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A caça - Ises de Almeida Abrahamsohn



A caça
Ises de Almeida Abrahamsohn

Dona Januária, moradora há setenta anos em Catas Altas, cidadezinha enroscada num vale ao sopé da serra do Caraça, atesta a veracidade do causo para os que a escutam atentos na varanda após o café com broa de milho.

Lá pelos idos de mil e setecentos, o povoado aqui fervilhava de gente atrás de ouro nos garimpos das encostas. O mateiro Balbino tinha sido contratado para dar conta dos lobos que procuravam comida nos arredores da vila. Animais solitários e ariscos, os guarás sempre se haviam contentado com as carcaças do monturo. Porém, não mais. Galinhas e até dois leitões desapareceram. Apenas alguns rastros de patas foram encontrados mas nenhum sinal da luta ou sangue das vitimas desaparecidas. Os donos chegaram a invadir o barraco da escrava cozinheira do bordel à procura das peças de carne sumidas.

Mesmo Balbino, bem armado de trabuco e experiente achava difícil encontrar os animais. De faro e olhar apurado, movimentavam-se apenas à noite e caçavam sozinhos em grande área da mata. O mateiro tinha visto à tarde os restos de uma paca e galhos quebrados; estava no território do bicho. Caída a noite, apagou a fogueirinha do jantar e esperou. Lá pelas duas da manhã ouviu barulho sutil de galhos pisoteados.

Mais que dois bichos, julgou. Uma fêmea com cria já meio crescida.
Sentiu, mais do que viu, o movimento e atirou. Escutou um som rouco e um animal se afastando. A mãe ou o filhote.

Peguei um! exclamou. Acendeu o lampião, empunhou o facão e rasgou o mato até o animal agonizante. Ao iluminar a presa soltou um grito de horror. Viu primeiro a cara, onde os olhos humanos ainda tinham vida em meio ao emaranhado de cabelos arruivados empastados de barro. Da boca de lábios rachados escorriam sangue e saliva. Era uma criança, menina, talvez de uns sete anos, mirrada, pele escura de sujeira e coberta de cicatrizes. Tinha ainda na mão cerrada um galho grosso e liso feito um porrete. O tiro a atingira no lado esquerdo peito. Expirou em poucos minutos.


A menina-loba, como a chamaram as mulheres que a lavaram e envolveram na mortalha, era ruiva tal qual os lobos guará. Acreditaram ser a filha desparecida do garimpeiro Jan Dias, o único de cabelos fulvos daquelas paragens.  

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