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A DONA DE CASA E A EXECUTIVA - Suzana da Cunha Lima

 


A DONA DE CASA E A EXECUTIVA
(pelo Dia Internacional da Mulher)

Suzana da Cunha Lima

Esbarraram-se na garagem, uma entrando com o carrinho de compras e a outra saindo apressada,  chave e celular na mão, fisionomia crispada.

- Mas por onde você tem andado, mulher? – perguntou a dona de casa, alegre e ao mesmo tempo curiosa ao perceber seu semblante carregado.

 A outra diminuiu um pouco virando-se para ela: - Por aí, correndo como nunca. –. Bom te ver.

 - É seu mal, amiga. Sempre correndo. A gente se conhece há 15 anos e só se vê aqui na garagem em papos relâmpagos... Espera ai um pouco.

- Mas as melhores conversas de minha vida foram com você, aqui na garagem, mesmo  em papos relâmpagos. - retrucou a outra, sorrindo contrafeita para disfarçar as nuvens de preocupação em seu face e parando de vez, em frente à outra. - E deixa de exagero. Já saímos algumas vezes juntas.

- Tem séculos isso. Então faça uma coisa diferente e venha tomar um café comigo agora. Meu marido e filhos só chegam amanhã. Estou com a tarde livre!

- Mas eu não. Tenho uma reunião importante agora, moça.  Eu trabalho, você sabe, não? Porém mantinha-se ali parada, como se esperasse ser mais convencida.

- Trabalho não é tudo. Pela sua cara acho que você está precisando de um ombro amigo agora.. Quebre a rotina uma vez na vida, arre! Olhe, o elevador já chegou, vamos lá?

A outra acabou concordando.   Quando chegaram ao apartamento, a executiva ajudou a dona de casa a retirar as compras e enquanto ela arrumava tudo, desceu com o carrinho.  Foi grande a tentação de, dali mesmo pegar o carro e ir trabalhar.  Mas algo a deteve e ela voltou para a casa da amiga.

 Enquanto subia no elevador, por força do hábito, olhou suas mensagens, respondeu às questões mais urgentes e enviou um alerta geral aos seus diferentes grupos do Whatsapp: Não estou disponível nas próximas duas horas.

Ah, mas não foram só duas horas.

Ela entrou pela cozinha guiada pelo aroma do café passado na hora que a amiga ofereceu com um pedaço de bolo. Aquele gesto tão prosaico a remeteu imediatamente à infância, à fazenda de seus avós., onde a chaleira estava sempre acesa no fogão de lenha e jamais faltava café, bolos e guloseimas para as crianças.

 Depois começaram a picar temperos, separar e guardar o que devia ir para os armários ou geladeira e empacotar o que precisava ser congelado.  Há muito tempo ela não fazia feira nem mercado, nem lembrava mais o que era aquilo, morando sozinha e sempre comendo fora. Gostou da sensação de estar numa cozinha lidando com alimentos, o contato com legumes e verduras  com as mãos nuas era quase sensual, algo atávico, quem sabe? Pois mulher e  cozinha são coisas quase indissolúveis; fogo crepitando, abrigo, cheiros e sabores lembrando aconchego, conforto, prazer.

 A conversa corria solta e leve, embalada por uma generosa taça de vinho e pedacinhos de queijo parmesão, que levaram para a sala, quando terminaram as tarefas.

E pela primeira vez, a executiva percebeu o enorme valor daquelas mulheres que abandonaram a vida profissional para se dedicarem aos cuidados do lar e filhos.  Num trabalho invisível, repetitivo, e pouco reconhecido. Mas são elas que transmitem valores, e educação de base aos filhos, além de administrarem a complexidade das tarefas de uma casa, e as demandas dos filhos e do marido.

Mas ser dona de seu tempo tem lá suas vantagens. Uma boa dona de casa sabe muito tempo distribuir suas atividades ao longo do dia, priorizando-as a seu bel prazer e são bem capazes de largar toda louça suja na pia para atender a uma amiga ou buscar um neto na escola.

Sentadas confortavelmente nas poltronas, riram muito enquanto lembravam-se de outras conhecidas, outros casos e muita fofocas. Até que a dona de casa tomou vagarosamente mais um gole de vinho, fechou os olhos como a saboreá-lo e ao abri-los, encarou a amiga, ali ao lado, dizendo de supetão:´-
- Você soube que eu tive câncer de seio?

