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Santo de Casa Não Faz Milagre - José Vicente Jardim de Camargo


Santo de Casa Não Faz Milagre
José Vicente Jardim de Camargo


O silêncio da madrugada na casa aconchegante do casal Siqueira é quebrado pelo cantar estridente do cuco do relógio da sala de jantar anunciando a virada do dia.

Mariana, mais uma vez, procura no rodamoinho dos pensamentos, pegar no sono que insiste em lhe escapar:

— Maldito sono que não vem! Exclama para si mesma. Com tantas coisas para fazer hoje cedo e esta bendita dúvida não me deixa em paz. Só de pensar que pode ser verdade, me estremeço toda... Não tenho forças para encarar a realidade.

Há dias vem notando um comportamento estranho nas atitudes do Celso que ficou mais arredio, distante e põe-se nervoso quando perguntado se algo o está perturbando:

— Nada que seja da sua conta! Contesta gritando, procurando desviar o assunto com banalidades como:

— Hoje vai chover? Não sei se levo o guarda–chuva. Ou se esquivando de mim:

— Tenho reunião o dia todo, não atenderei o celular, deixe recado com a secretária...

 Não fala mais do dia a dia no escritório, das deficiências e fofocas dos subordinados, das perspectivas do mercado. Até o jogo de tênis, sua paixão,  relegou ao segundo plano.

O cantar mecânico do cuco anunciando mais um passar da noite, intensifica a dúvida cruel:

— Ele me disse que iria jantar, após o expediente, com colegas da empresa, inclusive com pessoal da matriz americana. Mas, por mais assuntos que tivessem a tratar, já deveria estar de volta há muito tempo:

— Com certeza tem mesmo “rabo de saia” no meio... - Cresce na mente a dúvida incessante...

Mas, Celso nunca lhe deu motivos para suspeitas. Até lhe causa  certo remorso quando pensa na sua queda por Rogério, seu personal -trainer. Arrepia-se toda só em pensar na hora do relaxamento dos músculos quando ele lhe toca com aquelas mãos fortes, meio ásperas, massageando suas pernas, braços, pescoço subindo pela cabeça:

—Que alivio! A dor de cabeça parou... Confessa ela de olhos fechados torcendo para que ele se atreva a quebrar o limite da ética...

De repente seus pensamentos cessam com o abrir da porta de entrada.

As batidas crescentes do coração acompanham os passos atravessando a sala, subindo a escada, abrindo devagar a porta do quarto:

— Pode ascender a luz, senão vai tropeçar na banqueta que pus de propósito para acordar quando você chegasse.

— E por que?  Está com alguma imaginação fértil? Ironizou ele tirando a gravata e desabotoando a camisa.

— E poderia ser diferente? Contesta ela se pondo sentada na cama com olhar felino. Você me disse que iria jantar com colegas do trabalho, mas não que iria pra farra depois...

— Ora, deixe de fantasias! A culpa é da crise em que estamos vivendo, que nos atola de serviços... Ou você não lê jornais?

— Sim leio, só que não sabia que a tal da crise curte um inferninho até altas horas...

— Veja quem fala! Se a minha curte inferninhos na madrugada, a sua é mais chegada às massagens nas manhãs frias...

— Se não fosse meus exercícios diários, você não teria esse corpinho a disposição. Aliás, o coitadinho está de quarentena...

— Quarentena você vai ver depois do meu banho, alerta Celso jogando o resto da roupa no chão e batendo a porta do banheiro...

Mariana pula da cama e com instinto de leoa em busca da presa, corre a farejar e revistar as roupas do marido em busca de pistas que a ponham em vantagem de ataque.

Nada encontrando nas roupas, agarra a pasta executiva torcendo para que ele não tenha mudado o código de segurança. Abre-a,  e cuidadosamente, vai folheando os papéis e encontra, entre eles, uma pequena caixa embrulhada em papel de presente envolta num delicado laço de fita preso com o selo de sua joalheria preferida:

— Aqui tem coisa! Conclui Mariana examinando o achado contra a luz do abajur na tentativa de descobrir algo mais, talvez algum bilhete – “Certo que meu aniversário é na semana que vem, mas proibi o Celso de dar-me presente, pois nunca acerta nos meus gostos e muito menos nas minhas medidas. O último anel que me deu, cabia no meu dedão do pé...”

Nisto a água do chuveiro cessa de cair...

Mariana volta às pressas para a cama e finge já estar dormindo.

Celso se estica na cama e se aconchega a mulher. Mas sentindo-a inerte, volta ao seu lugar sem insistir no carinho desejado. Mesmo porque, ainda está de cabeça quente com a discussão que tivera com sua colega americana, e conta baixinho para Mariana:

— Tudo por causa de uma gringa muito metida! Só porque trabalha na 5ª avenida pensa que tem o direito de pisar em todo mundo. Mas, comigo sentiu que as coisas não são como pensa! Se quiser ganhar dinheiro aqui, vai ter de abrir as pernas e acatar minhas decisões... A reunião de hoje confirmou isso depois de semanas de discussões... A bichinha gritou, esbravejou, berrou, mas no final, com os votos dos colegas, sai vitorioso... Continuo a dar as cartas neste mercado... Mas, por outro lado, é bom não exagerar, o melhor agora é usar o jeitinho brasileiro e fazer uns mimos pra que ela não volte aos States e peça a minha cabeça para o presidente da Companhia... Espero que o presente que a secretaria comprou lhe acalme a raiva... Água marinha legítima!

Mariana, que tudo ouvia com o desejo cada vez mais lhe queimando o corpo,  não espera  mais nada... Pula em cima do marido e, entre beijos, lágrimas e aconchegos confessa:

— Quem disse que “Santo de Casa” não faz milagre? O meu transformou minhas dúvidas, meus remorsos, em fogo ardente... Melhor remédio é o corpão do maridão...

—Na próxima visita da gringa, lhe apresento a causadora do nosso desencontro - promete Celso animado com a vontade da mulher...


— Com muito prazer! - concorda Mariana, e pensa: “Só que estava me referindo às mãos ásperas e fortes das manhãs”...

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