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Casarão dos Azulejos Azuis - José Vicente Jardim de Camargo


Casarão dos Azulejos Azuis
José Vicente Jardim de Camargo

Assim ele era conhecido na cidade de Rio Claro, interior de São Paulo. Outros o chamavam de “Casa Louçada”, pois tinha as fachadas revestidas de fina louça decorada nas cores azul e branco importadas de Portugal, que o tornavam uma das edificações mais imponentes da cidade, um dos seus cartões postais. 

Construída por volta de 1890 por um abastado e influente fazendeiro, na época em que a cidade ainda era comarca. Seu projeto era do renomado engenheiro arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo, o mesmo que mais tarde construiria o Theatro Municipal de São Paulo, inaugurado em 1911, a tradicional escola da elite paulistana “Caetano de Campos”, a Casa das Rosas, hoje museu na Avenida Paulista, e muitas outras edificações famosas na cidade e no estado. 

Possuía em suas fachadas azulejadas nada menos que catorze janelas de aba dupla e vidraça em pino de riga, porta de entrada de folhas almofadadas com bandeira de vidro, entrada lateral com alpendre em estrutura de ferro e escada em mármore. A cobertura era decorada com platibandas e compoteiras.

Além da sua importância arquitetônica, o casarão dos azulejos azuis foi também o de maior valor cultural do município, pois nele nasceu e morou o poeta Guilherme de Almeida, o “Príncipe dos Poetas”, que ocupou a cadeira nº 22 da Academia Paulista de Letras” e é considerado o grande “imortal” dos paulistas, por ser o autor do hino da revolução constitucionalista de 1932. Sua primeira composição poética, o soneto “Beijos”, de 1904, quando ainda muito jovem, foi escrita no casarão, talvez inspirado pela visão de alguma moçoila que avistara passar frente a um dos seus janelões:

....“Deixa que o meu amor expanda os seus desejos,
       Beijando os lábios teus sem nunca se fartar....
       Chega ao meu coração, escuta-lhe os latejos!...
        Porque somente amando é que se trocam beijos
         E porque só beijando é que se aprende a amar!...”

Mudei-me de São Paulo para Rio Claro com meus pais e irmãos em 1955, quando tinha nove anos de idade. Ao entrar no casarão que seria meu novo lar, seus valores arquitetônicos e culturais me impressionaram bem menos do que suas paredes de pé duplo, quartos enfileirados, portas e janelas enormes em grande contraste com minha casa que acabara de deixar em São Paulo em estilo modernista dos anos quarenta. Nem me interessava pensar naquela tarde de sábado, em detalhes de qualquer natureza, de tão extasiado que estava por todas as novidades que estava vivenciando pela primeira vez. Para começar com a viagem de trem expresso, três horas cravadas, pela Cia Paulista de Estrada de Ferro, conhecida pela pontualidade, disciplina e limpeza inglesas. Saída da Estação da Luz, marco da arquitetura paulistana, de dimensões imagináveis para um menino na minha idade. O percurso percorrendo paisagens jamais vistas – fazendas com seus pomares, cafezais, canaviais, pastos e rios. A bordo, sanduíches e guloseimas servidos por funcionários em uniformes impecáveis, entre eles o famoso guaraná caçulinha, bebericado em pequenos goles, no desejo de esticar ao máximo, o deleite das novas sensações.

Ao chegar à cidade, outros sentimentos desconhecidos assolaram meu corpo garoto. A visão ampla das ruas retas, arborizadas, pacatas, onde transeuntes andavam calmamente por entre charretes e carroças que deixavam no ar o eco do trote dos animais nos paralelepípedos e o odor de estrume fresco. Este aspecto bucólico de cidade interiorana, contrastava flagrantemente com o ambiente e os costumes aos quais estava acostumado na capital onde vivera até então, quando percorria sozinho avenidas e ruas movimentadas, tomava ônibus e bondes no percurso entre casa e escola.

O casarão dos azulejos acolheu toda a família enquanto lá viveu, num abraço fraterno de alegrias, novas amizades e aventuras,  estudos no ginásio alemão, medalhas em diferentes esportes, despertar dos desejos da puberdade, enfim emoções que até hoje marcam profundamente a todos e polvilham minhas lembranças com imagens de sua garagem repleta de bicicletas, seu pé de louro no quintal, seu fogão a lenha, seus longos corredores, seu quarto sem janela onde pernoitava meu avô, seu muro com a casa ao lado, donde flertava com as filhas do professor, suas  comemorações festivas com primos e amigos nas folias de carnaval,  quando o chão de seus cômodos viravam um acumulado de colchões e cobertores estendidos, e, como costume nessas construções, seu único banheiro.

O tempo também passou para nós no casarão azul e nem no dia da partida de volta à capital para o início dos estudos universitários, que a cidade não oferecia, deixou seus hóspedes entristecidos, pois estavam no caminhar da vida em direção aos novos horizontes, fortalecidos com os valores de uma juventude sadia de corpo e alma, mérito, entre outros, da alegria e da paz reinante no convívio fraterno do casarão.

Nas vezes que voltei a Rio Claro para visitar os amigos que lá deixei e de participar de suas festas populares, não deixava de passar em frente ao casarão. Apesar da sua imponência constante, me pareceu um pouco distante, triste, novos hóspedes nele se abrigavam – serão tão felizes como nós? – Talvez prenunciasse seu fim próximo, ou, ao me ver, sentisse saudades da família que enlaçou por tantos anos.

Na parede da minha sala, pendem dois azulejos azuis. Uma lembrança de um amigo que ao ver suas paredes sendo arrancadas do solo em choro, tem a feliz ideia de salvar algo que a ignorância municipal, hoje reconhecida com pesar pelos munícipes – a história se foi pelo ralo! Dizem não conseguiu evitar.


Comigo, seu azul turquesa destacando-se na parede, representando um pouco daquele todo monumental, continua a dar-me paz e alegria numa parceria mútua de agradecimento e confidências...

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