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LEITES DERRAMAM MESMO! - Silvia Helena de Ávila

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LEITES DERRAMAM MESMO!
Silvia Helena de Ávila

Gregório é meu irmão, um cara muito sociável, sobra-lhe desenvoltura. Ele é daqueles que se voluntariam pra cantar nas festas, pra ser orador em formaturas,  (desde o ginásio, colegial e faculdade  vem sendo o orador), adora falar em público em quaisquer circunstâncias, aliás, eu acho que ele fala demais. E como dizia minha avó  "um pouco de cerimônia não faz mal a ninguém".  Embora eu ache que isso não se aplica a ele.

Mas sejamos justos, ele é muito simpático mesmo, e bonito! Só que faz uso destes dons pra se dar bem na vida e isso me aborrece. Toda vez que saímos juntos é como se eu fizesse parte de um séquito de admiradores. Ou bajuladores, às vezes eu acho que são bajuladores mesmo. Poxa, todo mundo em volta dele, não sei como ele consegue dar atenção pra todos. E  consegue, vai das meninas, aos mais velhos, até crianças parece que ele cativa. A vovó mesmo é sua fã, apesar de achar que às vezes ele exagera.

Eu canso de avisá-lo: 

— Cuidado! Não é todo mundo que se deixa encantar por suas piadinhas, você sempre termina a conversa com um tapinha nas costas! Tenho que admitir que termina com um baita sorriso também.  Ele nem dá atenção aos meus conselhos, na verdade, sorri com aquele jeito superior pra mim também, parece que ele sabe de algo que não sei, ai que raiva!!

Gregório acorda cedo, corre cinco quilômetros toda manhã, toma banho, café, e vai pra o escritório.  Tem um emprego legal, se veste bem, comprou seu primeiro carro,  na vida dele as coisas parecem sempre dar certo.  Sai bastante à noite, festas, casa de amigos, até com o pessoal do prédio que eu acho meio chato. Minha avó brinca que ele está no auge!!

Certa vez, foi ao Guarujá com amigos para uma balada no Café de la Musique. Eu conheço os amigos, são meus amigos também, só não fui porque... por que mesmo? Ah! Não lembro, senão estaria lá com eles. Enfim, nas boates, mesmo com luzes piscando, som alto, vapor de gelo, Gregório sempre acha logo as meninas mais interessantes e o pior, é logo perseguido por elas. Pois é, parece perseguição mesmo quando elas dão em cima dele.

Só que desta vez foi diferente. Uma dessas meninas perguntou se ele tinha maconha, ele, besta de tudo, respondeu que sim e foram fumar na varanda. Acho que em casa nunca sonharam que ele fumasse, mas era só de vez em quando, disso sou testemunha. Acontece que a moça era uma delegada à paisana e alegou que a quantidade que ele tinha caracterizava tráfico. Resultado? Foi para a delegacia. E os colegas não puderam acompanhá-lo, ou não quiseram, sei lá.

Na delegacia ele pensou que seu jeito brincalhão fosse "colar". Passou o braço nas costas da moça, fez uma piadinha para o investigador, sorriu para o delegado, pegou muito mal. Ai o velho Gregório entra em ação... eu bem que avisei, esse jeito não cai bem. Quanto mais ele tentava quebrar a formalidade do depoimento buscando com sua estratégia de sorrisos e brincadeiras, mais ele se enroscava sem saber.


Foi enquadrado! Passou a noite na cela da delegacia, meus pais foram chamados e o processo longo começou. Bom, uma hora isso tinha que acontecer, não adianta chorar sobre a droga encontrada.

É Santa, ou não é? - Angela Barros




É Santa, ou não é?
Angela Barros

      Você sabe a diferença entre turista e viajante? Turista é aquela pessoa que visita os pontos famosos das cidades que visita. Viajante foge dos roteiros turísticos tradicionais. Eu sou uma viajante a procura de lugares desconhecido do grande público


      Em janeiro de 2010, parti para mais uma viagem. Dessa vez meu destino era o Parque Nacional Talampaya, deserto vermelho formado por paredões de cento e cinquenta metros de altura, localizado no centro-oeste da província de La Rioja, Argentina.



