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O RETRATO - Mario Augusto Machado Pinto - CONTO DE FÉRIAS 3




O RETRATO
Mario Augusto Machado Pinto



— ...É como lhe disse: recebi pelo correio ontem à tarde. Estava em meu nome e sem remetente. Veio bem protegida num tubo de papelão. Mas o conteúdo não parece ser para mim. Trata-se de uma pintura estilo renascentista contendo a figura de um jovem usando chapéu e um sobretudo com pelagem na gola, o modelo olhando diretamente para quem está diante da tela.

 Pera aí. Em primeiro lugar: como não consta o nome do remetente? Não passaria pelo funcionário atendente do correio. Em segundo lugar: sei que é sua seara, mas tem certeza que é renascentista? Como reconhece?

— Pelas pinceladas; parecem mistas, com toques da arte flamenga.

 Detalhe o tema. Talvez conheça o motivo e daí poderia chegar ao autor.

— Ele está segurando uma flauta e os dedos posicionados para tocá-la. Há um livro aberto diante dele, e um papel fixado na parede. O homem não sorri, é profundamente sério, mas parece querer dizer algo. Não encontrei a assinatura do autor.

— Procurou bem? Na roupa do retratado? Como é de pessoa vestida poderia estar numa dobra da manga, por exemplo. Por falar nisso: você falou chapéu; não seria um tipo de boina?

— Não está. Sim parece tipo boina. Há uma coisa que me intriga: são sinais desenhados e palavras manuscritas no verso da tela. Suponho tratar-se de algo em código.  Talvez seja alguma informação sobre a obra, ou sobre quem a enviou... Não sei. Precisaria um especialista para decifrá-los?

 Gudrum: não faça nada. Talvez eu possa. Vou praí e decidiremos o que fazer. Tudo bem?

— Tudo. Venha. Tô lhe esperando. Sirvo um licor de tangerina. Té já.

Que coisa mais esquisita! Mais um probleminha pra resolver. Isso sempre acontece com Gudrum.
Ainda bem que não há muito trânsito devido às férias. Com o calor de hoje, nas filas do trafego em dia comum seria suadouro ou batida no vidro da porta do carro e um “passa o tútú aí, ô dotô”.

Gudrum sempre dá atenção: tá na porta e deixou vaga disponível pra estacionar.

— Oi, que calor, hein? Entra, entra.

Após pegar minha maleta de trabalho, entro. Ar condicionado ligado, ambiente acolhedor, estofados, algumas pequenas esculturas pelos móveis da saleta, fotos antigas, peças de coleção de garrafas de cristal, lindas e sem jaça!

— E a tela, onde está?
— Ali no encosto do sofá. Deixa tirar o pano. Pronto! Tá vendo bem?

Não. Não estava. Levantei-me e fui até o sofá.

Peguei a tela, senti seu peso e textura, a pequeníssima aspereza das tintas nas pinceladas. Admirei o trabalho com olhos críticos. Não me era estranha, desconhecida. Virei a tela e vi os tais sinais manuscritos: uma série de pequenos traços feitos com trinta azul como lados de um quadrado; sempre dois traços formando diferentes ângulos e um ponto entre eles. Nenhum formava um quadrado completo. Abaixo deles algumas palavras.

 Gudrum, me dá aquele seu espelho grande. Vamos ver se deciframos o que está escrito.

Não adiantou muito ter colocado o espelho à frente da tela. Inverti a posição. Pedi o “fio da luz” e a lupa grande. Aí deu para ver melhor ficando mais nítidos os tais traços e pontos; várias palavras esmaecidas com escrita interrompida “sugerindo” nomes, algumas letras isoladas e um rabisco. Seria assinatura?

Estava muito difícil decifrar mesmo aplicando as mais diversas tentativas técnicas visuais; não conseguia resultado. Estava limitado, sem aparelhos importantes. De repente, do nada, lembrei-me de Huang Jiang, chinês de Hong Kong, negociante de arte que conheci quando estivemos em Hong Kong no ano passado. Ele talvez pudesse ajudar.

 Gudrum, entra na Internet e vê se consegue o número do fone do Huang Jiang , em Hong Kong.  Lembra-se  dele?  Quando fomos a Dafen, perto de Shenzhen. Liga e me dá o celular que eu falo com ele. Lá, a estas horas, ainda deve estar na galeria de arte.

Conseguido o número, feita e atendida a ligação – maravilhosa Internet - disse meu nome várias vezes, expliquei que era do Brasil e que tinha urgência em falar com Jiang. Alguns segundos e ele atende:

 Hai Jiang, então, como vai? Fazendo muitos negócios?

...

 Lembra-se do nosso encontro quando comprei várias telas para enviar ao Brasil? Pois é. Você nem podia imaginar suas telas por aqui.

...

 Não. Desta vez não é para comprar. Telefono sobre uma tela que representa um jovem tendo nas mãos uma flauta. Numa das paredes tem.....

 ...

 Sim, parece uma partitura.

 ...

— É lembra uma boina.

— ...

— O livro é de poesia? Ahn, letra para cantar com a música. Sei, sei.

- ...

 Deixa ver. É, bem na borda esquerda, no cantinho lá embaixo; tem sim...

 ...

 Então está identificada?  É certeza absoluta?

 ..........

 Não, não duvido, claro. Foi muito fácil, só isso. Manda a conta pro Banco.

 ...

 Assim fica barato. Muito agradecido. Nos vemos. Espero falarmos proximamente. Até logo.

Foi mais fácil do que eu supunha. O cara é o máximo. Sabe tudo. Matou na hora.

 O tema não é da minha preferência, mas tem seu charme. Apesar dos pesares é um belo presente; ninguém sabe quem é o doador. E daí? Tem que ficar. Enfim, na minha avaliação valeu e ficou barato: custou um telefonema internacional.  Além do mais, os chineses pedagogicamente adotam o pensamento de Confúcio, para quem copiar é um exercício de humildade.

 Pois é Gudrum, a tela é a terceira cópia da pintura RETRATO DE HOMEM COM FLAUTA, do artista renascentista italiano Giovanni Girolamo Savoldo, de Brescia, onde nasceu e viveu. Passou alguns anos em Veneza, Milano e casou-se com uma Holandesa  e andou por lá; daí aqueles traços e jogo de luzes que você identificou tão bem. Lamento ser apenas cópia, não um polpudo cheque. Veio e vai ficar de graça. Manda enquadrar.  Na verdade, apesar da incerteza imaginava que a tela seria cópia. Ninguém manda original para alguém via correio e, mais ainda, incógnito. Só se for correio estrangeiro que entrega aqui. Isso mesmo, duvido muito. Mistério! Quer saber? Escolha uma belíssima moldura para enquadrar e coloca na parede acima do parapeito da sua lareira; põe um arranjo de flores bem baixinho. Vai ficar supimpa. Vai dar assunto por muito tempo.

— É. Afobei. Agora, pensando melhor... Se fosse original teria dúvida: ficar com ela ou vender a algum museu. Claro que venderia, mas em leilão. Quer dizer, então, que é copia feita numa daquelas dezenas de oficinas de arte de Dafen? Vou tratar dela com o máximo carinho, como se fosse o original.

— Tudo bem Gudrum, é assim que se fala. E o meu licor?

— De tangerina. Feito em casa.

 Fantástico!
Gudrum sabe o meu gosto e faz muito bem.


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