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Revelações - José Vicente J. de Camargo

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Revelações
José Vicente J. de Camargo

Já virara uma rotina nos últimos meses. Todo dia as quatro da tarde, ela procurava tomar o chá na Confeitaria Londrina no largo do Machado. Para tal passava em frente a faculdade de Direito procurando coincidir com a saída dos estudantes sorridentes e afoitos, a jogarem palavras ao vento e olhares persistentes às donzelas que passeavam na companhia das mães ou de sisudas damas de companhia.

Tudo começou numa tarde em que fora empurrada por um desses estudantes que, fugindo de um colega brincalhão e não a vendo, quase lhe arremessa ao chão. Ao se desculpar, tocam-se as mãos e trocam olhares que como raios lhe penetram queimando as entranhas. Desde então ela não consegue afastar de si o fogo daquele olhar. A esperança está no chá da tarde já que ele a vira entrar, naquela primeira tarde e nas seguintes, na confeitaria. Por sua vez, ele espera ansioso o bater das quatro horas, para acalmar a vontade de novamente mirar seus olhos e suas mãos alvas e suaves. Desta vez armou-se da coragem de segui-la e de se apresentar formalmente no bebericar da fusão fumegante e no degustar dos biscoitos amanteigados.

Sua dúvida, que lhe perturba os arrojos românticos, é se ela, por seus trajes elegantes, joias e finos modos, revelando ser dama de família ilustre, aceitará conversar com estudante de pensão, vivendo de mesada parca e de alguns bicos de trabalho. Tudo isso envolto no contesto de uma sociedade fechada e etilista, dos idos de 1850 na Capital Imperial do Rio de Janeiro.

Assim inicia-se a “revelação” desse romance entre Antenor e Amélia, que se deixa levar num ritmo cada vez mais íntimo, através das tardes de chá, depois nos saraus seletos da sociedade carioca, culminando na presença dele quase que diária nos jantares da família dela.

As confidências entre os dois enamorados revelam que o pai de Amélia, filho do maior plantador de café da região de Vassouras, interior de Minas Gerais, tivera, quando jovem, um relacionamento proibido com uma professora do grupo escolar, nascendo dessa união Amélia. A família da moça, de fortes laços religiosos, a manda as pressas, sem a criança, que fica com o pai, para São Paulo para casa de parentes. A família paterna, por sua vez, para dar uma rápida satisfação à sociedade local e abafar os cochichos inconvenientes, casa o filho com uma pretendente de longa data, que passa a ser a mãe adotiva de Amélia.

As “revelações” prosseguem e Antenor fica curioso com alguns fatos que coincidem com o pouco que sabe da sua origem. Por exemplo, que sua mãe era professora de uma escola rural de Vassouras e que mudou-se para São Paulo para morar com uma tia onde conheceu seu pai, casou-se, e ele foi o primeiro dos três filhos. Interessante que quando perguntava a sua mãe sobre seus avós em Vassouras, mudava bruscamente a conversa e deixava transparecer um semblante triste. Ela falecera jovem, sem incentivá-lo a visitar seus avós que partiram sem ele os ter conhecido.

Foi então que as “revelações”, na eminência de uma união próxima, chegam aos ouvidos dos pais de Amélia que surpresos com os fatos que reconhecem verídicos, decretam a sentença amarga dos segredos:

“Impossível Prosseguir! São Irmãos da mesma mãe”!

A genética impediu assim o amor da maneira que desejavam. Se uniram no amor espiritual, que protege um ao outro na alegria e na dor, no conforto do abraço fraterno de irmãos amigos.


A vida escreve em círculos o final que o destino reservou...

De Chanel aos panos africanos - Ana Maria Pinto

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e Chanel aos panos africanos
Ana Maria Pinto



Quando Mariana foi fazer entrevista para emprego, na minha casa, estava bem vestida, cabelo com corte Chanel (só mais tarde percebi que era peruca),  afável e muito civilizada.

Foi contratada, fez bom serviço e todos gostavam dela. Entretanto a situação política foi-se alterando,  e Mariana deixou de usar peruca, passou a exibir sua cabeleira com trancinhas e a roupa deixou de ser de " executiva" para usar os panos africanos.

