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Marias - Ises de Almeida Abrahamsohn


Marias  
Ises de Almeida  Abrahamsohn


Maria das Dores era uma máquina! Levantava-se às quatro e meia da manhã, fazia o café ralo servido com pão e margarina aos três filhos  cambaleantes de sono. Às cinco e meia, café tomado e  cara lavada  saíam todos naquele breu. Andavam quinze minutos até o ponto de ônibus.  O dia já clareava.  A rotina era  a mesma  todos os dias: sol ou chuva, chuva ou sol,  pegavam o primeiro  ônibus para a cidade. Uma hora sacolejando, o motor velho resfolegando.... Será que não vai quebrar no caminho?

Sete horas em ponto, Maria deixa a criançada na porta da escola. Bendita escola onde finalmente conseguira o tempo integral para os piázinhos.  Dia passado, viria buscar a cria na hora da Ave-Maria, já escolada e alimentada, pronta para a cama.
Maria pega a segunda condução. Consegue entrar na lata de sardinha à  custa de seu guarda-chuva.

_ “ Guarda- chuva dos bons este. Paguei dez  real no camelô, caro, mas  de muita serventia, não contando  a de   aparar  as águas.  Escolhi um de ponta fina. Falei para a Joana: _ tem que ter ponta fina senão não presta .  A gente  aperta  ele sobre o pé dos marmanjos que bloqueiam a porta e o cara já sai de banda prá gente subir  no degrau. Tem  que fazer  a abordagem com classe e falar : _ desculpe, moço, que é pro cara não zangar.  Agora, têm aqueles sem vergonha  que vêm  por trás se encostar na gente.  Aí , eu finco a ponta no pé sem piedade.  Daí  precisar mesmo um  de  ponta fina.  O camarada  só não grita de dor para não se avexar  e  se afasta logo, logo. “ 

Mais cinquenta minutos até Maria chegar ao trabalho. Na loja moureja até duas da tarde.

_ Das Dores, traz os pratos do depósito!  Das Dores,  arrume na estante, não vá quebrar nenhum ... Das Dores pega as caixas de  vasos, das Dores  isto, das  Dores aquilo .....

No intervalo da manhã, Maria tira da sacola o pão com margarina e a garrafa de café.  A barriga roncando se acalma.

_ “Não aguento mais esse nome, das Dores, que ideia, por que me deram esse nome? Põe a gente prá baixo! Nunca tive dor na vida, tirando as de parto. Nem dor de corno  que, graças a Deus,  o Zequinha nunca foi de ir atrás de rabo de saia. Coitado, esticou as canelas ainda  novo. Mal de Chagas,  foi o que o doutor disse.  Nem conheceu o último moleque. Sozinha com os três não está fácil, o dinheiro  não dá  pra nada. Se ficar doente,  quem vai acudir ?”

  Quinze para as duas da tarde, Maria se apronta para sair.  Desodorante, que o calor está de rachar, batom discreto, escova para alisar o cabelo preso com fivela de tartaruga. _ Tartaruga legítima, pois sim, que acredito, respondeu  ao vendedor enxerido.  Olha-se no espelho  do banheiro, sorri , faz pose de modelo ....

 _ Ainda dou pro gasto!

Pega a maleta com os produtos de beleza e vai visitar as freguesas. Vende de tudo: Avon, Natura, perfumes, bijuterias, calcinhas. Tudo comprado na Vinte e cinco de março. As freguesas, outras tantas Marias: mulheres de zeladores, as empregadas e as babás nas praças,  mocinhas do escritório que fazem lanche da tarde na barraquinha. Caderninho na mão anota os pedidos, os pagos e os fiados. Vende as ilusões: há cremes para tudo.  Para alisar rugas ou  cabelos , para emagrecer ou anti-espinhas:  todos  com resultados garantidos em  quatro semanas.

Juntando os dinheirinhos daqui e dali Maria consegue pagar   o aluguel  da casinha e alimentar a si e às crianças.

Naquela tarde não conseguia vender muita coisa.  O calor afugentou  as freguesas.  Ao caminhar na calçada do bairro chique, os saltos  marcam  o seu progresso:  tloc, tloc... Com os pés doendo, aproveita a sombra da sibipiruna  para um gole da garrafinha d´água. Já está na hora de voltar e buscar os pequenos na escola. De repente, vê a maleta marrom entre as azaleias que margeiam as  grades do prédio. Nem viv’alma por perto. Olha para todos os lados: ninguém!  Pega a maleta. Nova,  couro  legítimo . Só pelo couro já vale a pena. Sai andando, agora com os dois braços ocupados.  As maletas pesam demais nos braços que se movem alternadamente: para frente, para trás,  para frente , para trás...

Chega enfim ao ponto de ônibus ainda temerosa de ter sido seguida por  alguma testemunha.  Suspira aliviada. Conseguira um  improvável  lugar sentada. A  maleta  marrom mantém apoiada sobre os joelhos,  escondida pela sua já surrada maletinha  preta.  Não iria correr o risco de despertar  cobiça  de algum desonesto. Só iria abri-la em casa.  O  cheiro de couro novo  se somava   a  um estranho calor  a  aquecer-lhe as coxas.

_” Deve ter dinheiro dentro.  Será mesmo ?... Que sorte se tiver alguma grana. Estou tão precisada.  Mudar  para uma casinha ou apartamento  meu  e das crianças... Perto  do serviço, longe  das ruas  perigosas...  Se der,  pagar escola melhor para eles....Vai ver que não tem nada dentro,  apenas papéis e celular.  Terei que jogar fora senão ainda me descobrem e prendem por uma bobagem destas..”

Os meninos já esperavam  a mãe no portão da escola.Acharam um banco livre  no ônibus. Que sorte!  Mandou a meninada tomar banho, por os pijamas  e ver televisão no  único cômodo que servia de dormitório e sala para mãe e filhos.  Das Dores colocou a maleta na mesa da cozinha.  A fechadura resistiu. Ainda hesitou, mas  meteu-lhe uma chave de fenda.  Havia dinheiro,  muito dinheiro ! Dinheiro em três cores: o nosso só em notas de cem,  notas verdes  que ela sabia serem dos Estados Unidos – dólares, tinha visto na TV -  e outras maiores, azuis,  também marcadas como cem e quinhentos . E que cheiro  !

_ “Perfume este  dos bons , cheiro de dinheiro novo.”

  Maria respirou fundo. Sabia o que ia fazer.

Não seria mais Maria das Dores. Doravante  seria  Maria das Graças, Maria da Glória, Maria da Felicidade – será que existia tal nome ? Qualquer  outra Maria,  com menos dores. E os filhos  não seriam mais  os moleques  da “das Dores”.  Teriam casa  nova, escola das boas  e lanche de pão com manteiga e queijo. E aquelas verdinhas perfumadas, sabia que podia trocar no shopping. Tinha visto o pessoal naquelas casas  de nome esquisito e com a palavra câmbio.  Teria que fazer aos poucos. Por enquanto,  na vida,  tudo igual para não chamar atenção. Depois, melhor mudar de cidade, para onde não a conhecessem.

Maria  escondeu  o dinheiro e guardou a maleta vazia . As crianças, curiosas, perguntaram.

_” Estava vazia. Amanhã vou levá-la para o serviço. Talvez  alguém compre”.
Nas férias de julho a família mudou-se para  o interior. Maria deu entrada numa casa  e montou  uma lojinha de artigos domésticos – afinal tinha experiência no ramo.  O nome?  Simplesmente, Bazar das  Marias.


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