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Escapada - Ises de Almeida Abrahamsohn



Escapada
Ises de Almeida Abrahamsohn

Cleonice não via a hora de chegar  o sábado.  Uma vez por mês o marido, pescador fanático,  ia pescar com um grupo de amigos nas barrancas do rio Cuiabá, em Mato Grosso.  O grupo saía na sexta à tarde para voltar só ao anoitecer de domingo.

Era a libertação para a mulher, Cléo, que era como todos a chamavam. Ela  adorava dançar  e  o marido, além de não gostar, era um pé  de chumbo.  Para poder  dar seus passinhos no forró, a moça   desenvolvera elaborado plano.  Iria para a  cidade próxima, Barão de Melgaço, já que em sua  pequena cidade, Santo Antonio,  era conhecida e moça casada não ficava dançando por aí sem o marido. Cléo não queria enganar o marido, apenas dançar, mas teria que escapar da vigilância dos olhares de Santo Antônio.

O forró acontecia no sábado à noite.   A moça afoita planejou pegar o  ônibus das duas  da tarde com a desculpa de que iria fazer compras. Depois  iria  visitar e jantar  com uma comadre e voltaria no ônibus das onze.  Levaria a roupa de festa e os sapatos de salto  na  mochila.   O forró começava às  oito  da noite . Poderia dançar  até as dez e meia e ainda pegar o ônibus.
 
E assim Cléo  foi  na manhã de  sábado arrumar o cabelo e à tarde embarcou com a sua mochila e ar compenetrado no ônibus.  Em Melgaço tinha que fazer hora até a noite. Visitou as lojas, comprou algumas bugigangas, entrou na igreja. O tempo custava a passar.  Tomou sorvetes em sorveterias diferentes, passeou na praça e  numa lanchonete conseguiu se trocar  e  maquilar  para o baile. Pontualmente lá estava ela à porta do forró. Estava sem jeito por estar sozinha.  Juntou-se a um grupo de garotas, entraram juntas e Cleonice  se ofereceu para pagar parte da taxa da mesa.

Logo estava dançando. A cada meia hora olhava o relógio. Dez e meia saiu andando rapidamente  na direção do posto de gasolina onde passaria o ônibus. Trocaria os sapatos e vestiria a calça  jeans  no banheiro do posto.

Foi quando viu que tinha esquecido a mochila no salão do forró. Paciência. Não havia tempo para voltar. Era o ultimo ônibus do dia.

Mas não poderia descer  no centro de Santo Antonio  vestida assim para  festa. Resolveu pedir ao motorista para saltar antes, na estrada. Andaria umas quadras até chegar em casa.  Dificilmente alguém a veria  naquelas ruas  do bairro já  às escuras.  Saltou do ônibus e o motorista ainda zombou:

 Vai andar assim no barro, minha linda?

As luzes do ônibus desaparecidas, Cléo  se viu na rua de terra e na escuridão. Por azar ainda era lua nova.  Os saltos altos não ajudavam. Caminhou uns cinco minutos sem enxergar onde pisava.

 Eta , que pessoal morrinha ! Nem para deixar uma luzinha acesa para alumiar a entrada de casa! 

Foi  quando percebeu o cachorro seguindo-a.

 Passa, passa,  seu vira-lata!  Já basta eu aqui. Não quero cachorro latindo e fazendo barulho.

  Mas nada do cachorro ir embora.  Pior...  Ao passarem pelas casinhas  os cachorros domésticos latiam contra a presença do intruso em seus domínios.  Uma luz se acendeu. Logo se abriria a porta.

— Quem está aí? 

Cleonice  procurou um lugar para se esconder.   Mal enxergando,  se escondeu no que lhe parecia ser uma moita de pés de mamona  num terreno baldio.  Ficou  lá  imóvel  enquanto o dono da casa  caminhou até o portão da rua. Por azar era um conhecido: o Seu  Tobias da  quitanda.  Este afinal  gritou para dentro de casa :

 São apenas os cachorros da rua. Não tem ninguém por aqui, e fechou a porta.

Cléo,  respirou aliviada por um momento. Até ouvir  logo acima da sua cabeça um silvo fortíssimo. Se apavorou. Pensou ser uma cobra pronta a dar o bote. A potencial cobra era apenas uma coruja importunada no seu poleiro noturno de caça. Com o  susto Cléo perdeu um dos sapatos, caído em algum buraco sob o mamoneiro. Apalpou o chão na escuridão, mas teve que dar o sapato como perdido.  Quase chorou.