Foi assim que ao anoitecer de um dia de verão cheguei na cidade de San Agustín Fértil,  a cerca de setenta quilômetros do parque. Cansada da viagem, assim que cheguei no hotel tomei um banho, desci até o restaurante para comer algo, e me joguei na cama.

      Sete horas em ponto da manhã seguinte toca o telefone, sem saber onde estava, atendo. Senhora, seu guia está aguardando! Pulo da cama, coloco o que seria meu uniforme pelos próximos dias, camiseta, bermuda, chapéu e tênis.  Tomo meu café da manhã correndo e parto ao encontro do Sr. Juan, que pede desculpas pelo horário e explica: depois das onze horas da manhã é impossível caminhar no parque, o calor tornase insuportável. E assim, fomos rumo ao parque.

      Depois de duas horas de visita, apesar de apenas pararmos nos lugares principais,  eu estava sedenta. O que achei exagero do Juan, logo prova-se verdade. O sol inclemente parece captar água no nosso corpo. Minha língua parece não caber na boca de tão seca. Com certeza meu experiente guia trouxe água num isopor com muito gelo no porta malas do carro.  Sr. Juan estou morrendo de sede, o senhor trouxe água, né? Não senhora, responde o maledeto. Vamos passar por algum lugar onde eu possa comprar? Não, senhora! E assim, depois de quatro horas percorrendo as maravilhas do parque, desidratada, volto para o hotel.

      Água, água, é só o que consigo balbuciar, caindo sentada na primeira poltrona que vejo. Depois de sentir a língua voltar a caber dentro da boca. Subo para o quarto. Tomo uma demorada ducha. Saio à procura de um restaurante para almoçar. Era cerca de meio dia. Logo percebo algo estranho, as ruas estão desertas, os restaurantes vazios. Sinto o suor escorrer pelo rosto, minha camiseta cola no corpo.

      Mais uma vez minha boca seca, olho em volta, nenhuma barraquinha com água para vender.  Arrasto-me de volta ao hotel. O recepcionista com um sorrisinho maroto no rosto diz: pois é madame, aqui por essas bandas entre meio dia e seis horas da tarde a melhor coisa a fazer é dormir. Dormir? Pergunto o que tem na cidade para conhecer além do parque, e ele responde: nada! Decido naquele instante: Aqui não continuo. Ligo para o meu guia, peço que providencie um carro com motorista, quero chegar em Mendonça o mais rápido possível. 

        Às catorze horas já estou na estrada com o Sr. Domingues, homem jovem, mas pelas  crateras que marcam seu rosto, parece um velho. Conversa vai, conversa vem, ele pergunta se eu gostaria de conhecer o santuário da Defunta Correa, Santuário de Vallecito

      Diz a lenda conta o homem que em 1840 a Argentina passou por uma terrível guerra civil entre os brancos descendentes de espanhóis e os poucos indígenas que ainda restavam no país. Deolinda Correa, não se conforma com o recrutamento do marido para a guerra e decidi segui-lo, levando nos braços o filho recém-nascido. Ao chegar na região do deserto próxima à província de San Juan, os mantimentos e a água da jovem mãe acabam e ela morre. O filho sobrevive bebendo o leite materno.

      Ao encontrar o bebê mamando no seio da mãe morta, o fenômeno é considerado o primeiro milagre da Defunta Correa. No lugar onde o corpo foi encontrado é construído um pequeno altar.

Com o tempo, o altar passa a ser visitado por todos que passam na estrada e transforma-se no Santuário Vallecito. Além disso, ao longo de outras estradas do país, os devotos constroem pequenos altares, nos quais os fiéis levam garrafas cheias d'água para oferecer a defunta. Defunto toma água?



      Apesar de ser considerada santa para seus devotos, a igreja católica considera o culto a defunta uma superstição. 

