O acontecimento fortuito
Fernando
Braga
O circo Stankowich, Rio de janeiro, em
suas sessões de quinta a domingo apresentava seu excelente show, bem concorrido,
onde destacava-se como apresentação principal o famoso Saturno, exímio
trapezista, cujo nome verdadeiro era Ruy.
No trapézio conseguia executar o chamado
triplo salto mortal, onde dava três voltas no ar antes de atingir os braços de
Urano, o Carlito, seu companheiro, que conseguia segurá-lo fortemente. Não podia
haver a menor falha, para que os movimentos precisos se encaixassem. Em caso de
falha, uma grande rede iria amortecer a queda. No final da apresentação ele se
atirava de costas sobre a rede. Era um sucesso absoluto, considerada a melhor
apresentação dentre todas.
Um dia resolveram que, uma vez por mês, no
domingo, apresentariam o mesmo quadro sem a presença da rede protetora. O
afluxo de gente ao circo, que era grande, tornou-se enorme nestes dias, tendo
as entradas que serem compradas com muita antecedência.
Em São Paulo havia o circo Garcia, fundado em 1928, o mais antigo do Brasil, que sempre apresentava animais participando dos shows como os cachorros e elefantes ensinados, lindos cavalos árabes cavalgando pelo picadeiro, tendo encima e de pé, lindas donzelas e ainda os famosos chipanzés. Mas, o mais sensacional era a presença de Tigrana, uma domadora de leões e tigres, enfrentando-os apenas com uma pequena cadeira e um chicote.
Trabalhava com seu pai, de quem havia
aprendido a arte. Tornou-se conhecida não apenas por sua habilidade em ação, mas
por sua inconfundível presença vestindo aquela roupa justa de tigrinha, deixando
exteriorizar sua silhueta magnífica. Este circo apresentava ainda o mui famoso
comediante Pipoca, o Marcelo, que sabia muito bem conduzir os quadros cômicos, principalmente
quando pedia a concorrência de 3 ou 4 participantes da plateia. Não era o palhaço
do circo, mas o indivíduo mais espirituoso e engraçado que levantava a
multidão.
Em meados de 2003, este circo levantou
suas lonas e fechou as portas. Foi uma falência que ninguém ficou sabendo com
antecedência, mas de uma hora para outra todos estavam desempregados. Os
animais foram vendidos ou doados aos zoológicos, os artistas começaram a se
virar, mudando de profissão ou procurando emprego em outros circos do país. Alguns
foram para o Le Circle Amar, no Maranhão, outros para o circo Spacial em São
Paulo, outros mais para o circo Estorial em Goiânia, e também para o circo Stankowich, incluindo
Tigrana e um pouco mais tarde, o comediante Pipoca.
Tigrana e Pipoca sempre tiveram muita
amizade e um amor escondido, principalmente por parte dele, que secretamente a
amava, mas sem ser correspondido. Ele a
havia beijado duas ou três vezes, mas não houve continuidade. Ele achava que
era por causa de seu pai, que queria que ela arranjasse algo melhor, fora do circo
ou círculo.
Já com 32 anos, ela veio trabalhar no
Rio, onde Marcelo – o Pipoca - contente previu a possibilidade de um acerto.
Como o circo viajava muito, todos os
artistas tinham suas acomodações, camarins, em Vans ou tendas bem feitas, dentro
da área do circo. A vida lá dentro era muito corrida e todos, tinham muitos
afazeres ao lado do treinamento diário.
Marcelo
ficou em um local distante de Maria dos Anjos, que era o nome de Tigrana. Só
podia vê-la quando estava treinando com os animais selvagens. Via sua coragem e
cada vez, a queria mais. Eram ainda, apenas bons amigos.
Certa noite ele aventurou-se a ir até a
Van onde moravam Tigrana e duas amigas, e ao se aproximar viu-a saindo e logo
depois entrando em uma tenda, na tenda de Ruy, o trapezista.
Ele
queria morrer! Ficou simplesmente fora de si, não conseguindo explicar como ela
pode aceitar o trapezista, desprezando-o.
O ciúme começou a corroê-lo e logo
pensou em alguma vingança, em algo que pudesse trazê-la de volta.
Observou a grande tenda onde os apetrechos do circo
eram guardados. Deu uma olhada rápida no local e viu o acondicionamento de todo
o material usado nos espetáculos, incluindo os trapézios, com suas cordas
reforçadas e os paus roliços onde os trapezistas sentavam, ficavam em pé ou
prendiam fortemente suas pernas quando balançavam o corpo. Este material era
cuidadosamente guardado no início da semana, e bem vistoriados antes de serem colocados em
uso nas sessões que começavam na quinta.
Estudou, estudou e finalmente bolou um
plano maligno que parecesse um acontecimento fortuito!
Foi a uma farmácia de manipulação onde comprou
um vidro que continha 250 ml de ácido nítrico, mais comumente conhecido como
muriático.
No dia seguinte, sem que ninguém o visse,
aproximou-se dos trapézios, identificou aquele que era usado pelo auxiliar
Urano e embebeu a corda de um dos lados com o ácido. Saiu um pouco de fumaça. Colocou
mais e mais.
