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A carta reconciliadora - Fernando Braga


A carta reconciliadora
Fernando Braga

Meu caro e  ex- amigo  Bonfas.

Nunca trocamos, em nossas longas vidas uma única carta. Estou aproveitando este grande momento, quando me sinto muito tranquilo, calmo, próprio para filosofar, para escrever-lhe e analisar sua reação, frente a esta missiva. Como dizia o poeta da Vila: Espero, que estas mal traçadas linhas, em estilo rude e na intimidade, encontrem-lhe gozando saúde, na mais completa .....

  Sempre que me lembro ou ouço uma canção de Noel, não posso deixar de me associo de você, um amigo que realmente trouxe grandes momentos de alegria a todos nós, quando cantava, com seu timbre próprio e marcante: Flamboyant, a cair, a cair, a espalhar pétalas no chão... ou então: A deusa da minha rua, tem os olhos onde a lua, procura se embriagar....ou ainda: Minha vida, era um palco iluminado...Você era realmente, o nosso Silvio Caldas, o caboclinho querido, o Orlando Silva, o cantor das multidões e ... por aí vai. Todos nós tínhamos uma grande admiração por você, não somente por cantar bem, mas também por ser o menino Bauer, center half de nossos times de futebol, por ser aquele cara alegre, falante, apesar de todas as suas invencionices. Amigos desde os oito ou dez anos de idade, passamos muito momentos juntos após as aulas, jogando bolinhas de gude, botões, matinês, vendo os filmes em série do Zorro, Capitão Marvel, os matinês dançantes, os bailinhos no clube, enfim hoje, apenas recordações remotas. Adultos jovens, ainda solteiros, quantas vezes não viajamos juntos para passar os carnavais em Santos, Poços de Caldas e na cidade, que nos viu nascer, no longínquo oeste paulista. Éramos um grupo de bons amigos, todos devotados aos estudos, todos com muita pretensão em ser excelentes profissionais, de vencer na vida. Não dá para esquecer aquela saudosa viagem para Buenos Aires em 1959, de navio, com a turma de nossos amigos, se formando no Mackenzie. Nós dois dominamos o ambiente, seja namorando todas as moças, a Nenli, a Paquita Valderes, a boate Tabaris, e, quando chegávamos ao hotel na Calle Callao, às seis da matina, o nosso grupo estava tomando café para sair a passeio. Na volta nós dois no navio como croupies no jogo de Roleta, com as camisas azuis, cheias de estrelinhas! Tudo vem em nossa memória, como se fosse ontem. Os nossos caminhos foram sempre paralelos, você tornando-se o maior arquiteto do ABC e eu um médico, devotado aos pacientes. Você casou-se primeiro, com a mulher de sua vida, escolhendo-me para ser um de seus padrinhos, junto com sua avó e, teve dois filhos maravilhosos, igualmente capacitados e vitoriosos. Por minha vez, eu também tive a sorte de encontrar a mulher de minha vida, após percorrer uma grande distância de namoricos, todos eles muito bons. Fomos lentamente envelhecendo, cinquenta, sessenta, setenta anos...e durante todo este tempo, conseguimos manter nossa simples e boa amizade, baseada na empatia que sempre tivemos, na empatia de nossas esposas, enfim, dois casais amigos, que ocasionalmente se reunia fins de semana ou para um acontecimento familiar importante, como os casamentos de nossos filhos, aniversários ou mesmo visitas a nossa terra natal.

Quanta coisa se passou e nós dois sempre juntos, amigos sinceros, companheiros confiáveis.

Um certo dia, você teve um cataclismo em sua vida, quando sua mulher adoeceu, com uma enfermidade extremamente grave, com consequência desastrosa. Dava para perceber sua intensa angústia, em perder a companheira de sua vida e todos nós, seus amigos, presentes, percebíamos as mudanças que isto traria à sua vida. Você resistiria? Era uma grande dúvida que todos nos guardávamos em nosso íntimo.

Mais algum tempo se passou. Conseguimos manter os telefonemas mútuos, os encontros para almoços do grupo de amigos de infância, todos já idosos. Em um desses almoços, aventamos a hipótese de voltarmos juntos à nossa cidade natal, o que se realizou plenamente. Viajamos, dias perfeitos, de recordações, encontro com velhos amigos daquela cidade, quando então, deu-se o que nunca poderia acontecer, nossa briga. Por motivo banal, nós dois nos desentendemos e você, no momento, rejeitou uma reconciliação e se retirou asperamente para a casa de um parente, após declarar em voz alta que, naquele momento, estava se partindo, terminando, se desfazendo, uma amizade de 70 anos.

Desde aquela ocasião, quando já se passaram três anos, nunca mais nos vimos, nunca mais nos falamos, ficou uma magoa. Sei que errei ao falar bruscamente com você, quando você não esperava, mas sua reação foi extremamente exagerada, desproporcional. Conversando com os demais colegas presentes, após você se retirar, todos achamos que sua atitude deveria certamente estar relacionada à sua maior perda, a de sua esposa, que sempre o orientava, acalmava em momento como este, que são, relativamente, frequentes na convivência de amigos.

Bem, há muito tempo tenho ensaiado falar com você pelo telefone para voltarmos à boa. Quando sua querida nora faleceu, ainda jovem, cheguei a pegar o telefone para transmitir minhas condolências a você e seu filho, mas pensei: -estas coisas não se faz pelo telefone. Pensei em mandar um E.mail, uma carta, mas não deu certo. Pensei em encontrá-lo em uma reunião dos amigos, para refazermos nossa antiga amizade, mas isto não ocorreu.

Somente agora, completando os oitenta anos como você, peguei coragem para escrever estas poucas linhas. Pensei: - Agora, ou talvez não dê tempo!

Espero, que note bem, estou agora sem um vintém, podendo mande-me algum...

São Paulo, 27 de julho de 2015.  Responda, que eu pago o selo!

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