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O ENGODO - Suzana da Cunha Lima


O ENGODO
Suzana da Cunha Lima

Antonio, escravo rijo, beirando os 35,  estava farto da vida de escravidão naquela fazenda, perdida no fim do mundo, aonde só se chegava  em montaria e assim mesmo, no tempo da seca.

Ele trabalhava na cultura do café e apesar de jovem, estava já muito curvado de tanto se ajoelhar na terra, fazer as covas e o plantio.. O negócio é que estas covas ficavam quase um metro distantes umas das outras, o que tornava o trabalho ainda mais penoso. Ele era um negro inteligente, educado, sabia ler e escrever, e achava-se desperdiçado num trabalho menor, apenas para deixar seu senhor mais rico.

Muitos escravos trabalhavam ali. Vestiam uniforme com camisa e calça de algodão rústico, e chapelão. De longe, não se via diferença entre eles, e nem era possível identificá-los. Imaginou que, se fugisse à noite, demorariam para notar sua falta.

Precisava apenas  saber o que havia em volta da fazenda e mais além, para traçar uma rota que o levasse a algum quilombo, cuja existência soubera por ter ouvido uma conversa entre os dois capatazes, à noite, quando julgaram-no dormindo..

E pescando um trechinho de conversa aqui e ali, sempre curvado e de olho no que fazia, com aquele ar abobalhado que os surdos possuem, foi juntando as peças do quebra-cabeça, até que pudesse montar um bom plano de fuga.

Um dia ouviam-se rumores de que chegariam visitas de uma fazendo das imediações. Esperavam pelo proposto noivo de sinhazinha, que viria para conhecê-la, e traria os pais para os acertos do casamento.

E, vieram as tais visitas. O noivo e o pai chegaram a cavalo para mostrar macheza, juntamente com seis jagunços armados. E, um coche de quatro pessoas que trazia apenas a mãe do noivo e uma mucama que a servia.

Iam ser dias de muita festa, cantorias e bailados.  E pouca vigilância.  Antonio refez seu plano de fuga: decidiu que se fingiria de jagunço e iria embora com a tropa. Precisava apenas liquidar um deles, mais ou menos de sua altura e porte,  trocaria de roupa e partiria com a comitiva, deixando o jagunço morto com uniforme de escravo no catre de dormir. Na última noite que passaram ali, serviu-se bastante aguardente a todos, e assim, ninguém percebeu as intenções de Antonio. 

Por incrível que pareça, deu tudo certo! Vestido como um dos jagunços, com botas e chapéu de couro, enganou a toda comitiva, e foi parar naquele mesmo dia na outra fazenda. Como montava bem, era bem educado  e gentil, encantou  à senhora que estava no coche e à mucama. Os outros jagunços ficaram enciumados, mas não puderam fazer nada, pois ele estava cumprindo bem suas funções de vigia e escolta.

Na sua antiga fazenda, alguns companheiros  de cativeiro chegaram a notar a troca, porém  nada comentaram, apenas comunicaram o fato e  enterraram o morto, fazendo o pessoal da casa pensar que Antonio sofrera um mal súbito.

Quanto a Antonio, foi-se acostumando  com aquela vida onde não cabia gente fraca ou covarde. Tinha apenas que obedecer às ordens do patrão.  Havia muita correria, troca de tiros e oportunidades de mostrar coragem e lealdade.  E ele se aproveitou disso para conquistar a confiança do novo senhor e desistiu de vez, de procurar um quilombo para viver em liberdade.

Para que quero mais liberdade, se terei que viver me escondendo? – pensou.  Aqui continuo um servo, mas os tempos do tronco e das chibatas estão bem longe.

Acabou se casando com um das mucamas da casa e foi ficando por lá anos a fio.
 Nunca descobriram o engodo.

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