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TANTA BELEZA, TANTA ANGUSTIA - Oswaldo U. Lopes




 TANTA BELEZA, TANTA ANGUSTIA
Oswaldo U. Lopes

Ligia era alta, esguia, uma figura heráldica. Sobrava entre as outras não só pelo porte, mas pelo todo. Exalava perfume até em fotografia. Tinha 35 anos, a idade perfeita da balzaquiana. Tinha curvas, ou seja, não era magra anoréxica. Como era alta não era de comparar ao violão como é de praxe, estava mais para violoncelo, instrumento que se segura em pé. Tinha cabelos longos e encaracolados desses que você vê e já quer desmanchar, tocar, desfazer.

            Se fosse égua seria tordilha ferrugem, pois o cabelo tinha laivos de castanho em fundo cinza. O efeito que essa cor dava ao todo era surpreendente. O conjunto era exuberante e sóbrio, atraia o olhar e junto o respeito, não tinha nada de vulgar. Ela passava você olhava e não tinha coragem sequer de assobiar ou de dizer gracinhas.

            Ligia era professora de arte, desenhista de jóias, especialista em renascimento. Parecia saída de Florença, direto da pena de Boticelli. Não fazia jóias, desenhava-as para que outros a executassem. Tinha um traço fino e largo. Como era possível? Só vendo. Por vezes lembrava Picasso, com quatro traços largos e rasos lá estava a rosa mais linda de se olhar. Convertida em prata ou mesmo aço era estonteante.

            Suas aulas eram surpreendentes e curiosas. Começava sempre por uma cena fotografada na rua. Um canto torto, uma luminária encurvada, um azulejo colorido, uma vitrine que ninguém percebera, um canto que se tornava maior do que um monumento. Dali começava a falar sobre o plano, a curva, a interface, o espaço, o átomo e o universo. Quando chegava ao Renascimento e a sua amada Florença seus ouvintes já não mais estavam presentes em corpos reais, mas viajavam no espaço-tempo que ela criara procurando as cúpulas e as colunas interceptas.

            A procura de seus ângulos inesperados, recônditos e escondidos gostava de caminhar na chamada Manhattan paulista. O entroncamento das ruas Haddock Lobo, Oscar Freire, Bela Cintra, Lorena etc. Achava que ali tinha mais elementos que nos shopings que acusava de mesmice eterna.

Encontrava encanto e fato até nos nomes das ruas. Não podia esquecer a cara dos seus alunos no dia em que a aula começara com a placa da Rua Haddock Lobo e a explicação de quem fora Haddock Lobo. Como partindo de um português que estudara medicina no Brasil e fora político conservador chegava-se a cúpula de Brunelleschi só assistindo para ver.

Claro que chamava atenção. Alias chamava atenção desde quando saia de casa. O porteiro do prédio esperava ela passar para depois segui-la com o olhar. A bem da verdade não era um olhar vulgar, era o olhar de quem contempla uma obra-prima. Parecia a história do pastor americano que achava Kim Novak a maior prova de que Deus existe. Hoje estava de tailleur cinza escuro com toques de preto, blusa cor de rosa claro, um discreto colar de prata e uma bolsa preta além, é claro, da sua imprescindível Pentax com que ia fotografando os cantos, recantos e contornos.

Deixou-se levar pela curiosidade e instinto, ai deu-se conta de que se afastara um pouco e já estava próxima da Avenida Rebouças, fora da Manhattan que tanto a inspirava. Resolveu voltar e foi quando sentiu a ponta de uma faca ou algo semelhante nas costas. Sentiu também a presença de alguém atrás de si.

            Como dizia o delegado da televisão “não reaja” imagine qual seja o alvo do assalto: a sua Pentax pensou. A faca lhe indicou o caminho, passando pela Matias Aires. Um muro de terreno baldio, numa área valorizada destas, quem diria. Nunca teria imaginado uma abertura nesse muro encardido, mas foi empurrada violentamente para dentro dele. Percebeu, tarde demais, que não era a Pentax que o seu seguidor queria, mas ela mesma.


Sentiu a pedrada na cabeça e sentiu muitas outras coisas, uma angustia sem fim, a roupa rasgada, o estupro, o olhar fugindo, a consciência também, a morte próxima, assim sem mais nem menos, será que iria exalar o perfume de morte que os cientistas andavam falando. Que frio horrível, já não sentia mais nada.

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