E agora, Papa Francisco? A defunta milagrosa do seu país, é ou não é Santa?


Sevilhana - Ises de Almeida Abrahamsohn



Sevilhana
Ises de Almeida Abrahamsohn


Eu herdei o nome de minha bisavó materna. Sou Carmen e como vocês podem ter imaginado a minha ancestral era espanhola. Não era cigana e nem destruidora de corações. Tinha apenas em comum com a personagem da ópera o fato de ter nascido na Andaluzia e saber dançar flamenco. No mais era absolutamente convencional. Tinha dezessete anos quando chegou  a São Paulo no inicio do século XX e logo se adaptou à nova terra. Casou-se com português, teve cinco filhos e uma vida corriqueira de família de classe média esforçada.  

Falava-se português, comia-se cozinha portuguesa ou brasileira e as crianças frequentavam a escola publica do bairro.  A única conexão que Carmen fazia questão de manter com a sua adorada Andaluzia era o flamenco e as inseparáveis castanholas.  Ensinou a sedutora dança às duas filhas e uma delas, minha avó, tentou ensinar minha mãe, porém sem sucesso. Quando eu tinha sete anos fui visitar a bisa Carmen pela última vez antes dela falecer. Solenemente me pegou pela mão e me mostrou o par de castanholas sob uma redoma. Foi assim que meu me interessei e aprendi flamenco. A bisa me fez prometer:

 ̶  Quando eu morrer quero que as castanholas sejam colocadas no meu caixão. E assim foi feito. Eu vou visitar seu túmulo no cemitério da Consolação uma vez por ano. Os funcionários que cuidam da sepultura sempre me lançam olhares desconfiados. Acho muito estranho, e na semana passada quando estive lá resolvi perguntar a razão.

  ̶  Dona Carmen, é que em março e, às vezes, em abril ouve-se  vindo de dentro do jazigo um som que parece um estalar de madeiras, mas estranho e ritmado, disse-me o encarregado.

Lembrei-me das castanholas da bisa, mas atribuí o ruído descrito aos galhos  das árvores antigas quebrando-se sob o vento de outono. Mas fiquei intrigada e  na internet e aprendi que é nessa época que se realiza anualmente a famosa Feria de Sevilha com “manzanilla, tapeos e el baile, con el cante, con el arte de ser andaluz y sevillano”.


A lenda dos pássaros cegos - Suzana da Cunha Lima


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A lenda dos pássaros cegos
Suzana da Cunha Lima

Estivemos no Chile há uns dez anos.  Numa de nossas andanças, encontramos uma peça artística muito bonita numa pequena, porém sofisticada loja. Dizia o dono que tudo ali exposto era trabalho exclusivo, de artistas da região.  O nosso era  um semicírculo de  aço, as pontas soltas para baixo . Em cada ponta estava preso  um galo confeccionado com chapas de cobre, tanto em sua cor natural quanto escurecida, formando um lindo contraste. Eles estavam virados para uma rosácea  de oito pontas, sendo que o miolo era preenchido com pequenas e coloridas pedras, semelhante ao corpo dos pássaros. Enfim, um trabalho raro e muito belo.

Porém, não sei  a razão, eu não me sentia bem olhando para eles. Os olhinhos eram de pedra verde e, de vez em quando, eu notava que mudavam de cor, ficavam escuros.  Meu marido não deu muita atenção, mas eu observei que, quando tínhamos algum problema em casa, principalmente financeiro, era a ocasião que os olhos dos pássaros escureciam.  Meu marido achava que era uma questão de luz e não deu maior importância até que...

