dos Beneditinos em São Paulo. Assim foi feito.

            Maria José era a terceira. Uma menina linda, sempre risonha com seus cabelos cacheados e olhos espertos. Aos dois anos de idade foi acometida de uma febre diagnosticada como Poliomielite. Não podia mais andar.

            Em sua infância foi privada da alegria de correr pelos amplos gramados de sua casa. Ela permanecia horas ao lado das janelas de seu quarto observando seus irmãos no jardim e sonhando acordada.  Georgina não se deixava entregar à tristeza de ver sua filha daquele jeito. Buscou ajuda com vários profissionais de saúde e com muito exercício e a ajuda de aparelhos ortopédicos conseguiu colocar Maria José de pé andando. Com o tempo, ela se libertou dos aparelhos, mas conservou o uso da bota de couro que chegava até os joelhos. Tinha um andar claudicante, mas isso não a inibia. Dedicou-se a ler tudo que podia e para isso seu pai providenciou uma boa biblioteca. Era inevitável que se interasse em escrever e assim tornou-se uma poetiza respeitada.

            Sobre sua infância ela escreveu:
A mim numa idade em que
ainda não se sabe se a sorte é boa ou má,
o destino interrompeu meus passos vacilantes.
E uma criança que desconhece a felicidade de correr,
É como um pássaro que não voa.

Mas não fiquei amarga não...
O que me faltou em movimento,
Sobrou em sentimento.
O que perdi em ação,
Ganhei em imaginação.

É dela o poema que descreve a casa das palmeiras.

            A casa onde nasci       (publicada em livro em 1949)

A casa onde nasci se erguia numa esquina.
Majestosa, a se impor, primeira entre as primeiras!
Tinha em si o esplendor da força que domina,
Cercada de jardins, cercada de palmeiras...

Nela três gerações viveram e sonharam.
E o tempo, ao decorrer, não lhe alterou a graça;
Foi sempre a mesma casa em dias que brilharam
Como nas horas negras da desgraça.

Como um tronco cai na floresta bravia,
Altivo sem gemer, numa queda sombria,
Sem temer um só golpe, a resistir à morte,

Nossa casa ruiu... Sem vergar, altaneira.
Ela foi até o fim, serena e hospitaleira,
Tal como o dono seu nos embates da sorte!

            Em 1929, a família mudou-se para uma moradia menor no bairro do Embaré. A casa das palmeiras passou a abrigar o Centro de Saúde da cidade nos próximos 15 anos.

            Nesta nova casa Georgina, permaneceu até os anos 60. Ali recebia seus 19 netos e 20 bisnetos com muita discrição, mas com carinho e um sorriso alegre quando chegavam.

            Mas mantinha-se sempre serena não importava o que de mal pudesse vir. Nunca a ouviram lamentar a perda de sua bela casa. Nos últimos anos foi morar num apartamento, mas de frente para o mar que tanto amava. Quando já tinha 84 anos de idade, morreu seu segundo filho, ela permaneceu, no velório, muitas horas impassível, rezando ao lado dele. Ao se aproximar uma neta para beijá-la e perguntar como estava, ela falou com uma impressionante serenidade:

             - Eu perdi minha mãe e meu pai. Perdi minha única irmã e meu marido. Mas nada se compara à dor de perder um filho.

            Ali ficou até a hora da missa de corpo presente rezada na capela do hospital onde ele tinha sido um médico sábio e muito respeitado. Não foi ao enterro.

            No cotidiano, ela conversava com todos, sempre acomodada em sua cadeira de balanço austríaca, ainda remanescente da mobília que trouxera da casa das Palmeiras. Ninguém a ouvia falar do passado.  Preferia sempre conversar sobre as últimas notícias culturais ou sobre política.

            Às vezes saia para fazer visitas para amigos e parentes. Ia sempre de bonde elétrico. Nunca se esquecia dos aniversários. Era sempre a primeira a telefonar, logo de manhã. Gostava de se distrair com a televisão e seguia as novelas diárias, muitas vezes mais de uma ao mesmo tempo, trocando os canais nos intervalos. Tinha uma inteligência viva e memória prodigiosa.

            A chegada paulatina dos bisnetos coincidia com o branqueamento de seus cabelos sempre presos em um discreto coque junto à nuca. Não chegaram a ficar totalmente brancos. Ainda tinha alguns fios negros logo abaixo do coque.

            Uma das poucas vezes em que a viram dar uma risada, foi quando um de seus netos pequenos, na época com cinco anos de idade, olhando para ela, que estava lendo um livro de histórias, comentou:

            - Vovó! Você está ficando tão velhinha, tão velhinha, que o seu cabelo está começando a ficar preto de novo.

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