Mas,  como o serviço continuava bom, não era problema essa mudança. Assim nós inocentemente achávamos.

A situação política ia piorando dia a dia, mas nós ainda achávamos que  fosse transitório e em breve as coisas iriam melhorar.

Recebemos visitas, que vieram passar umas férias e que nos avisaram terem ouvido uma conversa da Mariana com alguém do partido, comentando que nos ia matar a todos.

O susto foi grande e a decisão complicada. Despedi-la seria uma temeridade, pois ela conhecia todos os nossos hábitos e seria até muito mais fácil matar-nos,  mas e o medo, o que fazer com ele ?

Entretanto o destino é caprichoso, e as coisas se resolveram de uma forma muito melhor do que qualquer resolução nossa.

Mariana adoeceu e teve que ser internada para fazer uma cirurgia complicada, demos todo o apoio e pedimos que ela não ficasse preocupada com o tempo de internamento, pois para nós não seria problema.

Entretanto saímos do país e o problema ficou resolvido sem mortes de parte a parte. Nunca soubemos o que foi feito dela, mas suspeitamos que tenha casado com alguém importante do partido.

Não há duvida de que quando as coisas não têm que acontecer, elas não acontecem, independentemente da nossa vontade.


O amor truncado - Fernando Braga


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O amor truncado
Fernando Braga

No outono de 1850 chegam a São Paulo, depois demorada e penosa viagem em carruagem, o fazendeiro Josias, mulher e duas filhas jovens. Era um fluminense que havia adquirido terras no Vale do Paraíba anos atrás, iniciara o cultivo do café e, tornara-se rico. Tinha uma grande e moderna casa colonial em sua fazenda, trezentos mil pés de café produzindo, onde trabalhavam cerca de 30 escravos, que viviam em senzala.

Neste ano, em quatro de setembro, havia sido promulgada a lei Eusébio de Queiroz, que extinguia o tráfico de escravos africanos para o Brasil e também passou a vigorar a chamada Lei das Terras, sancionada por Dom Pedro II , determinando os parâmetros e, normas sobre a posse pela compra em dinheiro vivo, manutenção, uso e comercialização das terras. Foi nesta ocasião que a população urbana ultrapassou a rural.

Pois bem, a família hospedou-se no Hotel Universal do francês Lefebvre, próximo ao Pátio do Colégio, onde se fazia lautas ceias, para pessoas abonadas. Carruagens passavam pelo centro da cidade, tomando a praça da Sé, rua Direita, Rua São Bento, e outras ruas próximas. Nesta época, a população não ultrapassava 50.000 habitantes. O Viaduto Santa Efigênia, precário, havia sido feito em 1827, bem diferente do atual   e com a Ponte do Lorena, permitiam a circulação para o outro lado do Vale do Anhangabaú. Havia ainda a Ponte do Açu que ia até a ladeira do Açu, futura Avenida São João, nome dado em homenagem a São João Batista, o protetor das águas.

 O fazendeiro Josias, veio a negócios relacionados ao café, um vez  que recentemente havia sido iniciado o plantio da rubiácea no oeste do estado, por fazendeiros paulistas, mais inseridos na dinâmica econômica do capitalismo.

 Neste ínterim, as três mulheres aproveitavam para se exercitar e conhecer, andando a pé pelas ruas e praças próximas. Uma tarde, saíram as duas irmãs, que seguindo pela rua São Bento, Libero Badaró, chegaram ao largo São Francisco, onde alguns estudantes da Faculdade de Direito estavam agrupados, cantando canções românticas da época. As duas moças se aproximaram e ficaram ouvindo, observando o animado grupo. Um deles trouxe duas cadeiras e polidamente pediu que se sentassem. Logo estavam entrosadas, cantando junto.

Destacava-se um jovem moreno, alto, porte atlético, bem vestido, que parecia chefiar o grupo e que não tirava os olhos de Luiza, a mais velha e mais bonita. Por sua vez, quando o viu, ela sentiu um impacto, aceleração em seu coração, uma sensação diferente, deliciosa, que nunca havia experimentado antes. Inexplicável! Seria amor à primeira vista?

