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MARCAS NA PAREDE E NA MEMÓRIA - OSWALDO U. LOPES



MARCAS NA PAREDE E NA MEMÓRIA
...Quem sabe era um espelho? O único espelho da casinha.
OSWALDO U. LOPES


Marcas na parede           -         Ana Maria Maruggi

Visitei-a em mil novecentos e oitenta e seis no mês de novembro com o calor já inflamado. O terreiro estava coberto pelo mato vagabundo e picões que agarravam minhas roupas, mas a velha cerca de estacas de pinho ainda estava em pé resistente ao tempo e às forças humanas. A porta estava enleada por teias de aranhas caseiras, mas não havia chave nem tramelas que me impedissem de abri-la. Ao entrar, através das fendas das janelinhas ainda fechadas, passavam os riscos que os raios do sol desenhavam no gasto chão de cimento vermelho. Um fantástico arco íris de sonho. 

Apenas três pequenos cômodos, bem tímidos e extremamente simples, rústicos. Não havia corredores para uni-los, nem escadas, tudo ficava no mesmo plano.

O banheiro era lá fora bem no fundo do quintal, um quadrado de paredes baixas sem teto, com um buraco bem meio do chão. Entre o banheiro e a casinha havia um poço artesiano com roldana enferrujada e sarilho de madeira tosca, enrolada estava a corda desfiada, ressequida e de ponta vazia, pois o balde provavelmente adormecia, ao fundo nas quietas águas salobras.
Lembro bem das paredes da casinha. Era de um acabamento envelhecido grosseiro, em barro escuro, havia pequenas inconformidades,  com o reboco descolado, e a pintura gasta que resvalava num pálido azul caiado.  Não havia vizinhança e nem estrada, apenas uma trilha, já  escondida no meio do capim à revelia pela falta de uso, trilha por onde todos devem ter partido.

No cômodo central havia marcas na parede denunciando que ali se penduraram pelo menos cinco quadros de tamanhos variados.  Quadros que ficaram anos e anos no mesmo lugar. Veio-me uma alegria tempestiva quando detectei essas marcas. Para uma parede de cinco quadros quero acreditar que a família que aqui habitava tinha uma inesquecível história! – pensei naquele dia. Talvez o primeiro quadro fosse o retrato dos avós, pois sempre são lembrados em retratos. O outro trazia decerto fotografia do casamento dos pais mostrando a mãe em véu e grinalda para certificar aos filhos do enlace oficial, e para lembrarem sempre do compromisso que ajustaram. A outra marca deveria ter foto das crianças, umas quatro crianças de cambitos magros na beira da praia com calções largos e baldinhos de areia que iam e vinham lotados até a boca para concluírem a construção do castelo que nunca viram. Talvez até a única viagem que a família fez. Já a outra deveria conter uma paisagem bucólica que lembraria sempre à família que havia muitos outros lugares bons de se viver. A última não parecia ser marca de fotografia, nem tela, pois a formação era mais estreita e alongada, e a posição mais baixa que todas as outras. Quem sabe era um espelho? O único espelho da casinha.

         Deixei-me andar por ali e acabei por sentar na beira do poço abandonado. É incrível a atração que os poços exercem sobre as pessoas. Somos feitos mais de água que de pó e é a ela que gostamos de voltar e voltear.

        Já era de tarde, o sol estava a meio caminho do horizonte quando ouvi passos. Passos?  Quando se anda no mato, mesmo vagabundo, o que se ouve não são passos, mas ruídos, sons inconfundíveis, difíceis de reproduzir.

        Levantei a cabeça para dar com um rapaz de seus quase trinta anos que me fitava curioso. Pelo meu jeito  e idade, ele resolveu usar o tratamento de doutor:

        — Doutor, posso lhe perguntar, respeitosamente, o que faz nessa casa que um dia foi da minha família?

        — Ora, você é um dos quatro guris que eu via quando passava na estrada, na charrete a caminho da escola. Eu sempre achava curioso passar com o cocheiro rumo ao colégio  em Abegoaria, porque na escola rural já tinha terminado o ginásio.

        — Então era você na charrete que passava com ar sério e soberbo junto com o cocheiro. Mal calculando você devia ser uns 10 ou 15 anos mais velho do que nós. Mas, o que o traz por aqui?

        — Saudade! É uma saudade inespecífica, mas muito abrangente. Diz respeito a tudo e a nada em particular. Do ar seco e quente, da broa de milho, do cheiro de café que eu ainda não tomava, do pomar, da casa da sede, de passar por este sitio sempre bem arrumado e limpo. Que fim levaram seus pais e irmãos?

        — Meus pais descendiam de antigos colonos italianos e falavam um português italianado que acabou se tornando típico do interior de São Paulo. A casa era pobre, bem pobre como ainda se pode ver, mas havia comida e  roupa limpa que a mãe era muito caprichosa. A gente estudava parte em casa, parte na escola rural. Aos poucos foram todos tomando rumo. Antônio o mais velho se tornou caminhoneiro, sei que anda pelas estradas de um lado para outro. Manoel, o segundo foi para os lados do Jequitinhonha e escutei que tinha até virado jagunço, carregava varias mortes consigo. Jandira, a moça casara com o Arlindo e foram desbravar terras pro norte de Carajás. Ouvi  que arrumaram um bom par de alqueires e muita encrenca. Arlindo deu de beber e Jandira toca a vida e três filhos.

        — E você rapaz, perguntei?

        — Eu? Dei para estudar e me formei agrônomo. Toco a vida e uma usina de álcool em Divinópolis. Quando dá um tempo, pego a caminhonete e venho visitar meus pais. Sinto eles mais aqui que no cemitério, mas o senhor não me disse o que faz?

        — Estudei direito, fiz concurso de juiz e hoje sou desembargador na capital. A fazenda esta com minha irmã, mas a curiosidade me traz mais aqui, neste pequeno sitio, do que me leva lá. Lembro muito bem das quatro crianças, pais muito pobres, mas trabalhadores. Agora sei de cada uma com seu destino, cada uma com sua história.

        Contada parece igual, debulhada, vai revelando como num retrato na parede o contorno de um país inteiro. Diferente, único, comum, migrante, triste, alegre, igual, diferente, cheio de esperança, repleto de medo e tristeza.


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