  Meu sapato  preferido,  caro, o melhor que eu  tinha.... Que azar. Ainda por cima agora tenho que  caminhar  descalça.

E lá se foi Cléo andando no escuro e  resmungando. Sem enxergar onde pisava,  na rua de terra cheia de pedregulhos, volta e meia um espetava  o seu pé.

Já estava a dois quarteirões de casa. Outro cachorro se aproximou e começou a cheirá-la.

— Sai! Sai!  Tá pensando que eu sou uma cadela?

Mas o quadrúpede não fez caso e continuou farejando e seguindo a moça. Estavam chegando perto da casa de Seu Lima, famoso pela sua criação de galinhas de Angola e de seus cães que defendiam a casa e o galinheiro contra  ladrões, gambás e outros intrusos.

Pois foi o que sucedeu....Os guardas do Seu Lima ao ouvirem Cléo e o cão armaram  o maior  concerto de latidos.  Seu Lima não teve dúvidas soltou os cães atrás dos prováveis ladrões de galinha. Cléo não sabia para onde fugir. Embarafustou pela viela ao lado do muro da casa e foi dar na parte de trás do quintal onde ficava o galinheiro. Não teve dúvidas. Era o melhor lugar para se esconder. Abriu a portinhola de madeira e arame e se refugiou ao fundo abaixo dos poleiros. Lá ficou paradinha, agachada no escuro rezando para que as galinhas não se alvoroçassem. As penosas ficaram bem comportadas só deixando escapar, de quando em quando, algo viscoso que aterrissava na cabeça e nos ombros da moça.

Quando Cléo pensou que tudo tinha se acalmado, para seu horror, viu  seu Lima de pijama e lanterna na mão aparecer frente à porta do galinheiro. O cão a denunciara. Estava postado em frente ao galinheiro, como que esperando a sua saída.

Mas Seu Lima não era amigo dos que se aproximavam de suas preciosas galinhas. Perpassou com a lanterna os poleiros e depois o chão.

Era o fim  para Cléo !

 Quem está aí? Sai já, ou mando bala!

 Não atire!  Seu Lima, sou eu!

 Eu, quem?

O Lima teve dificuldade de reconhecer  a moça. Os pés descalços e  imundos, minivestido  sujo e rasgado, cabelos desgrenhados cheios de titica de galinha. Finalmente se deu conta. Era a Dona Cleonice,  moradora do quarteirão seguinte; a mulher do pescador.

“Que faz ela  nessas condições, nessa hora da noite e ainda por cima no  meu galinheiro?  Que maluquice  é essa ?”

Ao ser descoberta Cléo tentava desesperada construir alguma    história mais ou menos plausível.

 Dona Cleonice, o que faz aqui? Desse jeito? A  essa hora ?

 Perdoe-me, seu Lima! O meu cachorro o Tico, o senhor está vendo ele aí,  fugiu  quando eu fui fechar a porta da cozinha. Aí  eu fui atrás  dele, assim mesmo, do jeito que estava, sem sapatos. Quando eu estava na rua apareceu um sujeito com uma faca e eu fiquei apavorada e corri. Corri para me esconder. Quando vi,  estava em  frente da sua casa e me escondi  no  galinheiro. Fiquei  lá um tempo  até  não  ouvir mais o homem. Ia sair, mas aí apareceu o Tico  e os seus cachorros começaram  a latir. 

O Lima olhou para ela bem desconfiado.  Vestido estranho para se estar em casa, à noite, em Santo Antonio. Bem, isso não era da conta dele. As galinhas todas estavam lá, calminhas em seus poleiros, era isso o que contava.

 Quer que a acompanhe até em casa, Dona Cleonice?

 Cléo agradeceu dizendo que era perto, que não se preocupasse, agora tinha o Tico ao  seu lado.

 Quero  mesmo é sumir daqui, murmurou, ao capengar pela rua. _Escapadas para forró? Eu, hem!  Nunca mais!


Quem se saiu bem mesmo na  estória foi o recém–batizado Tico   que,  parecendo compreender a sua importância  no enredo,  acompanhou   a   sofrida dançarina  até  em  casa  e foi  por ela adotado.   

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