O rapaz Alexandre, por sua vez não conseguia mais afastar seus olhos dela e os olhares passaram a se encontrar acintosamente. Sua irmã percebeu e quis se distanciar, mas Luzia insistiu em permanecerem um pouco mais. Após meia hora, o moço se aproximou e começaram a conversar. Ocorreu um entrosamento interessante e ele pediu para acompanha-las em sua volta, o que foi aceito. Levou-as até a porta do hotel e despediu-se, solicitando um novo encontro, o que foi acedido. Assim, decorreu três dias seguidos, sempre acompanhada pela irmã. Fizeram visitas aos pontos mais importantes da cidade.
 Foi quando pela primeira vez a tocou, pegando sua mão e foi correspondido. Em tão breve período, sentiu-se apaixonada, acreditando que o destino a havia colocado, com toda sua força, na frente daquele, que acreditava seria o amor de sua vida.

 Conversou com seus pais, que vendo o entusiasmo da filha, pediram para conhece-lo e convida-lo, para uma ceia no hotel. Foi uma reunião alegre, cerimoniosa, onde o pai de Luzia, jactancioso, falava muito de si, suas amizades, sua riqueza e de sua fazenda em Cunha.

Perguntaram a ele, quando iria se formar em Direito. Alexandre abaixou os olhos e disse calmamente que não era estudante da Faculdade, mas lá ia frequentemente quando estava de folga, tinha muitos amigos que lá estudavam, inclusive um irmão.  Disse que pertencia ao exército, onde era um sargento do chamado Exército de Linha, criado recentemente pelo Imperador, para proteger as fronteiras do país. Percebeu que os pais de Luzia sentiram um certo impacto com esta declaração.

Mais tarde, o pai conversou com Luzia sobre o trabalho do rapaz e pediu que se afastasse, que não continuasse o namorico.

Ela não conseguiu, seu coração falava forte demais, obnubilava sua mente e, tirá-lo de seu pensamento seria insuportável, impossível.

Antes de partir de regresso encontrou-se mais algumas vezes com Alexandre, beijaram-se, declararam amor eterno. Insistia em querer vê-lo novamente, o que seria muito difícil, quase impossível, moravam muito longe um do outro. Ela acreditava, em seu íntimo, que seus pais cederiam. Prometeram trocar cartas e acreditavam firmemente, que o destino iria pender para o lado deles.

No último dia, conseguindo encontrá-lo a sós, entregou-se totalmente. Era a primeira vez que cedia seu corpo, experimentava o sexo completo.

Não se arrependeu de nada o que fez. Tinha se entregue inteiramente àquele que amava. Tudo escondeu de sua família.

Regressou para a fazenda, e cada dia longe de seu amor era um verdadeiro pesadelo, tornou-se triste e pensativa, o que fora notado por todos em casa.
Aí aconteceu! Percebeu que estava grávida e teve que comunicar o fato à mãe, que imediatamente confidenciou ao pai. Ele ficou possesso, chegou a pensar em manda-la sair de casa, como não era raro naquela época, ou então, teria que casar-se com aquele irresponsável, que a havia enganado.

Quando recebeu a comunicação de Luzia, Alexandre ficou perdido, não sabendo o que fazer. Dinheiro era pouco, tinha seu compromisso no exército e a tropa que comandava. E ainda, surgiam notícias de que tropas argentinas de Uribe e Rosas ameaçavam países vizinhos e o Sul de nosso país. Pediu uns dias de licença e à cavalo dirigiu-se a Cunha para encontrar sua amada. Após três dias de viagem, enfim chegou a seu destino e não foi difícil encontrar a fazenda do famoso coronel Josias.
O encontro com Luzia f
oi indescritível, onde o amor imperou. Amavam-se de verdade verdadeira. Colocava-se inteiramente a seus pés, assumindo qualquer compromisso com sua amada.

O casamento teria que ser em tempo breve, antes que a sociedade percebesse o deslize da moça e assim, foi marcado para o início de fevereiro de 1851.

Foi quando veio comunicação do estado maior do exército que por ordem do imperador, tropas de São Paulo e Rio de Janeiro, deveria se reunir às tropas gaúchas para conter a investida do exército de Rosas, que após invadir o Paraguai e Uruguai estavam entrando no sul do Rio Grande. Estava se iniciando a Guerra do Prata.

