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A VIDA DE CADA UM - Jeremias Moreira


A VIDA DE CADA UM
Jeremias Moreira


Maltrapilha, cambaleante, corpo pendendo para o lado esquerdo, de onde descia uma sacola esfarrapada, a mulher atravessava a rua alheia ao tráfego intenso e obrigava os carros a desviarem. Ouviam-se os guinchados das freadas e saraivada de buzinas estridentes. Kalu foi atraída pela balbúrdia. Olhou e viu uma mulher negra que tentava galgar a guia da calçada. Ela não conseguiu erguer a passada além do degrau, tropeçou e estatelou-se contra o piso do passeio.

Enojados, em vez de socorrê-la, os transeuntes afastavam-se! A cena indignou Kalu. Apesar da pouca idade, enraivecida com o descaso das pessoas, ela correu em socorro à pobre mulher. Sequer a fedentina nauseante que a indigente exalava inibiu o seu ímpeto solidário. Desorientada ligou para sua mãe, que é médica. Em seguida ligou para 190 e aguardou. O gesto da garota contagiou pessoas. A vendedora da casa de móveis apareceu com um copo d’água. Dois homens se dispuseram a sentar a mulher contra a parede. Alguém ponderou que não era apropriado remove-la. Poderia causar mais danos. Nesse meio tempo chegou a ambulância do SUS.  Kalu soube que a levariam ao Pronto Socorro do Hospital das Clínicas. Pediu aos paramédicos para acompanhar. Não era permitido. Tomou um táxi e ligou novamente para a mãe. Contou para onde estava indo, da sua intuição e pediu para que fosse ao seu encontro no PS do HC. Não entendia porque, mas sentia uma compulsão em cuidar da mulher. Pressentia que de alguma forma estava ligada à aquela mulher.

Kaluane era negra e fora adotada por um casal de médicos, assim que nasceu.  Apesar de ser evidente pela cor da pele, essa informação nunca foi acobertada pelos pais, que também nunca se negaram a conversar sobre o assunto. Recebia tanto afeto em casa que acreditava que pais são os que criam e sempre se sentiu amada. Porém, no dia em que soube que sua mãe biológica tinha apenas treze anos quando a pariu e que era menina de rua, passou a se preocupar por ela. Desejava encontrá-la e fazer algo para ajudá-la. Não sentia mágoa. Pelo contrário, entendia que a menina fez o melhor que pode, nas circunstâncias.

Súbito, ao socorrer aquela mulher, ainda jovem, mas tão envelhecida pelas agruras, que certamente sofria, teve a intuição de que poderia ser a sua mãe.  Naquele momento acreditava piamente que o destino moveu as pedras do tabuleiro da vida, para juntar mãe e filha.

Assim que Iris, sua mãe adotiva, chegou, Kalu relatou tudo o que acontecera e afirmou categoricamente ter a certeza de que aquela mulher era sua mãe biológica.

Por ser médica, Iris conseguiu entrar no ambulatório. Porém, não foi capaz de reconhecer na mulher, a menina, que há quinze anos, havia dado a vida a Kalu. Voltou e disse isso a ela. Porém, Kalu era determinada:

− Que tal fazer um exame de DNA!

Voltaram no dia seguinte. A mulher estava consciente, mas não dizia coisa como coisa. Foram ver o resultado do DNA. Cheia de expectativa, Kalu recebeu um banho de água fria. O teste dera negativo! Sua intuição a enganara! Iris deu-lhe um forte abraço. 
Na volta, a mãe quebrou o silêncio que reinava no carro. 
− Chateada?

Sem olhar, Kalu respondeu com um poema, que lera ainda aquela manhã:

Sou silêncio, sou estranha,*
Sou negra, sou castanha,
Sou âncora, sou a paz,
Sou segura, sou capaz.

Sou mulher, sou coragem,
Sou estações, sou passagem.
Sou gata da madrugada,
Sou forte, aguento pancada.

Sou estrela esquecida,
Sou folha descolorida,
Sou comida de inseto,
Sou gente, não objeto.
Iris se emocionou! Fez um gesto carinhoso na filha e sorriu. O sorriso da certeza de que fazia um bom trabalho como mãe.  Kalu era uma menina de fibra! 


*Adaptação de poema de autor desconhecido.  

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