Pensou:
“A corda deve amolecer, perder a resistência
e vai romper, podendo conduzir a um acidente. Vamos ver!”
Saiu sorrateiramente, voltou à sua
tenda, jogou o resto do acido, lavou bem o vidro, jogando-o em seguida no lixo,
que seria logo recolhido.
No dia seguinte, os espetáculos!
Viu os trapézios serem recolocados em
seus devidos locais, prontos para serem usados. Certamente, ninguém havia
percebido nada de anormal naqueles trapézios, que eram novos.
Marcelo
apresentou muito bem o seu quadro cômico, de muito sucesso, todos morrendo de
rir de seu jeito, da maneira divertida de falar e contar as coisas e as
gozações ingênuas que fazia com os participantes convidados da plateia.
Com os demais membros do circo, ficaram assistindo
às outras apresentações, até que chegou a vez dos trapezistas.
Saturno aproximou-se, subiu rapidamente
por uma corda, mostrando seus potentes músculos, ficando de pé sobre o pau do
trapézio. Neste, foi e voltou várias vezes, jogando-se no ar, prendendo-se no último
momento por seus pés no pau do trapézio. Sensacional!
O locutor no alto-falante, em voz alta e
firme, anunciou:
- Distinto público...
Saturno
iria realizar o tríplice salto no ar, muito
perigoso e do outro lado Urano, seu companheiro
iria segurá-lo. A uns três metros do chão, estava
armada a rede de proteção.
Marcelo estava assistindo e ansiosamente
desejando que um acidente ocorresse. Pensou:
“Eu devia ter feito isto em outra ocasião
quando ele tivesse dispensado a rede, mas vamos ver se dá certo”. Fez uma
figa com a mão direita.
Saturno começou a balançar de um lado
para o outro, preso com suas mãos firmemente no pau. Urano do lado oposto, após
duas balançadas, jogou seu corpo para baixo, prendendo seu corpo com as pernas
ficando com seus braços livres, prontos para segurar o companheiro.
Saturno desprendeu-se do trapézio,
jogou-se ao ar. Deu as três reviravoltas e foi em direção aos braços de Urano. Quando
pegaram fortemente os braços um do outro, um dos lados da corda arrebentou
devido ao peso e ambos se precipitaram em direção ao chão. Urano, tendo um
braço preso ao de Saturno, acabou lançando-o fora da rede, batendo
violentamente a cabeça.
Marcelo que estava próximo, vendo a cena,
só faltava gritar de felicidade, mas prontamente, junto com outros correu em
direção a Marcelo para acudi-lo.
Foi levado rapidamente para um hospital, totalmente
inconsciente, sangrando o couro cabeludo. No dia seguinte foi anunciada sua
morte.
O episódio
que saiu nos principais jornais do país foi tido como acidente próprio da profissão.
— Que
tristeza. Tão jovem. Que atleta perdemos! - Assim dizia Marcelo procurando consolar a
todos, inclusive Maria dos Anjos.
A polícia técnica foi chamada para
analisar o acidente fortuito e sua provável causa.
Examinando o trapézio cuja corda rompeu,
observaram que não estava cortada, mas rota por algum motivo. Foi enviada ao
laboratório de análise técnica da polícia, que facilmente constatou a presença de
algum produto sobre o pedaço que rompeu, mais tarde identificado como acido
muriático.
Houvera sabotagem, um crime, um
assassinato preparado por alguém que devia detestar o trapezista. Precisavam
identificar o culpado e o motivo.
Marcelo
sentia-se garantido, pois não tinha qualquer contato com o trapezista. O que
ele queria agora era tentar nova aproximação com Tigrana, que já amava Ruy e ambos,
haviam feito planos para viverem juntos.
A polícia convocou técnicos, detetives,
investigadores para solucionarem o caso.
Os primeiros a serem chamados para
entrevista foram os responsáveis pela guarda, conservação e revisão do material
utilizado no espetáculo. Havia suspeitos.
Ao mesmo tempo, o investigador pediu que
revirassem os quartos e o lixo coletado nos dois últimos dias, à procura de um indício
do ácido detectado.
Como
achar uma agulha no palheiro! No lixo, alguém encontrou um pequeno vidro
destapado onde, em um rótulo sujo podia-se ler acido muriático, e em letras bem
apagadas o nome da farmácia que o preparara.
Foram
até a farmácia, onde um dos empregados logo disse que um jovem havia comprado o
ácido dois dias atrás, dizendo que era para limpar umas moedas antigas.
O delegado chamou todos os funcionários
do circo para declarações e colocou-os em grupo de cinco em uma sala para serem
identificados pelo empregado da farmácia, através de um espelho unidirecional.
Logo Marcelo foi identificado. O empregado jurava ter certeza.
No dia seguinte, logo pela manhã, entraram
nos aposentos de Marcelo e o levaram preso. A princípio negou tudo, mas com as
provas oferecidas a confissão logo veio, mostrando tratar-se de um criminoso
frio, calculista, fora de si, devorado por um ciúme doentio.
Que erro crasso cometeu Pipoca!
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