Alexandre pretendia deixar o exército e ir trabalhar com seu sogro, conforme haviam combinado, mas nas circunstâncias presentes, corria o risco de ser considerado covarde e desertor. Impossível. Não tinha volta.

Em nova viagem cansativa, ela veio com seu pai até Santos para despedir-se de seu futuro esposo, que tomou o vapor em direção sul. 

O tempo decorreu, algumas cartas conseguiram chegar a seus destinos e já em 1952, próximo ao fim desta infame guerra, receberam um comunicado do exército que com pesar, queriam comunicar a morte do bravo tenente das forças paulistas Alexandre R. de Freitas, na realidade mais um, entre os trinta mil, que esta guerra ceifou.

E a vida continuou! Como tinha que continuar.

CONCURSO LITERÁRIO - SINDI-CLUBE

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CONCURSO LITERÁRIO - SINDI-CLUBE

CONTO - CRÔNICA OU POESIA

Vejam o regulamento no link abaixo.

Participe do Prêmio Nacional de Literatura dos Clubes!

Associados de clubes de todo o país, que gostam de escrever, estão convidados a participar do Prêmio Nacional de Literatura dos Clubes.
As inscrições vão de 29 de abril a 18 de agosto de 2017, para trabalhos de poesia, crônica e conto.
O concurso é uma iniciativa prevista no convênio firmado entre o Sindi-Clube e a Fenaclubes (Federação Nacional dos Clubes), que dá caráter nacional ao Prêmio Sindi-Clube/APL de Literatura, antes realizado apenas em São Paulo.
As condições exigidas para participar do Prêmio Nacional de Literatura dos Clubes podem ser consultadas no regulamento do concurso.
O Prêmio é feito em parceria com a Academia Paulista de Letras (APL), que formará uma comissão julgadora composta por especialistas em cada gênero literário para analisar os textos inscritos.
Os melhores colocados receberão prêmios de R$ 1.500,00, R$ 1.000,00 e R$ 500,00. O concurso permite a inscrição de uma obra inédita por participante e os temas dos trabalhos são de livre escolha.

Nasci, vive e aqui morrerei! -Angela Barros


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Nasci, vive e aqui morrerei!
Angela Barros

        Ao despertar naquela manhã Santiago sentiu as ondas do mar chicotear ferozmente os rochedos. O uivo do vento prenunciava um daqueles dias em que o frio gela até a alma. Agitada abanando o rabo, fazendo coro com o vento, a cadela Tetê avisa o dono que é hora de sair da cama.

        É no local conhecido como o fim do mundo, derradeiro pedaço de terra habitado antes da Antártica, o Cabo Horn que divide os oceanos Atlântico e Pacífico, que os dois vivem isolados tomando conta do pequeno farol local, cujo único meio de comunicação com o continente é por ondas de rádio.
       
        Santiago homem dos seus sessenta anos, cheira a fumo, tem os olhos embranquecidos pela catarata, cabelos e barba prateados, estatura mediana, atarracado mais forte. Herdou o posto de faroleiro do seu pai. Quando perguntam a quantos anos ele trabalha no farol ele responde que não lembra, trabalha ali desde que se conhece por gente ligando o farol ao anoitecer e desligando ao amanhecer.

        O faroleiro está muito doente e já foi comunicado que sua permanência no local chegou ao fim. Com o termino do verão, deverá embarcar no último navio que aportar na ilha. Depois disso, os ventos alcançarão cento e vinte quilômetros por hora, tornando impossível o aceso.  

        Golpes fortes na porta fazem Santiago pular da cama. Calma, já vou abrir! Dá de cara com um jovem com o rosto roxo, tilintando de frio. — — Entre, entre, vou lhe servir um café bem quente. Quieta Tetê, deixa o moço em paz.

   Obrigado senhor!
   Por Deus, o que você está fazendo aqui?
   Vim com o navio, sou jornalista de uma revista de São Paulo, escrevo sobre aventuras. Vamos voltar juntos para Ushuaia e quero muito entrevistar o senhor antes de voltar para o continente. Meu nome é Thiago, soube que será o último faroleiro a ficar no local antes de instalarem os novos equipamentos para monitoramento tecnológico no farol.
   Eu não quero saber de entrevista, tome seu café e me deixe em paz.