Eu fui ao  consulado do Chile para pedir informação sobre esta peça e levei até a foto. Qual não foi a minha surpresa quando eles explicaram que os pássaros ali representados eram excelentes cantores.  Houve um tempo que eram aprisionados em gaiolas para o deleite de seus moradores, pois seu canto era extraordinariamente melodioso.  E a cor dos olhos, perguntei? Então a secretária do cônsul  me contou a lenda dos pássaros cegos.   Os índios furavam seus olhos, porque assim eles cantavam melhor. Mas repararam que sempre acontecia alguma desgraça à família que mantinha este pássaro preso e cego.
Então não os aprisionaram mais para suas residências, porém, como a demanda pelos turistas fosse enorme e eles precisassem de dinheiro, vendiam os pássaros com uma venda nos olhos, informando que só retirassem a venda quando chegassem em casa.  Mas nenhuma família era feliz com estes pássaros presos, mesmo que não fossem cegos.  Afinal a maldição se espalhou e a procura terminou. Até que acabaram extintos, pois não se reproduziam em cativeiro. E então, os artistas os replicaram em qualquer material, sendo o cobre a opção mais elegante e bonita.

E a mudança dos olhos nos meus, que eram de cobre, não eram vivos? Perguntei.

-  Os espíritos das florestas se apossam de  qualquer imagem destes pássaros, vivos ou em imagens ou escultura. – disse-me ela. -  E são espíritos  vingativos. Não se conformam com sua extinção, fruto da ganância e desrespeito à natureza, por parte dos humanos.  Aqui no Chile ninguém tem nada que se assemelhe às figuras destes pássaros.  Sempre acontece algo de ruim a quem os possui. E isso se reflete na cor dos olhos deles, como na sua peça. Ninguém tem explicação para isso. Quem conhece os mistérios da natureza?

Assim, embora fosse um belíssimo trabalho artístico, nós o penduramos nos galhos de uma árvore no Parque da Cantareira.


E notamos que as coisas em casa começaram a melhorar. Coincidência?

Sophia - Angela Barros

        
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Sophia
Angela Barros    
       

Marcos Pereira um homem de cinquenta e cinco anos, escritor, divorciado, bonitão ainda, mas sem nenhum relacionamento fixo no momento, estava dando um tempo na sua vida amorosa. Seu caso com a Claudia não tinha acabado bem e não queria ficar de quatro como ficou por ela, para depois escutar que seria trocado por outro.

        Pode-se dizer, estava num momento tranquilo da vida. Sem dívidas,  apartamento próprio, contrato fechado para mais dois livros, a única coisa que precisava se preocupar era com o pé de meia necessário para enfrentar a velhice sem precisar de ninguém.

        Porém, o primeiro livro que ele já deveria ter entregue para revisão estava empacado. Há duas semanas estava em crise de abstinência criativa, a mente estava oca, como se ele estivesse entrado num túnel  escuro e vagasse sem rumo ao nada.

        Estava absorto em seus pensamentos quando o telefone toca. Era  Jorge, também escritor, querendo saber notícias do novo livro. Marcos conta sobre o bloqueio que o afetou, e o colega do outro lado da linha explica que esses lapsos de criatividade já tinham ocorrido com ele.

        - A solução, é isolamento, você precisa mudar de ares, vá para uma praia, saia da rotina dessa cidade. Lembra do Antonio, o romancista nobre e pobre? Ele tem uma casa de praia que herdou da família e está sempre a procura de alguém para alugar. Como vive sem dinheiro costuma cobrar um preço bem camarada.

        Marcos decide aceitar o conselho.

        Tudo acertado com o dono da casa para um final de semana prolongado, às quatorze horas de uma quinta-feira, sai de casa rumo a praia do Portinho da Arrábida, que fica dentro do Parque Nacional da Serra da Arrábida, com suas areias brancas e água do mar em tons de azul turquesa, rodeada por uma vegetação verdejante, cenário ideal para um escritor a procura de sossego.

        Já está escurecendo quando chega ao vilarejo próximo a casa. Como foi orientado se dirige ao Restaurante Ribeirinha do Sado, lugar simples, onde poderá pegar as chaves da casa, comprar mantimentos e fazer as refeições, se assim desejar. É atendido por Dona Laura, dona e cozinheira do pequeno estabelecimento.