A outra levou um susto, tocou levemente seu braço e perguntou ainda assustada com tão terrível notícia:  - Quando foi isso? Não soube de nada.

- Há cinco anos, portanto estou curada, segundo os médicos. – descansou a taça na mesinha em frente e completou seu pensamento: -  Tive que fazer mastectomia, para evitar a dúvida e os efeitos de uma quimio. E nisso, lá se foi meu seio direito.

- Que baque! disse a executiva observando melhor o peito da dona de casa – Mas a prótese está perfeita, não se nota nada.

- Nem tanto, é difícil colocar prótese embaixo do músculo, ainda mais de uma esportista como eu. – suspirou, a voz embargada – Eu coloco algodão no sutiã, porque o seio ficou menor e meio torto.  Fiz quatro cirurgias, cada uma para endireitar a anterior. Chorei muito, eu tinha seios tão lindos... Foi muito sofrido, mas chega. – tornou a pegar a taça e fez um cumprimento para si mesma com o vinho. – Valeu menina!

Depois voltou-se para a amiga, com um sorriso maroto: - E como não atrapalha minha vida sexual, tudo bem.

- Nossa, se fosse comigo eu estaria no chão. Nós sempre fomos tão vaidosas, lembra? comentou a amiga penalizada.

- Não estaria não, a gente tem muita força aqui dentro, é só convocar que aparece, claro, se tiver fé.  Você ia enfrentar como eu enfrentei. – encheu as taças outra vez de vinho e virou-se  para a amiga: - Sei que teve também muitos problemas com seu filho e está aí, bonitona, elegante e ganhando a vida sem ajuda de ninguém. É de se admirar!

A outra desviou o olhar para lugar nenhum, tentando segurar o choro.

- Isso é só fachada, amiga.  Mas a culpa pelo que aconteceu ao meu filho é muito real, é muito minha e dói até hoje, faz dois anos. – Silêncio dos dois lados até que a executiva suspirou: - O que eu podia fazer? Um rapaz de 22 anos, bonito, na força da idade,  que não me ouvia nem me respeitava. Só vivia com aquelas más companhias. Acabou indo preso, pegou oito anos. Está lá até hoje, você sabe como é nosso sistema carcerário. Ele chora, amiga, me suplicando para tirar ele de lá. Como? É crime inafiançável.  – colocou as mãos no rosto e permitiu-se chorar livremente.

 - Até hoje me pergunto onde eu falhei, onde? Acho que é por isso que me entrego como louca ao trabalho.  Para me atordoar, penso. – falava com a voz embargada, semblante crispado, lágrimas escorregando soltas pelo rosto.

A dona de casa achegou-se a ela, abraçando-a: - Culpa é um peso enorme para se carregar e você não merece isso.  Sei bem quanto você o aconselhou, quanto lutou para ele largar as drogas. Mas muitas pessoas nascem com algum DNA que as conduzem à delinquência, maldade e tragédias, mesmo vindas de uma família organizada e amorosa.  Acredito nisso.  Você fez o que era possível, e lembre-se que não tinha um marido ao lado, um pai para dar apoio e conselho ao filho.

- É, ele foi-se embora e nunca mais eu soube dele. Acho que homem não aguenta estes sufocos que a vida nos manda. - respondeu a executiva já mais confortada.

- Nem todos os homens sabem lidar com frustração. – a dona de casa afagou os cabelos da amiga, filosofando. - É da natureza do bicho homem. Foram feitos para guerrear, buscar alimento, procriar e defender seu território - segurou as mãos da amiga:

-  Nada a fazer, mas nós mulheres, somos de outra cepa, companheira. Somos aquelas que engravidam e amamentam, portanto, na linha da humanidade ficamos entre o homem e a criança, entendendo, ajudando, perdoando.  Protegemos nossas crias até com nossa vida. Está em nossas células, em nossos genes.  Ser mulher é isso. – sorriu contente ao ver o semblante da amiga mais apaziguado.


-  Portanto, nada de choro! Enxugue as lágrimas, retoque a maquiagem e vamos comemorar nosso dia. Vamos ao cinema! Vamos ver o Brad Pitt!

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