        O jornalista volta para o navio, sabe que tem pouco tempo antes dele zarpar de volta para a Argentina. Todos os dias fica perambulando em volta do farol vigiado de longe pelo faroleiro. Até que numa manhã quando faz suas andanças escuta o gemido da cadela ao lado do dono caído no chão com a cabeça ensanguentada. Corre para socorrer o homem que sob protesto de que não é nada de grave, aceita a ajuda.

        Thiago carrega o faroleiro até seu pequeno quarto no primeiro piso do farol, cuida do ferimento, um corte provocado pela queda. Olha em volta, o local é decorado franciscanamente apenas uma cama, mesa com uma cadeira, uma poltrona de pele de lhama e uma lareira salamandra de ferro fundido alimentada a carvão.

        Depois de reclamar bastante, o velho pergunta o que o jovem quer saber.

   Quero conhecer um pouco da sua vida aqui isolado do mundo durante tanto tempo, seu dia a dia, o porque de nunca ter saído daqui.

   Seu jornalista, não conheço outro tipo de vida. Minha infância foi passada aqui brincando em volta desse velho farol. No verão olhando pinguins, leões marinhos, baleias, focas e aves. Perdi minha mãe ainda criança, meu pai me ensinou tudo que sei. Quando ele morreu assumi seu posto.

   Como é o clima na ilha?

   No verão é frio e venta mas pode-se ver o azul imenso do mar casando-se com o do azul celeste do céu. No inverno acontece a união dos flocos de algodão que vem do alto com as ondas avassaladoras que se desmancham esbranquiçados batendo nas pedras. Em seguida vem os ventos, a neve, os glaciares. As aves e os animais marinhos migram para lugares cálidos. Eu e minha cadela já estamos acostumados, faça sol, chuva ou neve esse é nosso lar.

   Conte sobre as tempestades que costumam assombrar essa região.

   Moço, não foram poucas as vezes que ondas gigantes abraçaram esse farol a ponto de ser engolido. Aqui os ventos sopram furiosos o que provoca a diminuição da profundidade do mar para depois formar ondas de oito metros de altura. Mas, já vi ondas de trinta metros! Muitas vezes precisei amarrar meu corpo com uma corda, aquela ali, para trocar as lâmpadas do farol, já cheguei a ficar pendurado algumas vezes, mas como pode ver sobrevivi.

   E quanto a solidão? Nunca quis casar, ter filhos?

   Quem moraria comigo nesse fim de mundo? Minha mãe não aguentou, foi definhando aos poucos até adoecer e morrer. Estou bem aqui com minha companheira Tetê que perdeu também seus pais e irmãos. Nós dois ficamos rabugentos e sozinhos. Não sei quem vai primeiro dessa para a melhor, eu ou ela.

   Posso tirar uma foto de vocês?

   Melhor não moço.

        E assim Thiago conseguiu fazer sua entrevista. Como faltava ainda dois dias para o navio içar a âncora continuou visitando o velho que passou a gostar da sua companhia.

        No dia da partida o jornalista vai até o faroleiro perguntar se precisa de ajuda com sua bagagem. Chegando lá bate na porta, nada. Espera um pouco, silêncio, nem mesmo o latido da cadela se escuta. Estranho, pensa. Uma lufada de vento abre a porta, ele entra no pequeno lar do faroleiro, ninguém. Sai, olha em volta.

   Santiago! Santiago! - grita.

        Resolve voltar para o navio quem sabe eles se desencontraram e o velho já está lá? Anda pelo convés da embarcação, vai até a cabine de comando, a casa de máquinas, o restaurante. Não, ninguém viu o faroleiro.

Nisso escuta o disparo do apito indicando a todos que o navio vai iniciar as manobras de desatracação dentro de instantes

        O jornalista pede para esperarem mais um pouco, pergunta se pode voltar para tentar encontrar o velho. Quem sabe sofreu algum acidente outra vez.

   Impossível, responde o comandante, devemos partir agora, aproxima-se uma tempestade, a névoa está baixando cada vez mais o que tornará nossa saída cada vez mais difícil.

Thiago se lembra da última conversa com Santiago:”Eles acham mesmo que eu vou embora? Essa ilha é o meu lar, não conheço nada no continente, não tem ninguém me esperando, estou velho para começar uma vida nova. Do que adiante uma casa montada para viver o resto dos meus dias? Quem vai tomar conta de mim na velhice? Não, eu não saio daqui! Só morto!” .E o jovem jornalista teme pelo pior.