        Enquanto atende o cliente, Dona Laura, senhora na casa dos oitenta anos, um metro e cinquenta mais ou menos, toda vestida de preto, lenço na cabeça, rosto enrugado, de pálpebras tão caídas que mal dava para ver os agitados olhinhos pretos, adverte o moço a ficar hospedado na Estalagem Quinta das Torres, lá com certeza ele dormirá bem melhor, nada de mal vai lhe acontecer.

        Por quê? Pergunta o escritor. Você não sabe? A última família que se hospedou naquela casa desapareceu, não sobrou ninguém para contar a história. A polícia local investigou durante semanas o sumiço da família. Na verdade, era um casal. Não conseguiram desvendar o mistério. Deste aquele dia, nem mesmo os donos apareceram por estas redondezas. Todo o vilarejo sabe que aquela casa é amaldiçoada. Por favor moço, não vá para lá.

        Pereira agradeceu os alertas da velha senhora e seguiu rumo a casa que de longe se avistava no alto de um penhasco. Percorreu na semi-escuridão, uma estradinha costeira, de onde podia-se escutar o lamento das ondas batendo na encosta.

        Depois de cerca de meia hora, finalmente estava de frente a um portão de ferro enferrujado, trancado por um cadeado no mesmo estado. Procurou no molho de chaves a que deveria abri-lo, logo na primeira tentativa o cadeado abriu. Pela frente ainda teria alguns metros para a entrada do casarão.

        Estacionou o carro, acendeu a lanterna do celular para enxergar a fechadura da porta, que ao ser aberta, rangeu na escuridão e um forte odor de mofo entrou pelas suas narinas deixando-o zonzo. Entrou, tateou a parede a procura de um interruptor para acender as luzes, nada. Como a bateria do celular estava quase no fim, tratou de achar alguma vela. Por sorte, logo encontrou um pacote de velas e uma caixa de fósforo. Subiu os degraus que levava até os quartos, percebeu que a cama estava arrumada, o banheiro limpo, graças a Deus, suspirou aliviado. Retirou da mala o pijama, jogou-se na cama exausto e dormiu.

        No meio da noite, como naqueles pesadelos que a gente não sabe se esta dormindo, sonhando ou acordado, escutou passos dentro do quarto, teve a sensação de que alguém o observava, num pulo sai da cama e pergunta, quem está aí? Não obteve resposta. Tenta enxergar algo na escuridão mas, não consegue ver nada. Nisso uma lufada de vento gelado abre as janelas do quarto. Ele corre e fecha as pesadas venezianas. Depois de algum tempo acordado, agitado volta a dormir um sono cheio de pesadelos.

        Desperta pela manhã com barulhos no andar de baixo da casa. Desce devagar os degraus, pega um castiçal que encontra numa mesa e vai em direção ao que parece ser a cozinha, abre a porta bem devagar, pronto para atacar o invasor. Quando já está preste a dar o golpe, ouve um grito de mulher que sai correndo para a outra extremidade do ambiente. Meu Deus, que é isso? O senhor está louco? Não lhe avisaram que eu viria aqui todos os dias para preparar suas refeições e limpar a casa? Meu nome é Gertrudes. Marcos pede desculpas para a senhora. Não, não avisaram que a senhora estaria aqui.

        Gertrudes explica que infelizmente não conseguira ir no dia anterior para preparar toda a casa, apenas o quarto e o banheiro  porque nunca ia ali sozinha e o marido não pôde acompanhá-la. Hoje deixarei tudo em ordem, inclusive vou ligar o painel da eletricidade que esqueci ontem, desculpe, deixei o senhor no escuro. Espero que tenha encontrado o pacote de velas que sempre deixo para emergências.

        Desculpas aceitas e aliviado o escritor saboreia o excelente desjejum preparado por Gertrudes.  Depois de mais uma xícara de café, pergunta sobre o sumiço da última família que tinha se hospedado no local e se por um acaso tem mais alguém trabalhando na casa.
        - Uma desgraça senhor, mas não era uma família e sim um casal muito estranho, ele muito mais velho,  parecia avô da menina. Coitada, o velho a tratava muito mal, apesar da garota fazer tudo para agradá-lo.

