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Viúva Alegre - José Vicente J. de Camargo


Viúva Alegre
José Vicente J. de Camargo

Dona Gracinha, de batismo Maria da Graça, vivia de lembranças e suspiros segundo os amigos. Isto porque cada vez que encontrava com um, se punha a contar suspirando suas lembranças da juventude, principalmente quando fora eleita “Rainha da Uva” da sua cidade natal. Seu reinado se estendia além das fronteiras de sua cidade, atingindo todas as demais ao redor, totalizando a maior região vinícola do Estado. Foi um ano para jamais esquecer. Pipocavam convites para festas e reuniões nas principais famílias das cidades, nos clubes, nos teatros, nos eventos políticos sociais e até nas inaugurações do comercio.

Não perdia a oportunidade de completar qualquer frase dita pelo amigo ouvinte, com recordações dos seus melhores anos de reinado, intercaladas por profundos suspiros:

− Ah! Isso me lembra de meu tempo de faixa e coroa, quando fui... E assim começava uma narrativa que, se não interrompida com desculpas de “estou sem tempo” ou “com muito trabalho” se estenderia por horas a fio.

Como já desfrutava da terceira idade, viúva – seu marido fora um dos maiores plantadores de uva da região −, delgada – dizia que seus alimentos preferidos eram a uva e todos os demais que dela originassem –, e muito alegre no modo de falar, nos trejeitos, e na maneira de revolver os olhos, como se estivesse sentada eternamente no trono de rainha, chamavam-na  de “viúva alegre”. Inclusive seu próprio nome, “da Graça”, corroborava com tal apelido.

Era muito querida por todos que a tratavam com respeito e simpatia e sempre que possível, cada um doava um pouco de seu tempo em ouvir seus devaneios. Mas aí é que entra o perigo da amizade, quando Gracinha se empolgava e fazia questão de relatar o dia mais injusto e triste da sua vida:

“Aconteceu logo após o término de meu reinado de Rainha da Uva. Meus admiradores insistiram para que me candidatasse ao concurso de Miss Estado, o passo seguinte na carreira das jovens que almejavam galgar a fama da beleza, do charme e dos bons relacionamentos – quem sabe de encontrar um marido rico e bonitão. Uns dias antes do concurso, já considerada uma das candidatas preferidas, aconteceu o imprevisto. Meu namorado, com quem havia acordado que o noivado só aconteceria após o encerramento de minha carreira de miss − em nível mundial quem sabe – apareceu de súbito, sem avisar, no ensaio do concurso que ocorria no próprio salão onde se realizaria o evento. Muito nervoso e – dando uma de mandão − exigiu que eu abandonasse o concurso e que marcassem a data do compromisso sem demoras. Mediante minha recusa, quis tirar-me a força do recinto, aos gritos que lugar de moça comportada é em casa com a mãe. Logo se formou a confusão entre os promotores do evento, as demais misses indignadas com tal atitude machista – algumas no íntimo deviam estar contentes por ter uma forte concorrente fora do páreo – e os seguranças do recinto que foram chamados às pressas. No meio do empurra-empurra e bate-boca, quando fui escoltada para fora do salão, ouviu-se um tiro abafado seguido de gritinhos de horror e desmaios de algumas participantes mais sensíveis. Voltei e deparei com meu namorado ensanguentado, ajoelhado no chão, a mirar-me com olhar perdido tentando balbuciar algo. Me joguei a ele, retirei a faixa improvisada de miss e com ela tentei conter o sangue que lhe escorria da boca e assim pude ouvir o que ele tinha a dizer. Ao chegar o socorro, nada mais restava a fazer, senão eu mesma fechar-lhe os olhos pela última vez”.

Dos amigos, admirados pela empolgação da narrativa, vinha sempre a pergunta curiosa:

− E o concurso, participou, foi eleita miss?

− Não tive coragem, nem ânimo de continuar meu sonho dourado de coroa e cetro. Me deixei levar pelo rio da vida...

− E conseguiu ouvir o que ele queria dizer?


− Sim! E são essas palavras, com tudo o que representam, que, em segredo, me sustento até hoje:  “minha doce uvinha, quando for uma passa,  virei busca-la para o noivado...”

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