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Acontecimento desagradável - Fernando Braga


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Acontecimento desagradável
Fernando Braga

       Às vezes ocorrem alguns fatos que causam muita atribulação na vida de um médico. Osvaldo José, neurocirurgião, internava a maioria de seus casos particulares, em dos melhores hospitais da capital paulista, para garantir-lhes o melhor atendimento particular.

Certa ocasião, há muitos anos, internou um paciente que havia sofrido uma hemorragia subaracnóide ou meníngea, cuja ocorre, na maioria dos casos, pela ruptura de um aneurisma intracraniano. Foram feitos todos os exames incluindo a angiografia cerebral, que realmente definiu a presença de um aneurisma no sistema da artéria comunicante anterior, um desses locais com cirurgia sujeita a complicações. Para não dar chances ao azar, um novo sangramento, que geralmente ocorre nos três primeiros dias após a hemorragia inicial, a cirurgia foi marcada para o mesmo dia, com início às 22 horas. Após feita a abertura do crânio e da membrana que envolve o cérebro (duramater), o mesmo estava inchado. Imediatamente foi solicitado um trocáter ventricular, pequeno tubo metálico que passando através da massa encefálica atinge o ventrículo lateral, cheio de liquido cefalorraquiano (liquor). A retirada de uns 20 a 30ml deste  liquor faz com que o cérebro diminua de volume, comece a pulsar melhor, permitindo continuar a cirurgia. A peça solicitada, já deveria estar presente na sala, mas não foi encontrada e a atendente saiu para busca-la na sala de material cirúrgico. Passaram-se 10 minutos e nada, a atendente não aparecia. O cirurgião teve que colocar algodões sobre o cérebro e pressiona-lo com as mãos, para que o cérebro não inchasse mais e começasse a sair fora da abertura da craniotomia. Deixou o assistente pressionando o cérebro e saiu em busca da atendente, ver o que estava acontecendo. No final do corredor, que estava todo vazio, entrou na sala de material e lá viu duas moças, conversando, segurando uma prancheta com lista de materiais, calmamente indecisas. Osvaldo José penetrou na sala e as duas continuaram calmamente a consultar a lista, sem saber do que se tratava a peça solicitada. Vendo a calma e despreocupação de ambas, o cirurgião deu um tapa na mão de uma delas e disse:

— Me arrumem logo esta peça. É urgente, o cérebro está inchando! O doente pode morrer! Com o tapa na mão, a prancheta caiu no chão, a moça virou um bofete no rosto do médico  saindo do recinto. A outra, que já havia subido em uma escada, pegou uma caixinha de metal e perguntou se era aquilo o que queria. E era.

       Voltou rapidamente à sala cirúrgica, puncionou o ventrículo, o cérebro baixou, continuou a cirurgia e com muito êxito, clipou o aneurisma. O paciente acordou muito bem logo após o termino, e foi encaminhado à UTI. De volta para casa ele relembrou o episódio e o tapa que levara no rosto. Pensou em dar queixa da funcionaria.

       No dia seguinte foi visitar o paciente, que estava ótimo e sem qualquer alteração neurológica. Ficou tão satisfeito com o resultado que desistiu de se queixar da moça. No dia seguinte encontrou um colega que disse: Estão dizendo que você bateu em uma moça do centro cirúrgico?

        Naquele mesmo dia telefonou para internar outro paciente e quando referiu seu nome, a internação disse que por enquanto ele não poderia mais internar doentes naquele nosocômio.  Saiu, foi ao Hospital, direto à sala da diretoria.

        Frente ao diretor perguntou:

— O que aconteceu?

       — Estão dizendo que você agrediu uma moça do centro cirúrgico.

       — Pois vou te contar exatamente, o que aconteceu. Contou detalhadamente os fatos.

        O diretor disse:

— Mas, você foi o primeiro a levantar a mão e quem levanta a mão primeiro, perde a razão.

       — Veja bem caro diretor, se eu estivesse aqui, conversando consigo e entrasse um louco armado querendo mata-lo e eu lhe desse uma paulada na cabeça, alguém teria a coragem de me condenar?

E continuou:
       — Querido diretor, disse muito irritado, você não entendeu? —Dei-lhe um tapa na mão, pois fiquei possesso com a indiferença, morosidade daquelas duas incompetentes. O paciente poderia complicar muito.

       — Como é que um Hospital desta categoria tem coragem de colocar na sala cirúrgica, ignorantes, ineptas, inexperientes, obtusas, que não sabem nem o que é um trocáter de ventrículo? E que hospital é este que não tem trocáter ventricular no centro cirúrgico?

Respirou:

— O meu paciente estava em risco de vida. Entendeu?

       O diretor voltou a dizer:

— Acho que você deve ir à delegacia aqui próxima, pois a moça foi dar queixa e fez exame de corpo de delito.  Se eu fosse você, ia até lá e dava um dinheirinho para os guardas. Além disso, esta questão está agora com a Comissão de Ética, não comigo.

— O que? Você me propondo isto? Aonde chegamos hein? Não sou de subornar ninguém, Diretor. O senhor fala de ética e me manda subornar alguém? Minha ética não permite nada disso.

E prosseguiu:

— Vou fazer a coisa pegar fogo! Vou arranjar um advogado e abrir um processo contra o hospital e a Comissão de Ética, que me suspendeu sem ter primeiro me ouvido. Ou, melhor ainda, vou agora mesmo, comunicar tudo a meu paciente, que está para ter alta e que é um indivíduo bem conhecido, dono da maior produtora de suco de laranja do país.  Explicando a ele, sei que vai entender o que fiz para protegê-lo e vai até pagar por um bom advogado. Passem bem!  

 Logo depois liga o diretor dizendo.

— Pode deixar que já resolvemos tudo na delegacia. A moça foi suspensa temporariamente e vou conversar com a Comissão de Ética, explicar melhor!

— Façam o que quiserem! Não interno mais pacientes aí.

Poucos dias após, recebeu uma carta dizendo da unanimidade da Comissão, favoráveis a ele.   E pedindo desculpas pelo sucedido.

— Fazemos questão que você continue internando seus pacientes aqui e mais uma vez nos perdoe. Foi um grande mal entendido!

Nada disso abalou Osvaldo José que continua sendo um  grande cirurgião, e ainda mais procurado agora que seu paciente tomou conhecimento do caso através de terceiros, e pela ética e profissionalismo que demonstrou ter ao decidir não comunicar nada a ninguém e salvar o paciente em detrimento à educação, passou a ser indicado aos tantos outros figurões industriais que lotam sua agenda. Apesar de não ter levando adiante o atrito com o hospital, tomou por regra não mais internar seus pacientes ali.

Ética é a parte da filosofia responsável pela investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo especialmente a respeito da essência das normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer realidade social. E vale tanto para médicos, como para enfermeiros e até mesmo para hospitais.


Osvaldo José guarda a carta do Diretor do hospital até hoje. Sua integridade está mantida.

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