        Devagar o navio inicia sua jornada. Thiago no convés aproveita o ambiente fantasmagórico do oceano naquele instante para fazer as últimas imagens do local,  quando de repente o obturador da sua máquina fotográfica detecta algo inesperado. Santiago e sua cadela estão no alto de um penhasco acenando para o navio.

         

O FAROLEIRO FORASTEIRO - Maria Luiza Malina

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O FAROLEIRO FORASTEIRO                                                                          
Maria Luiza Malina

As madrugas incertas de noites escuras e precários equipamentos de bordo nos navios a vapor, aterrorizavam alguns marujos no aproximar de tempestades. Entre os náufragos nem todos se salvavam e, seguiam o próprio rumo.

Sam apenas Sam. Um solitário faroleiro aportado em 1873 na costa brasileira. De jeito rude pertencia à embarcação naufragada há poucos dias no litoral salvadorenho, trajava roupas de inverno rigoroso. Longo capote, camiseta listrada, um grande chapéu de couro desgastado lhe cobria a cabeça e as costas, algo estranho para o calor brasileiro; indumentária realçada com o gasto cachimbo, no lado esquerdo da boca, de ponta amarelada da cor dos poucos dentes que lhe restavam. Seu humor variava com a lua que, influencia nas marés. Mesmo assim poucas vezes era visto na região.

Na praia de Itapuã, com restos devolvidos pela maré e palhas de sapé, ergueu uma torre em dois andares; passava os dias olhando o horizonte procurando as lembranças submergidas ao observar os jangadeiros. Nas noites, a parca lanterna clareava a areia, sendo avistada ao longe pelos pescadores que no retorno o presenteavam com um peixe, pois acreditavam que ele os acompanhava na jornada, trazendo abundância na rede. Sobrevivia calado. Por vezes os ajudava no arrastão ou na companhia ao boteco a beira mar ouvindo berimbau. Jamais interferia em algum jogo caipira de dados, facada de pescada ou torneio de pinga. Rumores corriam por conta do farol improvisado por ele; local do Farol de Itapuã. Era gente boa, diziam.

O forte cheiro do tabaco marcava sua presença. Não se sabia a origem do bom fumo. De uma forma um tanto esquisita, certa manhã encontraram o cachimbo sobre no bar. Uns diziam que ele evaporou, outros que construiu uma jangada e saiu mar a fora. Outros que, deixou de fumar e que não davam um mês para reaparecer. Este mês jamais aconteceu. Era gente boa diziam.


Foi imortalizado por um artesão tal qual era em vida, magro, alto, com seu capote escuro, camisa listrada, de olhos azuis de um vazio terrível e distante, com o cachimbo na boca. Esculpido em madeira, pedra sabão, e no que mais inventassem, tornou-se uma lenda de forma que, ao se colocar fumo em seu cachimbo, este aceso trará boa sorte e vida longa – dizem que é possível ouvir o barulho de gaivotas enquanto a fumaça se envolve pelo ar. Era gente boa diziam.

INFIDELIDADE À PROVA - Sérgio Dalla Vecchia


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INFIDELIDADE À PROVA
Sérgio Dalla Vecchia

Felipe Gomes era um rapaz bem-apessoado. Pertencia ao corpo da guarda especial de D. Pedro I, então imperador do Brasil.

O imperador mantinha um caso de extrema paixão com Domitila, mulher separada de um alferes, com quem teve três filhos.

Para agradá-la concedeu-lhe o título de Marquesa de Santos, aproveitando a ocasião para provocar José Bonifácio, que pertencia a uma família santista. Ele era considerado um inimigo político e adversário de Domitila.

Em 1827, presenteou-a também com um belo casarão nas proximidades da sua antiga casa, hoje Museu Nacional do Rio de Janeiro.

Dos seus aposentos, D. Pedro I podia avistar o casarão, pois ciumento que era, tentava controlar a vida da sua amada.

Entretanto o ciúme o corroía, tamanha era a paixão por Titila (era assim que carinhosamente a tratava).