        Eu estava aqui servindo o café quando sem querer a Sophia, era esse o nome dela, deixou cair café quente na mão do velho. Ele levantou o braço e deu uma bofetada no rosto da menina, arremessando-a longe, coitada! Ela pedia mil desculpas, mas o crápula não queria saber, só falava que ela era uma desajeitada, não sabia fazer nada direito, só prestava mesmo é para abrir as pernas. Presenciei cenas do casal como essa várias vezes.

        Até que um  dia, encontrei a menina na cozinha já com tudo pronto para o café da manhã. Falou que eu não precisaria ficar na casa, ela faria tudo sozinha, queria agradar seu marido. E fui embora.

        Quando cheguei aqui no dia seguinte, encontrei o velho morto no chão. Sophia, estava sentada ao lado do corpo em estado catatônico. Acredite senhor, o desgraçado merecia morrer. Corri e chamei meu marido para ver a cena. Olhamos em volta e achamos um vidro com veneno de rato vazio. Concluímos que cansada dos maus tratos a menina resolveu dar cabo da vida do homem que a infernizava.

        Como diz o ditado popular senhor: “Deus escreve certo por linhas tortas”. Eu e meu marido não fomos abençoados com um filho, por isso, vendo aquela jovem tão frágil caída no chão daquele jeito, meu coração ficou apertado, despertou dentro de mim um amor até então desconhecido, o amor de mãe. Abracei Sophia com carinho, ela se aninhou nos meus braços soluçando. Meu marido quando entrou viu aquela cena, entendeu tudo, sem falar uma palavra, retirou o corpo sem vida caído no chão, limpou o local e disse: tire a menina daqui, fique com ela até escurecer, volto mais tarde para buscá-las, não deixe ninguém saber o que está acontecendo aqui.

        Depois disso, retiramos da casa tudo que pertencia ao velho e destruímos. Sophia, traumatizada pelo que tinha feito permanece até hoje alheia a tudo, sua mente apagou completamente aquele dia fatídico. Desde então o destino nos encheu de felicidade, nos deu uma filha.
        Porém, Sophia precisa viver escondida de todos. O senhor notou alguma coisa estranha durante a noite? Apesar dos meus esforços para controlar todos os seus passos, ela costuma ter insônia e sai da nossa casa durante a noite para perambular por aí. Vou pedir para ela não aborrecer o senhor.

        - Tudo bem Gertrudes, não se preocupe. Por favor, peça para alguém verificar as janelas do meu quarto, ontem em plena madrugada elas abriram deixando o ambiente gelado.

        Marcos fica intrigado com toda aquela história. Decidi que naquela noite ficará atento ao aparecimento do “fantasma" que passeia pelo seu quarto.

        A noite chega. Por mais que tente manter os olhos abertos não consegue e cai no sono. De repente, acorda e vê uma jovem sentada no chão olhando-o fixamente. Mesmo na escuridão do quarto vê lágrimas brotando de que parece dois oceanos de um infinito azul turquesa. Quando  ela percebe que foi descoberta, tentar fugir mas tropeça e cai torcendo o tornozelo.

        Marcos corre para socorrê-la que ensandecida distribui socos e pontapés. Lentamente ele consegue acalmar Sophia que se mantém  distante, acuada num canto do dormitório. Acende a luz e espantado vê as condições lastimáveis da moça. Ela veste um vestido sujo e surrado. Uma  cabeleira tipo rastafari percorre suas costas, mais para ninho de passarinho do que cabelo humano. Manchas roxas como pulseiras rodeiam os tornozelos. Meus Deus! O que é isso? Com calma tentar descobrir o que aconteceu.

        - Não tenha medo, pode confiar em mim, fala o escritor. Por favor, conte o que está acontecendo aqui. Vou fazer tudo para ajudar você.

