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HIKITA - Mario Augusto Machado Pinto - CONTO DE FÉRIAS Nº 1




 CONTO DE FÉRIAS Nº 1

HIKITA
Mario Augusto Machado Pinto.

A conversa com meu amigo não fluía. Avançava aos solavancos, como aqueles de um auto com motor falhando. Queria que se acalmasse. Escolhendo as palavras, comentei:

— Pelo que vejo,  Kaoro, seus pais têm razão. Você está muito elétrico, cara. Para quê tanta agitação?

A pergunta é outra. Deve ser: por quê.

— Olha, você está assim desde que voltou do Japão. Não dá para entender que seja por dificuldades, não é sua primeira viagem, fala japonês, ademais, eles me contaram que seus negócios com exportadores de lá estão aumentando, grana boa no Banco.

Pois é. Só que houve...

— Não houve terremoto nem tsunami...

Acabe com a brincadeira! A coisa é mais séria do que você pensa. Quer ouvir?

— Claro! Vou ter que preparar meu coração pras coisas que você vai me contar?

Deixa de brincadeira besta e escute. Vou lhe contar o que aconteceu.

Cheguei  esbodegado  em Tokio,  afinal, daqui, mesmo com uma escala, são 24 horas de voo. Terminada a alfandega, comprei passagem direta a Kyoto pelo Shinkansen, “Trem Bala”. Aluguei cadeira de massagem, descansei um pouco e fui para a estação. Tinha esquecido como era giga. Impressionante em tudo. Só para lhe dar uma ideia, você procura no piso a localização do numero do seu vagão, consta no bilhete, senta-se num banco. Aguarda. O trem chega e para com a porta de entrada do  vagão exatamente à sua frente. Daí em diante você habita um mundo diferente do nosso. Entrei em contato com meus clientes,  e depois fiquei sonhando meu encontro com Hikita, a minha querida  deusa-gueixa, a mais disputada de toda Ásia, mas mesmo assim, minha. Chegando a Kyoto fui diretamente ao Gion que desde 656 d.C. é o bairro das Ochaya – casas de chá – e hospedei-me numa pousada discreta na Ishibe – Koji. Depois de instalado fui em direção a  Manami Koji esquina com a Shijo-dori,  com muitas Ochaya e restaurantes frequentados por políticos e milionários que patrocinam suas próprias gueixas. A que eu procurava tinha paredes pintadas de vermelho e era assobradada. As Ochaya ficam no piso superior, todas decoradas com o máximo do oriental simples, estético e funcional.

À porta de entrada da “minha” Ochaya havia um alvoroço enorme de pessoas e policiais. Perguntando sobre o que acontecia me informaram que a celebre Hikita fora assassinada a tiros durante cerimonia do chá na sua ”morada do vazio.” Isso havia acontecido há umas três boras.

Não podia acreditar!

Emocionado e tremulo, pedi e recebi confirmação de um policial.

Fiquei perplexo!

A emoção e a tristeza me fizeram chorar. Não querendo ser notado pela minha aflição, afastei-me rapidamente e, encostado ao pilar que anunciava um bar, fiquei longo tempo olhando o que acontecia no outro lado da rua.

Em minha direção veio um jovem senhor que se apresentou como o Delegado do bairro dizendo que queria levar-me à sala usada por Hikita.  Perguntei por quê. Respondeu que ao iniciar a remoção do corpo, o celular dela caiu do laço da faixa da cintura. Exame corriqueiro das últimas ligações revelou a que fiz de Tokio e, junto, a minha foto.  Daí o interesse do Delegado que me reconheceu e auxiliado pela Policia Técnica escutou a gravação da nossa conversa em que ela se mostra contente com minha vinda e avisando que me receberia logo que eu chegasse.

O que ele queria mesmo era me levar ao local do crime e estudar minha reação ao ver o cenário.

Confesso: ver aquele local que tanto frequentei e as coisas que usei me traziam lembranças alegres, mas que no momento eram minha tortura e sofrimento.  

