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O carnê da felicidade - Ises A. Abrahamsohn


O carnê da felicidade
Ises A. Abrahamsohn


Padre Adelino estava há dois meses na   paróquia de Santa Rosa num bairro da periferia de São Paulo. Assumira após   ficar cinco anos em Redenção da Serra, cidadezinha do Vale do Paraíba. Lá era benquisto de todos os habitantes. Visitava com frequência as casas dos seus paroquianos para confortar os doentes, levar alguma doação material e até para aconselhar nos problemas do dia a dia. Era acolhido com respeito e carinho.

Situação muito diferente era a atual.  Mesmo na missa dominical  os fiéis não preenchiam metade dos bancos da igreja. Tentara fazer sermões otimistas e alentadores.  Organizou atividades sociais para atrair os jovens, mas tudo em vão. Mesmo os frequentadores da missa se esquivavam e deixavam a igreja rapidamente.  Padre Adelino, porém, não se deu por vencido. Resolveu visitá-los em suas casas. Conseguiu  agendar algumas visitas às poucas famílias que haviam se  inscrito para atividades paroquiais.

Sentia que o recebiam com reserva, desconfiados e a visita se encerrava em quinze minutos. Nem café, nem água ofereciam. O pobre padre não entendia tal desconfiança. Até que uma alma caridosa, a Francisca, moça esperta de uns vinte anos, contou-lhe a razão.

— Antes do Senhor, esteve aqui um padre chamado Otávio. Era jovem, simpático, animado, assim como o Senhor, e se engraçou com todos. A Igreja vivia cheia, as mães e as crianças adoravam  o Pe. Otávio, que também cantava e organizava as quermesses do bairro. Após um ano, o padre propôs  a construção de uma creche. Seria tipo o baú da felicidade. O pessoal pagaria o carnê mensal, e a grana seria aplicada no banco para render. Após um tempo  seriam sorteadas geladeiras, máquinas de lavar, uma por mês e em um ano começaria a construção da creche.

Alguns mais desconfiados e mais escolados, como meu pai,  logo disseram que a coisa, daquele jeito, não podia dar certo. Mas o Senhor sabe como é! O povo aderiu animadíssimo!  Os coitados pagaram  cada mês o carnê, e não era barato, não! Sorteio houve; de uma geladeira.  A Josefa chorou de alegria ao ser sorteada. Coitada!  Nunca viu a geladeira e nem ela e nem o resto do povo viram creche e muito menos o dinheiro. O tal padre Otávio evaporou sem deixar rastro. O pessoal foi até o bispo e lá souberam que não existia nenhum padre Otávio. Na polícia a mesma coisa. 

Agora o senhor sabe o porquê do pessoal estar desconfiado. Se eu fosse o senhor, chamava primeiro o bispo aqui para provar que o senhor é padre de verdade!

O padre agradeceu à moça, no caminho de volta, se pôs a pensar em como poderia convencer o bispo a vir até a sua pequena  paróquia de periferia. Teria que achar alguma razão importante para a vinda do eclesiástico. Pouco conhecia do seu temperamento, mas pelo que ouvira, o bispo era muito ocupado e pragmático: não iria se comover com as dificuldades do pároco. Provavelmente diria a ele  que se virasse.  Em casa preparou o seu jantar frugal. Enquanto jantava reparou no calendário  na parede da cozinha. Era um daqueles antigos que assinalava  o santo padroeiro a cada dia. Veio-lhe uma ideia. Deixou pela metade a sopa e foi olhar o mês de agosto. E lá estava dia 23 era o dia de Santa Rosa de Lima. Poderia organizar uma festa de aniversário da igreja e convidar o bispo para crismar os fiéis. Pelo que sabia nunca houvera tal cerimônia naquela comunidade afastada. Estavam em meados de julho. Haveria tempo para preparar tudo.

No dia seguinte, animado com a ideia, enviou um e-mail à Cúria solicitando uma entrevista para fazer o convite. Uma semana depois estava ele em Higienópolis. Conseguiu falar com um dos  bispos auxiliares, Dom  que foi simpático à ideia e prometeu ajudar e até custear festa, já que do povo do bairro dificilmente conseguiria alguma contribuição.

No caminho para casa Pe. Adelino estava  tão feliz que não lhe importavam as demoras dos ônibus , os apertos do trem e mal podia acreditar no seu êxito.  Passou  na igreja para rezar em agradecimento. Alguém acendera velas e, na igreja escura, a imagem de  Santa Rosa com  a sua coroa de rosas resplandecia.


No dia 23 de agosto, deu tudo certo.  A igreja iluminada e enfeitada de rosas se encheu de fiéis.  Muitos acompanhados de seus padrinhos receberam a crisma pelo bispo Francisco ajudado pelo padre. Ambos rezaram a missa solene. Padre Adelino não era supersticioso, mas enquanto orava com os olhos voltados para  o alto, pareceu-lhe  que  a imagem lhe sorria.

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