        Sophia, soluçando e desconfiada aos poucos conta que um dia, não sabe quando, chegou ali com o marido para passar uma semana na casa. Seria mais uma das muitas tentativas de conciliação do casal. O marido morria de ciúmes dela tornando sua vida um verdadeiro inferno. Mas a paz durou pouco. Chega na cidade um sobrinho de Gertrudes para visitá-la. Sophia com a melhor das intenções, convida o rapaz para jantar, já que a empregada trabalhando o dia todo na casa, não teria como das atenção ao rapaz.

        Rafael, era esse seu nome, foi tratado amigavelmente o tempo todo pelo marido de Sophia. Gertrudes fez um bacalhau especial para a noite regada a vinho, para a sobremesa, pasteis de Santa Clara, deliciosos. Enfim, o jantar estava num clima cordial, alegre até.

        Como eu estava enganada! Assim que subimos para o quarto meu marido num empurrão me jogou de quatro no chão e começou a me espancar. Sua vagabunda, não tem vergonha de ficar dando bola para aquele homem? Você não presta mesmo. E assim, transtornado me batia sem piedade. Só parou quando a exaustão tomou conta do corpo dele. Eu jazia ensanguentada no chão quando ouvi o ranger da porta se abrindo, era a empregada que veio no meu socorro e carinhosamente me banhou e tratou os meus ferimentos. Santa mulher!

        Na manhã seguinte quando acordei meu marido não estava. Tinha ido embora, falou Dona Gertrudes. Não se preocupe minha filha, aproveite para passear um pouco, vá até a praia, aproveite a vida! Passei momentos maravilhosos, levava vida de princesa. Os dias foram passando e o casal perguntou se eu queria morar com eles. Aceitei, claro, nunca tinha sido tão bem tratada. Finalmente tinha uma família.

        Com o tempo as gentilezas do Sr. Antonio, marido da Gertrudes foram mudando de carinhosas para abusadas, seus olhares maliciosos até mesmo na frente da mulher, me faziam tremer. E assim, outra vez minha vida foi virando um inferno. Desconfiada a mulher do safado mudou seu  tratamento
comigo, ficando cada dia mais ríspida. Desde então, passei a ser uma Cinderela e a carinhosa mãe se transformou numa madrasta.

        Acordei uma manhã assustada com os berros da Gertrudes, penetrando meu cérebro com todo tipo de insultos. Sua desgraçada, é assim que agradece o que fiz? Por você dei sumiço naquele seu marido imprestável. Você foi a filha que nunca tive e é assim que me agradece. Querendo roubar meu marido! 

        Tentei levantar. foi quando percebi, eu estava acorrentada na cama. Meu Deus, a senhora precisa acreditar, agradeço tudo que fez, nunca quis absolutamente nada com seu marido, juro por tudo que é sagrado!

        Nada fez a mulher mudar de ideia. Desde aquele dia, vivo aqui trancafiada num quarto como um animal, desejando com todas as forças do meu ser que a morte me abraça com seu manto negro. Não aguentava mais.

        Moço, foi com a chegada de alguém na casa depois de tanto tempo que criei coragem para tentar fugir desse inferno que tenho vivido. Estou sagrando, olhe, mas consegui me libertar das correntes. Ontem, tarde da noite estive aqui no seu quarto, ouvi ruídos na casa e fugi. Resolvi voltar hoje decidida a pedir sua ajuda. Por favor, tenha piedade, preciso ir embora, caso contrário quando descobrirem que estou solta eles irão dar cabo de mim.

        Sophia aos prantos continua contando suas desventuras. A mente do escritor fervilha de ideias, vislumbra no ocorrido um roteiro perfeito para seu livro. Decidiu sair imediatamente daquele lugar levando a sofrida moça com ele.

        E assim, o tempo passa, Marcos escreve seu primeiro bestseller, um romance como nunca escreveu, contando a história de Sophia.


        No dia do lançamento do livro, próxima a mesa onde Marcos dará os autógrafos para uma multidão que aguarda na fila de uma das maiores livrarias da cidade, está uma linda mulher. Seu olhar é apaixonado. Seu nome,  Sophia.