Inseguro da sua fidelidade, chamou o guarda Felipe Gomes à sala imperial e deu-lhe a incumbência de se infiltrar no casarão de Domitila e espionar os seus atos.

Assim o fez Felipe, com muito jeito e simpatia, logo foi conquistando as damas da casa.

Com a amizade e confiança adquiridos em meio a corte, não foi difícil insinuar sobre possíveis atos de infidelidade.

Insinuou por várias ocasiões, mas as respostas eram unânimes em relatar a ilibada conduta da Marquesa.

O sucesso de Felipe na corte era notável, era assunto em todas as rodas das conversas femininas.

Tanto era o falatório que Domitila quis saber com as moças, o porquê de tanto assanhamento.

Logo soube dos predicados do jovem guarda e o convidou para uma conversa em seus aposentos.

Felipe bateu à porta, que logo foi aberta por Domitila. Ela estava linda e os olhares recíprocos foram fulminantes. Iniciaram um romance instantâneo e voraz. Foi a única traição da Marquesa, desde que havia se apaixonado pelo Imperador.

Assim na ânsia de se precaver de uma traição, o galante Imperador acabou dando mais um grande mimo à Titila.

O melhor homem da guarda imperial!


O GLAMOUR E O LIXO - Sérgio Dalla Vecchia


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O GLAMOUR E O LIXO
Sérgio Dalla Vecchia

Rio de Janeiro ano de 1850, início da chamada era Mauá e também a do Império da boa sociedade.

Os investimentos foram abundantes no mercado financeiro e no setor industrial. Havia construções de estradas de ferro, iluminação a gás nas ruas, calçamento com paralelepípedos, implantação de redes de água e esgoto e também o início do transporte público feito por bondes com tração animal.

Por outro lado, a era do Império da boa sociedade fez jus a esse título pela quantidade de festas e bailes de gala que havia. O grande modelo foi a importação da moda e costumes de Paris, da época de Napoleão III, com seu neoclassicismo e aburguesamento dos padrões de costumes.

A rua do Ouvidor representava bem o estilo característico dos bulevares parisienses, lojas chiques, doceiras charmosas, charutarias, perfumarias, chapelaria e tantas outras ofertas para atender ao ávido consumo do glamour.
Filó ocupava uma das mesas de uma famosa doceira na Rua do Ouvidor saboreando uma fatia de um mil folhas, acompanhado de um chá inglês. Entre um gole e outro, ela reparou na presença de um homem elegante, sentado à mesa ao lado.

Giuliano também havia notado a presença dela. Não demorou muito para que os olhares se encontrassem, uma, duas e três vezes, surgindo um sorriso mútuo e logo em seguida uma animada conversa.  

Ele era um imigrante italiano de São Paulo, falava um português muito engraçado, pois abolia os esses das palavras e Filó pelo contrário, forçava-os como os portugueses o faziam. 

Os dois se divertiam com os recíprocos sotaques.

O amor foi crescendo e já falavam em casamento. Chegara a hora de Giuliano pedir a mão de Filó. O dia foi marcado e um belo jantar o esperava.

O galante italiano levou um buquê de rosas vermelhas para a mãe e um outro de rosas brancas para a sua amada.

O jantar foi servido e a conversa era boa, até que o pai perguntou ao Giuliano no que ele trabalhava. Fato que até então era desconhecido por todos.

Tenho dez carroções e transporto lixo urbano. Portanto sou um lixeiro e muito me orgulho, pois tudo o que possuo fui eu que adquiri, e tenho posses.

O espanto foi geral! Como uma moça da aristocracia como Filó poderia se casar com um lixeiro?

Para o desencanto de todos, o pai indignado não atendeu ao pedido.

Giuliano retirou-se abatido e muito humilhado. Não entendia o porquê.

Entretanto, por amar demais Filó, resolveu fazer mais uma tentativa.

Mandou os seus lixeiros não mais recolherem o lixo da casa do futuro sogro.

Após uma semana o mal cheiro e o volume de lixo imenso, o pai desesperado saiu a procura de Giuliano e lhe concedeu a mão da filha em troca da volta da coleta do seu lixo.

O casamento aconteceu e foram felizes, mesmo convivendo com a diferença de sotaques e de classe aristocrática.


Um completou o outro!