Indo ao andar superior da ochaya, fomos à morada do vazio da geiko Hikita passando por seu pequeno jardim indutor da tranquilidade que rege toda cerimonia do chá.

Já haviam removido o corpo dela.

Dentro há flores – chabana – algo escrito – chodo - na grafia local: Adocicando o chá com bondade e recebido com gratidão. É um lembrete para os participantes da cerimônia - o fogareiro para aquecer a água e todos os utensílios usados na chanoyu – a cerimonia do chá.

Ao entrar vimos que o piso de tatames estava manchado de sangue. Cada um tem um significado e deve-se neles pisar com muito cuidado. Isso não aconteceu: estavam fora de seus lugares.

O Delegado examinava atentamente os utensílios e sua disposição sobre eles. Comentou:

— A caligrafia chodo nos diz da finalidade da cerimônia. Parece indicar a vontade de apaziguar uma relação entre os participantes. O senhor sabe de alguma relação tumultuosa da geiko Hikita?  Como era a sua?

Sim. Há um aprendiz de Taikomochi ou Hokan; é um rapaz Gei  que aprende a arte do Sha com ela, e que se apaixonou. Ela me contou que suas cenas de ciúmes eram violentas. Hoje seria praticada a última cerimonia. Vê? A echarpe de seda está no chão.  A minha relação era de amizade e intima.

Entendo. Mas, note que aqui parece ter havido discussão e movimento de corpos. Os tatames estão fora de lugar e tortos. Aquele tem uma ponta dobrada. Interessante: eles são a origem das Gueichas, as Geiko, Gueigi.  Pelo jeito das coisas a cerimonia – chanoyu - já estava terminando.

Não sabia dessa origem, mas senhor Delegado, repare nos utensílios. Todos na posição certa menos a colher de bambu para colher o chá. Eu sei. Hikita tinha gesto peculiar para o ato: o braço sempre estendido em todo seu comprimento.

— Notei e é importante - Aponta à frente - É como estaria um braço levantado para proteção.  Ao ser atingido, o corpo caiu para trás. Isso se explica pelo tiro dado de frente e próximo ao alvo, a cabeça.

O Delegado comentou mais algumas coisas e me liberou pedindo que ficasse mais três dias em Kyoto. Se necessário me chamaria na pousada em que me hospedava. Após três dias nada acontecendo estaria livre para seguir com minha agenda e sair do Japão.

Descemos.  Agradeci e voltei à pousada para chorar minhas mágoas. Na verdade, chorei.

Durante quatro dias tratei dos meus assuntos comerciais. Não fui procurado, fui a Osaka, voltei a Tokio por mais dois, e retornei aqui para casa. Ontem meu correspondente em Kyoto me passou e-mail avisando que o Taikomochi cometeu suicídio no mesmo dia em que matou Hikita,  e deixou um bilhete dizendo que não poderia dividir Hikita com ninguém. Iriam se encontrar para sempre na tranquilidade celestial. Como é que nada soube na ocasião? Até a Policia é discreta.

— Kaoro, meu velho, não há nada contra você nem razão para receios, preocupações e agitação nervosa. Você é jovem, isso passa. Logo, logo você arranja outra geiko. Pode ter certeza.

Verdade, nada contra. Só que nunca mais vou ouvir falar e ver a minha Hikita. Isto não passa logo e não me dá sossego. Entendeu agora? Sei que vai levar tempo.

— Tá certo. Vamos começar a matar as mágoas e ganhar tempo. Que tal irmos a um restaurante na Liberdade comer uns sushi e tomar uns goles de saquê? Vamos? Vai ajudar. O.K.?

O.K.

E lá fomos pelo metro.






Fontes de consulta:
- Guimarâes, Hanny: Um encontro com o chá.  
- O Chá na Chanoyu.
- www.culturajaponesa.com.br          

- Google.

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